Upcycling, second hand e o dia mundial da propriedade intelectual em 2024
A WIPO escolheu "PI e os ODS: Construir nosso futuro comum com inovação e criatividade" como tema para o dia mundial da propriedade intelectual de 2024, celebrado em 26 de abril. O foco está nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, visando soluções sustentáveis.
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Atualizado em 25 de abril de 2024 14:57
Para o ano de 2024 a WIPO1 (OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual) elegeu como mote do dia mundial da propriedade intelectual: "PI e os ODS: Construir nosso futuro comum com inovação e criatividade". O dia mundial da propriedade intelectual é comemorado todo dia 26 de abril. A sigla ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, adotada pelos Estados-Membros das Nações Unidas em 2015, elenca 17 metas2 que visam uma parceria global dos países (sejam eles desenvolvidos ou não) na tentativa da promoção de um planeta melhor e mais seguro.
Parte dessas metas se amoldam a soluções que possam ter impacto positivo ao meio ambiente e, nesse ponto, é urgente que a indústria da moda adote uma agenda consciente. Essa indústria, que é considerada a segunda mais poluente do mundo3, tem sido protagonista de maus exemplos quanto ao meio ambiente.
Ao menos nos últimos dois anos a imagem do Deserto do Atacama, no Chile, entulhado de roupas circula na mídia tradicional e nas redes sociais, em que pese se especule que o local já seja usado para esse descarte há cerca de 15 anos. As toneladas de roupas (que demoram cerca de 200 anos para de desintegrarem) jogadas no deserto costumam ser atribuídas ao modelo do fast-fashion4.
Segundo a professora Francisca Dantas Mendes5, no fast-fashion os produtos são produzidos, consumidos e descartados em um curto período. Essa rapidez pode estar associada às diversas ondas de mudanças do que "estaria na moda para ser usado" e, consequentemente, para que haja grande circulação há uma consequência direta na fixação de preços baixos. A professora ressalta, ainda, que do ponto de vista social esse grande volume de produção não reflete, necessariamente, em aumento de quadro de funcionários legalizados. À título exemplificativo, nos últimos anos significativos foram os casos de grandes redes acusadas e investigadas por ilícitos, tais como, o trabalho análogo à escravidão.
Ainda na América Latina, tem-se exemplo de lixo têxtil em grandes quantidades na região do Brás, em São Paulo6. Estima-se que um apenas um dia o lixo têxtil produzido naquela região (que é reconhecida pelo comércio de roupas) pese o mesmo que dois iates.
Em sentido inverso, hoje o mundo da moda se depara com o crescimento do upcycling e do mercado de second hand. Em bom português, trata dos mercados de reaproveitamento e de revenda de peças usadas. Ambas as condutas podem ser tidas como exemplos de economia circular.
O upcycling7 trata de direcionar a novos propósitos, usos, destinos, efetivar melhoramentos, transformações e mudanças nos materiais, peças, acessórios que seriam descartados. À título exemplificativo, no Rio de Janeiro foi criada a Oficina Muda8 que seleciona, analisa, reaproveita e repara peças advindas de diferentes sociedades empresárias.
O sucesso desse modelo atrai, inclusive, setores do luxo tradicionalmente conhecidos como alheios a tal preocupação. A sociedade empresária Louis Vuitton9 anunciou que a coleção denominada "Be Mindful" foi criada com a utilização de sobras de insumos de antigas coleções através da realização de upcycling.
O modelo do upcycling reacende debates sobre a exaustão de direitos de propriedade intelectual10 e as importações paralelas11. Se de um lado há aqueles12 que creem que a transformação de materiais excluiria a aplicação da exaustão de direitos; para além do prestígio da exaustão de direitos, da livre concorrência (art. 170, IV, CRFB) e da livre iniciativa (art. 1, IV da CRFB) também é necessário incluir nesse debate os impactos ambientais.
Regras objetivas e claras advindas da PI para a promoção do upcycling podem ser cruciais para a conciliação entre a circulação de mercadorias, integridade das marcas, proteção do consumidor para evitar confusão e associação e o equilíbrio ambiental13.
No âmbito das patentes, o upcycling pode gerar novas criações técnicas que podem usufruir da exclusividade após o devido exame pelo INPI. Na seara de patentes é possível que o depositante usufrua de um exame mais célere acaso sua tecnologia esteja albergada pelas chamadas patentes verdes. O INPI (baseado em inventário da OMPI) criou uma listagem com tecnologias que estariam hábeis a ganharem tal benefício e dentre os itens está o gerenciamento de resíduos.
