O juiz das garantias como pressuposto da originalidade cognitiva
Lei 13.964/19 altera legislação penal. AMB, AJUFE, CONAMP, PODEMOS, CIDADANIA e PSL impetram ADIns contra dispositivos no STF. Discussões sobre imparcialidade objetiva e dissonância cognitiva na atividade jurisdicional.
segunda-feira, 6 de maio de 2024
Atualizado às 09:45
A lei 13.964/19 fez diversas alterações no CPP, CP e na LEP. Isto é, na legislação criminal como um todo. Contudo, algumas instituições (AMB, AJUFE, CONAMP, PODEMOS e CIDADANIA e PSL) não concordaram com determinados dispositivos e impetram ADIn'S (6.298, 6.299, 6.300 e 6.305) junto ao STF, órgão judicial competente para julgar esse tipo de ação. Apenas como destaque, o min. Fux segurou essas ações por quase quatro anos, um absurdo. Em plenário, no dia da abertura do julgamento, sua Excelência disse que um grupo de parlamentares o procurou para retardar ao máximo as ações diretas. Dispensa comentários.
A originalidade cognitiva no contexto da atividade jurisdicional significa ao juiz da instrução e julgamento tomar conhecimento dos fatos e seus elementos probatórios apenas em sede de audiência, de modo que esteja livre de qualquer compreensão antes desse momento. O móvel é assentar a insuficiência da imparcialidade subjetiva (relação do juiz com as partes), sendo necessário assegurar também a imparcialidade objetiva (contato do juiz com o caso penal). Esta para além da imparcialidade propriamente dita, demanda a aparência de sê-lo. Longe de pretender a neutralidade, pois que o juiz é um ser no mundo (com suas crenças políticas, ideológicas, religiosas etc.).
A psicologia social desenvolveu a teoria da dissonância cognitiva, segundo a qual o indivíduo, quando diante de duas ideias, crenças ou opiniões contraditórias, causadoras de incômodo e estresse, irá buscar um ponto de equilíbrio, de consonância. Para isso poderá mudar uma delas ou as duas para torná-las compatíveis, ou desenvolver outras novas. Tudo para diminuir o mal-estar psíquico gerado e defender seu ego, uma vez presente um antagonismo entre seu conhecimento e sua opinião. Destarte, Bernd Schunemann aplicou-a ao processo penal, diretamente sobre a atuação do juiz, tendo em vista que ele lida com teses excludentes da acusação e defesa, inclusive sua própria opinião do caso penal. Esta se forma quando ele recebe a acusação e agrava quando ainda atua durante a investigação preliminar, seja decretando prisões, sequestros de bens, interceptações eletrônicas etc. Nesse contexto, segundo o autor, o juiz tenderá agarrar-se a sua pré-compreensão e confirmá-la na audiência de instrução e julgamento. Ou seja, a tendência é superestimar as informações consoantes e rechaçar as informações dissonantes. Prossegue ele, o juiz vai buscar atenuar o estresse causado pela dissonância cognitiva, assim dois efeitos se fazem presentes: Efeito inércia ou perseverança e a busca seletiva de informações. No primeiro, atua a consolidação da hipótese reputada como certa, sobressaltando informações anteriores nesse sentido. No segundo, há a busca seletiva de informações, cujo objetivo é reafirmar a hipótese já aceita previamente.
Com base na teoria acima, viu-se a necessidade de separar o juiz que atua na fase de investigação preliminar daquele que atua na audiência de instrução e julgamento, o qual irá julgar, pois Schunemann, em trabalho de campo, constatou um vício no magistrado quando detém conhecimento da investigação preliminar e/ou recebe a denúncia, apresentando inclinação para condenar e desinteresse pelo trabalho da defesa, mormente suas perguntas para as testemunhas. Portanto, a dissonância criada pela defesa com sua tese oposta ao da acusação leva o juiz buscar o equilíbrio em seu sistema cognitivo, entrando em ação os dois efeitos citados acima sobre o conhecimento obtido antes - investigação preliminar e recebimento de denúncia. Pensar diferente é desconsiderar ainda a teoria do inconsciente (Sigmund Freud), base da psicanálise moderna, e superestimar uma objetividade na relação sujeito-objeto, conforme Aury Lopes Jr.
