A resilição unilateral frente aos investimentos realizados pelo outro contratante
O Código Civil destaca três princípios essenciais nas relações contratuais: boa-fé, equilíbrio econômico e função social do contrato, visando comportamento ético, equidade e prevalência dos interesses coletivos.
quinta-feira, 2 de maio de 2024
Atualizado às 07:43
O atual Código Civil, seguindo os grandes movimentos sociais do final do século passado e da primeira metade do século XX, prestigiou três grandes princípios que norteiam as relações contratuais: a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e a função social do contrato.
A boa-fé objetiva é o preceito fundamental traduzido no comportamento probo e leal dos indivíduos. É a consciência ética para a vontade da parte que pratica os atos jurídico enquanto que o princípio do equilíbrio econômico visa proteger a equidade nas relações contratuais, afastando obrigações demasiadamente excessivas, zelando pela manutenção da proporcionalidade do sinalágma das prestações.
Já quanto à função social do contrato impõe que a interpretação de todo o microssistema do direito contratual deve ser realizado à luz da prevalência dos valores da coletividade em detrimento aos interesses individuais, ressaltando a pessoa humana.
Prestigiando o escopo social e econômico dos contratos, o legislador, ao disciplinar as causas de extinção dos contratos, atribuiu a prerrogativa ao contratante sujeito à resilição unilateral, de exigir a manutenção compulsória do pacto, nos casos em que os investimentos realizados não tenham sido recuperados.
Assim dispõe o art. 473, caput: "a resilição unilateral, nos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte".
Cezar Peluso (2011, p. 536) define a resilição unilateral como sendo o "direito potestativo de um dos contratantes impor a extinção do contrato, sem que o outro possa a isso se opor, eis que esteja situado em posição de sujeição." Assim, a resilição unilateral não é inadimplemento, mas sim a manifestação de vontade de uma das partes em não manter o contrato anteriormente firmado.
Dessa forma, a parte que não mais pretendesse manter o vínculo contratual anteriormente estabelecido estaria autorizada pelo referido artigo, em seu caput, a resilir o contrato, mediante comunicação prévia.
Contudo, o legislador, ao inserir o parágrafo único, que estabelece que "Se porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos", cuidou de proteger o denunciado contra denunciantes mal intencionados, que, sob o manto do instituto da resilição unilateral, desrespeitassem o interesse econômico do denunciado.
Consoante mencionado, a norma visa proteger a função social do contrato e deve ser interpretada sob a égide da boa-fé objetiva, princípio norteador dos contratos e fonte de obrigações, que confere aos contratantes uma conduta leal em todas as fases contratuais.
Nesse sentido, vale lembrar que a interpretação contratual consoante a boa-fé objetiva foi contemplada no Código Civil em seu art. 1131, enquanto que o art. 4222 positivou a obrigatoriedade da conduta leal dos contratantes.
Assim, ainda que a lei conceda a um dos contratantes o direito de resilir o contrato, tal ato não poderá ser praticado de modo abusivo, à custa do sacrifício da parte contrária.
Ao dissertar sobre o tema, Paolo Gallo (apud BDINE, 2012, p. 104) assevera que, em regra, "o recesso é livre, mas pode ser coibido se violar a boa-fé, o que se dá quando houver violação à confiança na prorrogação da relação".
Tendo em vista que não há, no dispositivo ora estudado, menção quanto ao prazo, tem-se que as partes, ou ainda o juiz, deverá realizar a análise do caso contrato, considerando todos os investimentos realizados pelo denunciado no intuito de aferir se houve ou não sua recuperação. Seria o atingimento do chamado break even point, termo contábil-econômico utilizado para indicar, na saúde financeira da empresa, o equilíbrio zero entre suas despesas e receitas.
De fato, a aferição de tais investimentos não é cálculo tão exato como o mencionado break even point, já que, em muitos casos, o prazo necessário para o retorno dos valores despendidos para o cumprimento do contrato é realizado em caráter meramente estimativo. Assim, o juiz, ao realizar a análise do caso concreto, deverá considerar todas as variáveis e possibilidades atribuíveis ao caso como, por exemplo, a venda de equipamentos para a quitação dos investimentos.
Vale dizer que a recuperação dos investimentos não remonta em obtenção de lucro. Desse modo, a manutenção contratual imposta pela lei não implica em permitir a lucratividade da outra parte, mas tão somente que esta atinja, com o cumprimento contratual, o ponto zero de equilíbrio.
Outrossim, vale dizer que a norma visa proteger o contratante que realizou investimentos necessários e imprescindíveis, sem os quais não seria possível o integral cumprimento do contrato. Certamente, não se consideram aqui os valores despendidos de forma aleatória aos deveres contratuais, totalmente dispensáveis para a execução da avença.
Assim, considerando que a manutenção imposta pela lei constitui em uma mitigação da autonomia privada e impede que a vontade da parte prevaleça, sua aplicação deve ser sopesada cum grano salis, evitando que haja abuso da parte beneficiada pelo instituto.
Destarte, além dos investimentos serem essenciais e imperativos ao adimplemento do contrato, eles (os investimentos) devem ser conhecidos pela parte contrária. Caso assim não fosse, o denunciante seria surpreendido com eventual alegação posterior do denunciado, quanto aos investimentos realizados, hipótese totalmente contrária à lealdade contratual que se exige das partes contratantes.