Já o second hand, nomenclatura anglófona para o conhecido brechó, tem até uma data comemorativa que é celebrada em 25 de agosto. Neste ramo, o volume de vendas e de lucro aumenta a cada ano e nos Estados Unidos a expectativa é que até 2030 ele supere o valor arrecadado no fast-fashion. Em relação especificamente ao mercado global de bens de luxo de segunda mão é esperado que o mercado atinja cerca de US $ 78,33 bilhões em 2031, que é mais que o dobro desse mesmo mercado em 202114.
Recentemente o questionamento dos limites do second hand ganhou as manchetes com o caso Chanel x What Goes Around Comes Around (WGACA). Em que pese o sensacionalismo sobre a decisão emanada pelo Tribunal Federal de Nova York, naquele caso entendeu-se por: violação de marca, associação falsa (anunciava-se uma falsa associação comercial com a Chanel) e publicidade enganosa. A WAGACA (brechó estadunidense), segundo a decisão, estaria vendendo bolsas falsificadas da Chanel com o uso de números de séries ilicitamente subtraídos da grife francesa.
Apesar das condutas da WAGACA o mercado de brechós ao simplesmente comercializar peças (ainda que contenham marcas de terceiros) não infringe direitos do titular da propriedade intelectual. Inclusive eventuais publicidades que estampem a marca que é comercializada está protegida pela liberalidade explicitada no art. 132 da LPI.
Diante de alguns exemplos foi possível perceber meios e oportunidades para que a Propriedade Intelectual possa promover e incentivar impactos positivos no meio ambiente também através da indústria da moda.
1 Disponível em: https://www.wipo.int/pt/web/ipday/2024-sdgs/index, última visualização em 19/04/2024.
2 Disponível em: https://sdgs.un.org/goals, última visualização em 19/04/2024.
3 Disponível em: https://www.vertown.com/blog/industria-moda-impactos-meio-ambiente/#:~:text=A%20ind%C3%BAstria%20da%20moda%20%C3%A9,de%20roupas%20descartadas%20no%20Chile!, última visualização em 19/04/2024.
4 Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/o-modelo-fast-fashion-de-producao-de-vestuario-causa-danos-ambientais-e-trabalho-escravo/, última visualização em 19/04/2024.
5 Docente do curso de Têxtil e Moda na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e coordenadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa Sustentabilidade na Cadeia Têxtil (NAP SUSTEXMODA).
6 Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/em-um-dia-o-lixo-textil-coletado-somente-na-regiao-do-bras-em-sao-paulo-pesa-quase-o-mesmo-que-dois-iates-de-luxo-juntos/ , última visualização em 05/07/2023.
7 "O termo upcycling foi cunhado pelo ambientalista alemão Reine Pilz, em 1994." Disponível em: https://www.ecycle.com.br/upcycling/, última visualização em 19/04/2024.
8 Disponível em: https://www.oficinamuda.com.br/institucional/upcycling, última visualização em 19/04/2024.
9 Disponível em: https://harpersbazaar.uol.com.br/bazaar-green/louis-vuitton-prova-que-upcycling-e-puro-luxo/, última visualização em 19/04/2024.
10 BARBOSA, Denis Borges. Do direito de marcas: uma perspectiva semiológica. 2007, p. 192. Disponível em: https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/do-direito-das-marcas.pdf, última visualização em 19/04/2024.
11 KLEINDIENST, Ana Cristina von Gusseck; SAITO, Leandro e BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. A autonomia interna e as relações externas nos contratos empresariais: as restrições verticais, o direito antitruste e a importação paralela. Revista da EMARF, Rio de Janeiro, v.19, n.1, p. 11-72, nov.2013/abr.2014, p. 49-50. Disponível em: https://emarf.trf2.jus.br/site/documentos/revistaemarfvol19.pdf, última visualização em: 19/04/2024.
12 FERRER, Gustavo Gonçalves e KARABACHIAN, Sofia Chamma. Upcycling na moda e direitos de propriedade intelectual. Publicação no Jota de 17/12/2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/upcycling-na-moda-e-direitos-de-propriedade-intelectual-17122023, última visualização em 19/04/2024.
13 Nesse sentido: https://www.wipo.int/wipo_magazine_digital/pt/2023/article_0022.html, última visualização em 19/04/2024.
14 Disponível em: https://www.businessresearchinsights.com/pt/market-reports/secondhand-luxury-goods-market-102564, última visualização em 19/04/2024.
Lívia Barboza Maia
Professora Mackenzie Rio. Coordenadora Curso de Extensão em Fashion Law PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Civil (UERJ). Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC-Rio. Sócia DBBA.