Juridicamente, empresas não podem sofrer falência!
No âmbito jurídico, o profissional do Direito deve ter em mente que, frente a uma adequada utilização da terminologia empresarial, a empresa não se confunde nem com pessoas, nem com patrimônio, devendo tal termo ser empregado para se referir às atividades empresariais, sob pena de adoção de uma terminologia imprópria, confusa e não técnica.
sexta-feira, 3 de maio de 2024
Atualizado às 13:36
O presente artigo busca propor uma reflexão quanto à terminologia usada vastamente nos meios negociais e jurídicos, embora em descompasso ao constante da legislação empresarial e falimentar. Isto porque, é comum, no linguajar popular, nos depararmos com menções de que determinada ¨empresa¨ faliu, ou mesmo que a ¨empresa¨ propôs recuperação judicial. No entanto, tal nomenclatura, se colocada sob uma análise técnica, apresenta imprecisão, e dificulta a plena compreensão da legislação. A razão de tal afirmação é porque, sob a ótica técnica, em estrita observância da legislação falimentar (Lei n. 11.101/2005), não existe a possibilidade jurídica de falência de ¨empresas¨, e a utilização de tal terminologia, nos meios jurídicos, é imprópria e apenas acarreta dificuldades de compreensão e interpretação da situação prática. Explicamos:
O Brasil adota a denominada ¨Teoria da Empresa¨, inserida no Código Civil de 2002, no livro propriamente intitulado ¨Do Direito de Empresa¨. No contexto de tal teoria, nos deparamos com três elementos chaves: o empresário, a empresa e o estabelecimento empresarial. O primeiro, empresário, corresponde a uma pessoa, sujeito de direito (podendo adotar a espécie de empresário individual, se pessoa natural, ou sociedade empresária, se pessoa jurídica). A empresa, por sua vez, sob a ótica técnica/jurídica, não corresponde a uma pessoa, nem tampouco a um objeto, mas a uma atividade que é exercida pela pessoa do empresário/sociedade empresária (sendo ela, nos termos extraídos da interpretação do artigo 966, uma ¨atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços¨). O estabelecimento, por fim, sendo um conjunto de bens organizado para viabilizar o exercício da empresa, é um bem pertencente à pessoa do empresário/sociedade empresária. E é essa a noção constante do Código Civil, tal como se vê, por exemplo, no artigo 1.142, que adequadamente utiliza todos os mencionados conceitos em seu devido contexto, ao dispor que ¨considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária¨. Note-se que o termo empresa é inserido em um mesmo artigo com os termos empresário e sociedade empresária, justamente porque representam figuras diversas e que não se confundem (ou seja, tanto o empresário quanto a sociedade empresária não são empresas, mas pessoas que exercem uma atividade considerada pela lei como empresa). É nesse sentido que explica Marlon Tomazette, ao afirmar que ¨a empresa, entendida como a atividade econômica organizada, não se confunde nem com o sujeito exercente da atividade, nem com o complexo de bens por meio dos quais se exerce a atividade, que representam outras realidades distintas; (...) A empresa não possui personalidade jurídica, e nem pode possuí-la e, consequentemente, não pode ser entendida como sujeito de direito, pois ela é a atividade econômica que se contrapõe ao titular dela;¨ (...) (cf. Curso de direito empresarial - Vol 1. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2014 p. 41-42).
Assim, sob tal perspectiva técnica, a empresa representa exclusivamente uma atividade que se exerce, e não pessoa ou bem1. É nessa ótica a definição do saudoso Professor Oscar Barreto Filho, em sua clássica obra ¨Teoria do estabelecimento comercial¨: ¨(...) a empresa não existe, mas se exerce; não é um ser - nem sujeito nem objeto - mas um fato. O que existe é apenas o empresário, como sujeito, e o estabelecimento, como objeto. Desta forma, a empresa é o exercício que o empresário faz do estabelecimento¨ (cf. Teoria do estabelecimento comercial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 119).
E, baseado nas lições de Oscar Barreto Filho, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa sintetiza a relação entre os conceitos da seguinte forma: ¨empresário se é; empresa se exerce; e estabelecimento se possui¨ (cf. Curso de direito comercial. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 174).
Não se nega que, na linguagem popular, o termo empresa é usado de forma genérica e extremamente ampla, se referindo tanto a diversos agentes econômicos (muitos que nem mesmo são empresariais), quanto ao estabelecimento. Mas, no âmbito jurídico, o profissional do Direito deve ter em mente que, frente a uma adequada utilização da terminologia empresarial, a empresa não se confunde nem com pessoas/agentes econômicos2, nem com patrimônio, devendo tal termo ser empregado apenas para se referir às atividades empresariais, sob pena de adoção de uma terminologia imprópria, confusa e não técnica. Tal constatação está presente em diversas obras de doutrina. Tomazette, por exemplo, afirma que ¨as sociedades empresárias não são empresas¨ (cf. Curso de direito empresarial - Vol 1. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 43). Gladston Mamede, por sua vez, alerta: ¨atente-se para o fato de que os conceitos de empresário e sociedade empresária são distintos do conceito de empresa. Em verdade, o empresário e a sociedade empresária são sujeitos personalizados de direitos e deveres, são pessoas¨ (cf. Manual de direito empresarial. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 6). Sérgio Campinho expõe que ¨não se confunde, assim, como muitos no cotidiano costumam confundir, empresa com sociedade, procedimento esse que presenciamos, inclusive, em alguns textos legais¨ (vide O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 11). Fábio Ulhoa Coelho confirma tal concepção ao explicar que, quanto à palavra empresa, ¨é equivocado o uso da expressão como sinônimo de sociedade¨ (cf. Manual de Direito Comercial. 33. ed. São Paulo: RT, 2022, p. 46).
