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Responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet

Necessidade de modernização do Direito na era digital é crucial, especialmente com a centralidade dos provedores de serviços online.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Atualizado em 29 de abril de 2024 15:40

A necessidade de modernização do direito na era digital se torna cada vez mais crucial e inevitável, em especial diante do papel central desempenhado pelos provedores de serviços online. Bruno Zampier (2021) define esses provedores em duas formas distintas: provedores de serviço de acesso e provedores de serviços online, conhecidos também como provedores de aplicações de internet, do qual iremos tratar no decorrer deste artigo.

O primeiro grupo fornece acesso à internet, enquanto o segundo disponibiliza serviços realizados na internet, como e-mail, redes sociais e outros. Concentrando particularmente nos provedores de aplicações de internet, percebemos a complexidade dos desafios legais que surgem nesse ambiente.

As pessoas se encontram cada vez mais imersas nesse ambiente, desempenhando uma ampla gama de papeis na esfera digital, englobando até mesmo atividades profissionais remuneradas, como a de influenciadores digitais. Visualiza-se, ainda, a composição de patrimônios virtuais, partindo desde contas de e-mail e de redes sociais até criptomoedas, NFTs e tokens).

Consequentemente, múltiplos desafios emergem deste cenário digital. Veja-se, como exemplo, a situação hipotética de eventual plataforma que, após receber denúncias de outros usuários, bloqueia a conta utilizada por pessoa de notoriedade, prejudicando seu trabalho e eventuais contratos de divulgação de marcas - cenário que, em tese, terá que ser enfrentado pelo Poder Judiciário para aferição do direito do usuário a uma possível indenização por danos materiais e extrapatrimoniais.

Portanto, é essencial que o legislador reconheça a relevância desse novo paradigma e aprimore o ordenamento jurídico para melhor resolução dos litígios decorrentes das novas relações decorrentes deste mundo digital.

Relevante mencionar a iniciativa da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, cujo anteprojeto foi entregue ao Senado Federal neste mês de abril/24. A proposta contempla a inclusão de um livro exclusivo de direito digital, o qual contém observações sobre a responsabilidade civil dos provedores no ambiente digital. O anteprojeto delimita no artigo X o dever de todos os provedores e usuários, sendo os seus incisos: I - Responderem segundo as disposições do Código Civil e das leis especiais, pelos danos que seus atos e atividades causarem; II - Respeitarem os direitos autorais e a propriedade intelectual; III - Agirem com ética e responsabilidade, evitando práticas que possam causar danos a outros usuários, aos provedores, à integridade e segurança do ambiente digital; IV - Observar as leis e os regulamentos aplicáveis às condutas e às transações realizadas no ambiente digital.

Atualmente, com a inexistência de normativa específica, os magistrados, por vezes recorrem a jurisprudências, ao CPC e a legislações esparsas, como o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), resultando em alto grau de incerteza e insegurança jurídica.

Neste prisma, destaca-se que a insuficiência do Marco Civil da Internet em lidar com as demandas dos provedores tornou-se evidente, especialmente ao examinar o artigo 19 desta legislação. Este dispositivo, que trata da responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet, estabelece que tais plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros após uma ordem judicial específica que determine a tomada de providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

No entanto, o mencionado art. 19 do Marco Civil da Internet tem sido objeto de acalorados debates sobre sua constitucionalidade, dividindo a doutrina em diferentes perspectivas. Enquanto alguns sustentam a sua inconstitucionalidade, argumentando que a priorização da liberdade de expressão em detrimento de outros direitos constitucionais, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, entra em conflito com o art. 5º, X, da Constituição Federal, outros defendem sua adequação ao texto constitucional. Este último grupo baseia seu argumento no princípio da liberdade de expressão e no temor da censura, argumentando que a exclusão de conteúdos de forma subjetiva pelos provedores poderia ser equiparada a uma forma de censura. A discussão sobre a inconstitucionalidade do art. 19 ganha ainda mais relevância no contexto do RE 1.037.396, atualmente pendente de julgamento no STF.

Portanto, a responsabilidade civil na era digital é alvo de intenso debate, sobretudo quando da aplicação a um caso concreto, cada vez mais recorrente no Poder Judiciário. Um exemplo concreto que ilustra o impacto desta discussão é o caso exemplificado pelo julgado do TJ/MG, proferido nos autos da Apelação Cível 1.0000.23.048188-9/001:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - INVASÃO DE PERFIL EM REDE SOCIAL - APLICAÇÃO DE GOLPES EM TERCEIROS - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - DEMORA NA RECUPERAÇÃO DO ACESSO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PROVEDOR - DANOS MORAIS - CONFIGURADOS - SENTENÇA REFORMADA.

  • O provedor de aplicação na internet (instagram) responde, objetivamente, pelos danos causados ao consumidor em razão de defeitos do serviço disponibilizado, nos termos do art. 14, do CDC.
  • A invasão do perfil de usuário praticada por terceiro representa fortuito interno, visto que integra o risco da atividade e, por isso, não afasta a responsabilidade civil do fornecedor.
  • A demora no restabelecimento do acesso à rede social pelo usuário, permitindo que terceiros, nesse período, aplicassem golpes em nome daquele, é suficiente para prejudicar o nome e a honra do titular da conta, justificando-se a reparação pelos danos morais sofridos.
  • Recurso provido. Sentença reformada. (TJ/MG -  Apelação Cível  1.0000.23.048188-9/001, relator(a): des.(a) Mariangela Meyer , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 4/4/23, publicação da súmula em 10/4/23)

Neste caso, a mencionada Corte Estadual reconheceu a responsabilidade do provedor pelos danos causados ao consumidor devido a defeitos no serviço prestado. A invasão do perfil de usuário por terceiros foi considerada um evento previsível e, portanto, integrante do risco da atividade, não excluindo a responsabilidade civil do fornecedor. Além disso, o longo lapso na recuperação do acesso à rede social resultou, no entendimento dos ilustres Julgadores em danos extrapatrimoniais ao titular da conta, justificando a reparação.