O consentimento ora mencionado, por óbvio, não exige o rigor formal do envio de notificação, mas pressupõe que tais fatos sejam disponibilizados para ciência do denunciante.
A título exemplificativo, pode-se citar os investimentos realizados para adequação de padronização de uma unidade franqueada. Ainda que o franqueado não tenha notificado formalmente o franqueador quanto aos investimentos percebidos, tendo em vista que a própria essência do contrato exige a padronização, não há como o franqueador alegar desconhecimento quanto a necessidade de investimentos realizados pelo franqueado.
Dessa forma, com a referida ciência quanto aos investimentos realizados pelo denunciado, ao denunciante não lhe será permitido resilir o contrato, ante a ocorrência da hipótese acima apresentada.
A princípio, apenas os contratos firmados por prazo indeterminado seriam objeto do parágrafo único do art. 473. Isto porque os contratos por prazo determinado não permitem, em regra, a resilição unilateral antes do prazo avençado. Uma vez denunciado, tal ato seria considerado como descumprimento contratual, sujeito às penalidades estipuladas no instrumento. Ademais, tendo em vista que as partes conhecem o período em que o contrato vigerá, realizarão os investimentos considerando o tempo de duração do pacto estabelecido entre as partes.
Contudo, há que ser considerado que, se a uma das partes for imprescindível a realização de investimentos no decorrer do contrato, e desde que respeitados os princípios da boa-fé objetiva e lealdade contratual, ela (a parte) poderá, ao término do prazo anteriormente pactuado, invocar o parágrafo primeiro do art. 473 objetivando a dilação do prazo contratual, de modo a permitir a recuperação dos valores despendidos. Trata-se de exceção à regra, que poderá, excepcionalmente ser aplicada, em atendimento aos princípios da função social, boa-fé objetiva e lealdade contratual.
Por outro lado, muito embora a prorrogação do contrato vise garantir ao denunciado que este recupere seu investimento, tal fato não poderá trazer desequilíbrio ao contrato, prejudicando a outra parte que não pretende manter-se na relação contratual.
Como mencionado linhas atrás, a disposição contida no parágrafo único do art. 473 relativiza substancialmente a autonomia privada das partes. Por ser norma cogente, à qual as partes não podem afastar por vontade própria, a manutenção compulsória do contrato por tempo delongado poderá trazer prejuízos ao denunciante da relação contratual.
Sendo que a pretensão do artigo que ora se estuda não é trazer desequilíbrio às prestações contratuais, a prorrogação do contrato não poderá gerar onerosidade excessiva à parte que teve mitigado o seu direito de resilir o contrato e que sequer pretendia se manter vinculado à avença.
Na lição de BDINE JUNIOR (2012), muito embora o contratante tenha sido tolhido da prerrogativa de resilir o contrato em face dos investimentos da outra parte, "não há regra que o obrigue a suportar prejuízo oriundo do desequilíbrio das prestações no período prorrogado. Identificado este, cumpre restabelecer as bases do negócio, sem necessidade de verificação dos requisitos exigidos para situações diversas, contempladas expressamente no CC (arts. 317 e 478)"
Dessa forma, a aplicação do art. 473, parágrafo único só poderá ser aplicado se preservar a manutenção do equilíbrio contratual, princípio basilar do direito privado.
Competirá ao juiz da causa ponderar o conflito dos interesses envolvidos no intuito de estabelecer um denominador comum quanto ao período do contrato a ser prorrogado, de modo a proteger o direito abarcado pela norma sem causar dano à outra parte.
No entanto, se restar demonstrado que a prorrogação compulsória trará lesão significativa ao denunciante, outra opção não restará senão a extinção do contrato, mediante o pagamento de indenização por perdas e danos.
O mesmo fim terão os contratos que tenham como elemento essencial a fidúcia entre as partes. Isto porque, ainda que um dos contratantes realize investimentos para o cumprimento de suas prestações, se a confiança se esvair, não há como obstar a intenção de qualquer dos contratantes em resilir o pacto, sem prejuízo de eventual composição dos danos mediante o pagamento de indenização. Nestes casos, a denúncia (ou revogação) produzirá efeitos imediatos.
Destarte, restando demonstrado que os interesses do denunciante em resilir se sobrepõem à recuperação financeira do denunciado, não se aplicará a norma contida no parágrafo único do art. 473.
Em breve linhas gerais, e sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, as considerações aqui apresentadas convidam os operadores do direito para uma reflexão acerca do dispositivo legal abordado que, muito embora tenha sido introduzido com o CC/02, pouco se discute sobre os limites de sua aplicabilidade.
1 Artigo 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
2 Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
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BDINE Jr., Hamid Charaf. Resilição contratual e o art. 473 do CC. Revista do Advogado. São Paulo, Ano XXXII, nº 116, p. 98-104. Jul. 2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze. et al Novo Curso de Direito Civil. Contratos. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007.Vol. IV.
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. Os novos princípios contratuais.
São Paulo: Saraiva, 2004.
LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (Coords.). Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2011.
PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 5ª edição revista e atualizada. Barueri, SP: Manole, 2011.
Luciana Randi
Mestranda em Direito Empresarial pela FACAMP. Especialista em Direito Contratual. Especialista em Direito Processual Civil.