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A matização dos princípios do administrativo sancionador na lei de improbidade administrativa

O artigo explora a aplicação dos princípios constitucionais de direito administrativo sancionador na lei de improbidade administrativa, destacando a imbricação com o direito penal. O direito penal exerce controle sobre o direito administrativo sancionador, mas sua aplicação deve ser matizada para evitar disfunções.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Atualizado às 15:26

Este artigo busca contribuir para a análise da aplicabilidade dos princípios constitucionais de direito administrativo sancionador na lei de improbidade administrativa a partir da lei 14.230/21.

O §4º do art. 1º da lei de improbidade administrativa, com a alteração promovida pela lei 14.230/21, determina a aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador ao sistema de improbidade.

Ao estabelecer a aplicação dos princípios constitucionais de direito sancionador, de imediato, sugere-se a aplicação dos princípios constitucionais de direito penal, em razão do seu caráter igualmente sancionador e punitivo. Em verdade, há certa imbricação entre o direito administrativo sancionador e o direito penal, que são braços de um "supraconceito de ilícito1" de direito público punitivo estatal, porém não são sinônimos e seus arranjos de sustentação não podem ser adotados, num e noutro, indistintamente, na medida em que "sus relaciones com el Derecho Penal son meramente laterales y em la actualidad de carácter meramente técnico".2

O direito penal, por conta disso, deve exercer no direito administrativo sancionador, como dito por Nieto, um "proceso de integración" a partir de três etapas: (i) o direito penal, por não tomar o lugar do direito administrativo sancionador, exerce função de controle dos excessos estatais, como base limitadora do autoritarismo estatal, de modo que o direito administrativo sancionador não pode ser exercido de modo mais rígido do que o direito penal; (ii) o direito penal possui aplicação subsidiária, porém os princípios constitucionais penais possuem aplicação direta ao direto administrativo sancionador; (iii) os princípios de direito penal ao direito administrativo sancionador devem ser aplicados de modo matizados, sob pena de disfuncionalidade do direito administrativo sancionador.

Se de um lado é possível estabelecer muitas semelhanças entre o direito e o processo penal com o direito administrativo sancionador, do outro há várias diferenças que, se aplicadas ao direito sancionatório, podem comprometer sua funcionalidade e desenvolvimento jurídico. Sob essa perspectiva, busca-se analisar como devem ser aplicados os princípios constitucionais penais ao direito administrativo sancionador, limites e adequações.

Alejandro Nieto cita julgado do Tribunal Supremo Espanhol no qual consigna "los principios inspiradores del orden penal son de aplicación, con ciertos matices, al derecho administrativo sancionador, dado que ambos son manifestaciones del ordenamiento punitivo del Estado."3 Prossegue referindo que não há como transfigurar os princípios de direito penal ao sistema administrativo em razão das especificidades ontológicas de cada ramo punitivo, já que o direito penal não compreende todos os ilícitos - e suas naturezas - que ocorrem no âmbito do direito administrativo, e propõe um "sistema de fontes"4 nos seguintes termos: (i) aplicação dos princípios regentes do direito sancionador constitucional, compreendidos os de direito penal e processual, porém devem ser "matizados e adaptados a las peculiaridades de cada ilícito administrativo concreto"; (ii) aplicação das disposições expressas do direito administrativo sancionador, sejam gerais, setoriais ou materiais; (iii) as lacunas e omissões existentes no item "ii" que não estão cobertas pelos vetores indicados no item "i", são resolvidas, em última análise, pelos princípios de direito penal, porém adaptados às circunstâncias dos ilícitos administrativos versados casuisticamente (matizados).

Logo, os princípios penais e processuais penais inegavelmente são aplicados no âmbito da improbidade, todavia não da mesma forma que incidem na órbita penal. Servem, pois, como garantias e referencial hermenêutico nos casos omissos do direito sancionador administrativo. Ainda, as normas e os princípios de direito administrativo sancionador devem ser respeitados tanto quanto os demais princípios penais e processuais, sem preterição.

Sustenta ainda referido autor, que a aplicação ao direito administrativo sancionador dos princípios inspiradores do direito penal deve ser realizada com certas "matizaciones".