Lado outro, tem-se outro exemplo recente que ilustra a complexidade da temática, desta vez apreciado pelo TJ/SC em 12/3/24. Diante de ação com pedido de indenização por danos morais proposta em virtude da criação de um perfil falso em rede social (Instagram) utilizado para publicação de enquetes de cunho sexual, o TJSC entendeu por afastar as alegações autorais rejeitando a alegação de responsabilidade civil do provedor baseada no dever de fiscalização:

RECURSO INOMINADO. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.  CRIAÇÃO DE PERFIL FALSO EM REDE SOCIAL (INSTAGRAM) ENVOLVENDO O NOME DA AUTORA. ENQUETES POSTADAS NOS "STORIES" DE CUNHO SEXUAL. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DA PARTE AUTORA. ALEGAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EVIDENCIADA EM RAZÃO DO DEVER DE FISCALIZAÇÃO. TESE IMPROFÍCUA. APLICAÇÃO DA LEI 12.965/14 (MARCO CIVIL DA INTERNET) AO CASO EM APREÇO. NORMA OBJETIVA. EXEGESE DO CAPUT DO ART. 19 DA REFERIDA LEGISLAÇÃO. NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AO PROVEDOR DE APLICAÇÃO PARA RETIRADA DO MATERIAL APONTADO COMO INFRINGENTE. CANCELAMENTO IMEDIATO DO PERFIL FALSO PELA RÉ. EXCEÇÃO CONTIDA NO ART. 21 NÃO APLICÁVEL À HIPÓTESE. IMAGENS QUE NÃO CONTÊM CENAS DE NUDEZ OU ATOS SEXUAIS DE CARÁTER PRIVADO DA AUTORA. MARCO CIVIL QUE EXCLUI A RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR DE APLICAÇÕES IN CASU.  RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA PELOS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS (LEI 9.099/95, ART. 46). (TJ/SC, RECURSO CÍVEL 5002568-39.2021.8.24.0028, do TJ/SC, rel. Edson Marcos de Mendonça, Segunda Turma Recursal, j. 12-3-24)."

Destaca-se que, no caso supra, a turma julgadora entendeu pela aplicação do art. 19 do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), registrando que a notificação judicial ao provedor para a retirada do material considerado infringente resultou no cancelamento imediato do perfil falso.

Diante dos precedentes citados acima, além da contínua "digitalização das relações sociais, urge que iniciativas como as adotadas no anteprojeto da atualização do Código Civil sejam realizadas com agilidade, a fim de garantir maior segurança jurídica e prevenir abusos, tanto por parte dos provedores de serviços quanto dos usuários. Espera-se, portanto, abordagem proativa pelos Legisladores e melhor compreensão do Poder Judiciário sobre este novo paradigma das relações humanas, com o intuito de promover um ambiente digital mais seguro e justo para todos os envolvidos."

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Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 27 de outubro de 2023.

Migalhas. O que é responsabilidade civil. Migalhas, 12 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/341887/o-que-e-responsabilidade-civil. Acesso em: 23 de outubro de 2023.

Manco, Bruno. Responsabilidade civil e coautoria em crimes eletrônicos. Conjur, 18 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-18/manco-responsabilidade-coautoria-crimes-eletronicos. Acesso em: 27 de outubro de 2023.

Zampier, Bruno. Bens digitais: propriedade, proteção e regulação. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 249.

Iberdrola. O que é cyberbullying e como prevenir. Iberdrola, 2023. Disponível em: https://www.iberdrola.com/compromisso-social/o-que-e-cyberbullying-como-prevenir. Acesso em: 27 de outubro de 2023.

Revista Marie Claire. Cyberbullying e assédio: violência virtual contra mulheres cresce 211% na pandemia. Revista Marie Claire, 2 de dezembro de 2021. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Feminismo/noticia/2021/12/cyberbullying-e-assedio-violencia-virtual-contra-mulheres-cresce-211-na-pandemia.html. Acesso em: 27 de outubro de 2023.

(BRASIL). Supremo Tribunal Federal. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549. Acesso em: 15 de março de 2024

Migalhas. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o art. 19 do Marco Civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/amp/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/340656/responsabilidade-civil-dos-provedores-de-internet. Acesso em: 15 de março de 2024

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Comissão de juristas entrega proposta de revisão do Código Civil ao Senado. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/17042024-Comissao-de-juristas-entrega-proposta-de-revisao-do-Codigo-Civil-ao-Senado.aspx . Acesso em: 28 de abril de 2024.

Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. "Documento da Comissão Especial". Disponível em: file:///C:/Users/ana.hordones/Downloads/ARQUIVO_PORTAL_CJCODCIVIL_8034ComissaoESPComissaoCJCODCIVIL20240315.pdf. Acesso em: 26 de março de 2024

Ana Clara Hordones

Ana Clara Hordones

Advogada pelo escritório Abi-Ackel e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Supremo.

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