O legislador brasileiro, então, criou o juiz das garantias (lei 13.964/19), introduzindo no CPP os arts. 3º-B ao 3º-F. Tal juiz é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do poder Judiciário, cabendo a ele diversas atividades, mas afastando-o da fase de instrução e julgamento, consequentemente obstando-o de decidir o caso penal. Ao julgar as ações diretas mencionadas alhures, o STF declarou a constitucionalidade do juiz das garantias, embora tenha dado interpretação conforme (reescreveu) às diversas disposições da lei, incompatíveis de análise nesse breve ensaio. Assim nos centraremos em alguns pontos específicos.
O inciso XIV do art. 3º-B prescreve que o juiz das garantias seria o responsável de receber a denúncia ou queixa, nos termos do art. 399, do CPP. Analisado pelo fundamento de sua própria criação, imparcialidade objetiva e originalidade cognitiva, consoante a teoria da dissonância cognitiva, o legislador agiu corretamente. Este dispositivo aduz que recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente, levando o STF a entender ser incompatível com os próprios princípios inerentes ao juiz das garantias, para assentar que sua atuação cessa com o oferecimento da denúncia ou queixa. No entanto, a Suprema Corte encampa uma interpretação enviesada, na qual subverte o instituto à luz dos seus fundamentos, uma vez que, sem desconhecer a importância do ato de receber (ou não) a peça acusatória, toda sua construção visa o juiz que preside a audiência de instrução e julgamento, decidindo o caso penal em seguida. Sobre este recai a originalidade cognitiva, desfeita quando recebe a denúncia ou queixa. Portanto, o STF retira o mister de recebimento da exordial acusatória do juiz das garantias sob o fundamento de que ele teria contato com todos autos da investigação preliminar.
Outro ponto discutível na decisão do STF foi sobre os autos do inquérito policial, onde o legislador estabeleceu que as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado (§ 3º, art.3º-C), assim como assegurou às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias (§ 4º- art. 3º-C). Do mesmo modo que no parágrafo acima, a Corte Suprema retira a originalidade cognitiva do juiz da instrução e julgamento ao permitir seu acesso aos autos da investigação preliminar, e o faz negando as teorias da dissonância cognitiva e do inconsciente, consequentemente a própria noção de imparcialidade objetiva. Não desconhecemos a redação do parágrafo § 1º, art. 3º-C, o qual consta que recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.
O art. 3º-C, caput, primeira parte, excetua da competência do juiz das garantias apenas as infrações de menor potencial ofensivo, de modo que o STF estendeu para obstar sua atuação também nos processos de competência originária dos tribunais, os quais são regidos pela lei 8.038/90, processos de competência do tribunal do júri e os casos de violência doméstica e familiar. A Suprema Corte reescreveu a lei e alargou a exceção, usurpando a competência do Congresso Nacional. Interpretar difere de legislar.
Pensamos que o legislador a par da evolução da ciência, sobretudo da psicologia e neurociência, e atento a necessidade do estudo da interdisciplinaridade para o aprimoramento da justiça criminal, seguiu o caminho correto ao criar o juiz das garantias, buscar a originalidade cognitiva do juiz da instrução e julgamento e a imparcialidade objetiva. Difícil de aceitar é ver tanta repulsa por um instituto, com suas práticas que objetivam assegurar verdadeiramente o atuar imparcial do julgador, ser tão demonizado. Sabemos que o STF somente declarou sua constitucionalidade por ser uma escolha legítima e válida do Legislativo, tanto que ainda assim o deturpou, desconsiderou sua base de criação, mormente a teoria da dissonância cognitiva e tudo que ela reverbera. Todos que atuamos na prática sabemos da importância do aprimoramento da justiça criminal, da necessidade de condenar culpados, sejam ricos ou pobres, brancos ou pretos, jamais inocentes, com julgamentos de faz-de-contas. Sabemos também que não irá resolver tudo, mas com certeza é uma ótima contribuição.
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LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. - 15. Ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 69-72