Porém, como alerta Tomillo ao tratar dessas "matices", devemos compreender adaptações funcionais, não revogação ou derrogação do aspecto substancial do princípio. Tais adaptações devem preservar o núcleo do princípio, de modo que as alterações ocorrem somente em aspectos de natureza secundária.

Dado o caráter excepcional da matização, sua interpretação faz-se de modo restritivo. Por conta do aspecto restritivo, as matizações somente ocorrem quando justificadas em condições específicas que operam no direito administrativo sancionador.5

 Na prática, pode-se dizer, v. g., que a incidência do princípio da legalidade não atua no direito sancionatório administrativo do mesmo modo como se aplica ao direito penal. No direito penal o crime (contravenção) somente pode ser concebido por lei formal, estritamente formal. No direito sancionador, v. g., é possível a concepção de condutas ilícitas em lei, enquanto as gradações das punições podem ser previstas em resoluções, portarias etc. Por tal situação é que haveria de ser aplicado o princípio da legalidade ao direito administrativo sancionador com certas adequações e ressalvas, sob pena de inviabilizar a própria desenvoltura da atividade fim da administração pública.

Essa matização também é encontrada no direito sancionador Venezuelano, conforme "se há aceptado nacional e internacionalmente, que deba construirse un Derecho sancionatorio ajeno a los principios y la funetes dogmáticas del Derecho penal, donde en todo caso, dichos principios se aplican matizados al sancionatorio."6

Na doutrina Chilena, encontra-se a mesma disposição no sentido de que "a  falta  de  precisos  principios  del Derecho Administrativo Sancionador, a éste debieran aplicársele los principios de aquél y no los del Derecho Penal, como concluyen tales autores, o bien, los de este último, pero, claro está, por "regla general", es decir,  con excepciones y/o con matices, según corresponda".7

O mesmo tratamento é dado na Colômbia, conforme sentencia C-827/01 referida por Medina, em que os princípios sancionadores "siguen aplicando pero pueden operar com uma certa flexibilidad em relación com el derecho penal."8

No âmbito brasileiro o professor Rafael Munhoz de Mello sustenta que somente lei formal pode estabelecer as tipificações sancionadoras, inclusive é somente por via da lei em sentido estrito que deve ser previsto o ilícito e a respectiva sanção, não sendo suficiente "mera autorização à autoridade administrativa, dispondo genericamente sobre o poder de punir. É preciso que a lei descreva a conduta e a respectiva sanção."9 Segue refratário à possibilidade de cumprimento do princípio da legalidade por outras formas normativas, pois, diferente do sistema Italiano e Espanhol "no ordenamento brasileiro não há um diploma legal que estabeleça princípios e normas que devam ser observadas pela Administração Pública no exercício de sua competência punitiva, sendo raro encontrar na legislação referência à necessidade de lei formal para a criação dos ilícios e respectivas sanções."10

Não nos parece que assim seja. Ao referir, o professor Rafael Munhoz de Mello, que não há no ordenamento jurídico brasileiro um diploma que estabelece princípios e normas a serem observadas no desempenho da atividade administrativa punitiva, olvidou o disposto no art. 2º da lei 9.784/99, em que expressamente consigna a obediência pela administração pública do princípio da legalidade, dentre outros ali referidos.

Além no mais, o fato de não conter expressamente um sistema geral de sancionamento administrativo, não significa que as leis não possam prever a complementação em outros dispositivos normativos. Como exemplo a lei 10.233/01, que, entre outras matérias, criou a ANTT - Agência Nacional de Transportes Terrestres, em seu art. 24, XVIII, permite à ANTT "dispor sobre as infrações, sanções e medidas administrativas aplicáveis aos serviços de transportes." 

Especificamente na improbidade administrativa é possível, v. g., que uma norma regulamentar - decreto, resolução - estabeleça critérios de individualização e dosificação das cominações, já que, diferente do direito penal em que vigora o critério trifásico (art. 59 do Código Penal), a lei de improbidade não fornece critérios de escalonamento e de fases, mas diretrizes genéricas, conforme art. 17-C. Logo, o princípio constitucional da legalidade e individualização da pena resultam, assim, na improbidade administrativa, matizados em relação à sua incidência no direito penal.