Todo esse referencial foi igualmente aplicado à legislação falimentar e recuperacional. Desta forma, no contexto da Lei n. 11.101/2005, somente podem sofrer falência as pessoas dos empresários individuais e as sociedades empresárias, mas não as respectivas empresas (atividades) que exploram. Portanto, é impreciso e não técnico afirmar que uma empresa faliu ou pleiteou recuperação judicial. E essa concepção está evidente na Lei n. 11.101, que ¨regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária¨, e dispõe claramente, logo em seu primeiro artigo, que ¨Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor¨. Assim, como se vê, não concebe a legislação a possibilidade de falência de empresas (consideradas como atividades), mas somente daqueles que as exercem (pessoas) - empresários individuais e sociedades empresárias. Igualmente, não é possível também a falência de estabelecimentos empresariais.
É nesse sentido que Fábio Ulhoa Coelho explica, com precisão, a impropriedade jurídica em se referir à falência de empresas. Nas palavras do autor: ¨Se alguém diz ¨a empresa faliu¨ ou ¨a empresa importou essas mercadorias¨, o termo é utilizado de forma errada, não técnica. A empresa, enquanto atividade, não se confunde com o sujeito de direito que a explora, o empresário. É ele que fale (¨quebra¨) ou importa mercadorias¨ (cf. Manual de Direito Comercial. 33ª ed. São Paulo: RT, 2022, p. 45-46).
E essa utilização adequada da terminologia jurídica é necessária para uma correta interpretação da legislação. Tomemos como exemplo dois artigos da lei 11.101:
Dispõe o artigo 47, quando inicia o tratamento da recuperação judicial:
¨Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica¨.
Veja-se que, para se referir ao empresário ou sociedade, a lei utiliza o termo ¨devedor¨. Mas quando emprega a expressão ¨preservação da empresa¨, não fala da pessoa do devedor, mas da preservação da atividade econômica organizada. Assim, quando se fala em preservação da empresa, não se refere à pessoa física ou jurídica, mas à continuidade da atividade, que pode até mesmo ser transferida a outra pessoa, a depender das previsões constantes do plano de recuperação.
Em sentido semelhante, veja-se o texto do artigo 140, constante das regras da falência, quanto à venda do ativo:
¨Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas, observada a seguinte ordem de preferência:
I - alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco;
II - alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades produtivas isoladamente;
III - alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor;
IV - alienação dos bens individualmente considerados¨.
O emprego da expressão empresa, constante dos dois primeiros incisos, se refere à transferência da atividade econômica organizada, e não guarda relação com o empresário individual ou sociedade devedora (que seriam, na hipótese, os falidos).
Logo, a interpretação adequada da referida legislação demanda a utilização técnica dos termos jurídicos, sendo empresário ou sociedade (no gênero, ¨devedores¨) utilizados para se referir à pessoa, e empresa para se referir à atividade. E, por isso, voltamos à afirmação constante do título deste artigo: ¨juridicamente, empresas não podem sofrer falência¨!
Conclusão:
Assim, demonstrada a terminologia constante da legislação, é possível concluir que, em favor da precisão textual, recomenda-se ao profissional do Direito, bem como ao legislador, que evite o uso impróprio ou genérico da palavra empresa, em razão das confusões que isso tende a gerar na prática. A utilização técnica do termo assegura maior compreensão e segurança jurídica aos negócios. Aliás, somente com a adequada utilização dos conceitos é que se explicam as operações negociais em que se separam o empresário/sociedade da sua empresa. Portanto, é de se lembrar que, em ambiente jurídico, a correta utilização de termos técnicos não é mero preciosismo, mas uma necessidade para dar sentido específico às disposições e assegurar a adequada compreensão dos negócios.
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1 Não se ignora a existência da teoria dos ¨perfis de empresa¨, conforme apontados pelo jurista italiano Alberto Asquini em famoso texto jurídico. Mas tal concepção não corresponde ao constante no texto da Lei n. 11.101/2005, e é inclusive apontada como superada, como se vê, entre outros, em TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial - Vol 1. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2014).
2 De fato, o Código Civil, ao elencar o rol de pessoas jurídicas de direito privado em seu artigo 44, não insere a figura da empresa como pessoa jurídica, dado ser esta uma atividade.
Fernando Schwarz Gaggini
Advogado. Pós-graduado em Direito Mobiliário e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP. Professor titular de Direito Empresarial na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.