A questão, além do mais, é bastante definida no âmbito do STJ, o qual inclusive já decidiu que "Não há violação do princípio da legalidade na aplicação de multa previstas em resoluções criadas por agências reguladoras, haja vista que elas foram criadas no intuito de regular, em sentido amplo, os serviços públicos, havendo previsão na legislação ordinária delegando à agência reguladora competência para a edição de normas e regulamentos no seu âmbito de atuação"11-12

O STJ tem firmado entendimento de que é possível a previsão na legislação ordinária para delegar competência para editar normas e regulamentos necessários ao âmbito de atuação da Administração.

Em conclusão, extrai-se que:

Por decorrer do direito público punitivo, tem-se que a aplicação dos princípios constitucionais de direito penal incidem aos atos de improbidade administrativa, conforme expressa previsão do §4º do art. 1º da lei 8.429/92 e lei 14.230/21.

A aplicação dos princípios constitucionais penais, como interlocução para aplicação dos princípios de direito administrativo sancionador, não ocorre do mesmo modo como opera no direito penal. Os princípios constitucionais de direito penal, para que sejam aplicados no direito administrativo sancionador e, por consequência, no âmbito da lei de improbidade administrativa, devem ser matizados.

A matização justifica-se a partir de um sistema de fontes, no qual aplicam-se os princípios penais constitucionais, sem prejuízo dos princípios regentes do direito administrativo sancionador.

Ainda, a matização dos princípios constitucionais penais, não significa transfiguração do princípio a ser aplicado, devendo preservar seu núcleo, com adaptações a aspectos secundários e somente ocorrem quando justificadas em condições específicas que operam no direito administrativo sancionador.

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1 A expressão supraconceito é utilizada por Alejandro Nieto ao referir decisão a STS de 9 de fevereiro de 1972 em que se desenvolveu "las contravenciones tipificadas [em um reglamento administrativo] se integran em el supraconceito del ilícito, cuya unidad substancial es compatible com la existencia de diversas manifestaciones entre las cuales se encuentra tanto el ilícito administrativo como el penal..." GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 124

2 "El derecho Administrativo Sancionador no debe ser construído com los materiales y com las técnicas del Derecho Penal sino desde el proprio Derecho Administrativo, del que obviamente forma parte, y desde la matriz constitucional y del Derecho Público estatal.  GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 30

3 https://vlex.es/vid/9-as-15-29-14-30-53-21-7-8-105-15034932

4 GÁRCIA. Alejandro Nieto. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª edición. Reimpresión. Madrid: Tecnos, 2018. 146.

5 TOMILLO, Manuel Gómez. principios constitucionales nucleares del derecho penal y matices característicos del derecho administrativo sancionador. Revista de Derecho aplicado LLM UC, n. 6, 2020.

6 BOCANEY. José Gregorio Silva Bocaney. Los principios substantivos del Derecho Administrativo Sancionador. In: Hernandéz-Mendible (Coord.) Derecho Administrativo Sancionador. Caracas, CIDEP, 2019. p. 58.

7 CORDERO, Cristián Román. El derecho administrativo sancionador en Chile. Revista de Derecho, v. 8, n. 16, p. 89-101, 2009.

8 MEDINA. Manuel Restrepo. El Derecho Administrativo Sancionatório em Colombia. In: Hernández-Mendible. (Coord.) Derecho Administrativo Sancionatório. Caracas, CIDEP, p. 354.

9 MELLO. Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 121.

10 MELLO. Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 124.

11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma no AgRg no AREsp 825.776/SC, de relatoria do Ministro Humberto Martins, DJe 13.4.2016.

12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1807533/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/02/2020, DJe 04/09/2020.

Marcos Augusto Brandalise

VIP Marcos Augusto Brandalise

Promotor de Justiça no Estado de Santa Catarina. Ex-promotor de Justiça do Estado do Ceará. Professor de direito penal. Titular da 4ª promotoria regional da moralidade administrativa em Xanxerê - SC.

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