Repita comigo: Médico com registro ativo no CRM não pode ser condenado por exercício ilegal da profissão
O Direito Médico cresce entre advogados, mas ainda há desconhecimento em outras áreas jurídicas. A recente prisão de um médico por exercício ilegal destaca essa falta de entendimento. A lei 3268/57 exige registro para médicos exercerem legalmente, conforme o parecer do CFM 9/16.
segunda-feira, 22 de abril de 2024
Atualizado às 15:48
O Direito Médico tem crescido de forma exponencial entre advogados, porém, infelizmente, não vemos o mesmo progresso e desenvolvimento da especialidade no campo de atuação das demais profissões jurídicas. Apesar do presente texto não buscar discutir um caso em específico, é incontroverso que a recente prisão de um médico por exercício ilegal da profissão revela o véu da ignorância que cobre determinados profissionais do Direito em relação ao Direito Médico.1
O art. 17 da lei 3.268/57 estabelece que:
Art. 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade.
Nesse sentido, os pareceres do Conselho Federal de Medicina são categóricos:
Parecer CFM 9/16
O médico devidamente registrado no CRM - Conselho Regional de Medicina da jurisdição na qual atua está apto a exercer a profissão em toda sua plenitude...
Parecer CFM 21/10
O médico devidamente inscrito no CRM está apto ao exercício legal da medicina, em qualquer de seus ramos...
Parecer CFM 17/04
Os CRMs não exigem que um médico seja especialista para trabalhar em qualquer ramo da Medicina, podendo exercê-la em sua plenitude nas mais diversas áreas, desde que se responsabilize por seus atos...
Além disso, o referido entendimento possui eco na resolução CFM 1.627/01:
O exercício dos atos médicos é função privativa de quem é formado em Medicina em estabelecimento educacional oficial ou oficialmente reconhecido, estando, portanto, legalmente capacitado. Ademais, exige-se que esteja formalmente habilitado pelo Conselho Regional de Medicina de seu estado, e registrado no organismo competente de vigilância sanitária do sistema de saúde a que estiver vinculado.
Não é possível ser meio médico. Nem alguém pode ser uma fração qualquer de um médico. O especialista não é nem pode ser um pedaço de médico. É um médico inteiro, que atua com mais desembaraço e maior capacidade em determinada área da Medicina. A despeito disso nem sempre ser verdadeiro na prática, a especialidade deve enriquecer o médico e não empobrecê-lo em sua capacidade profissional, limitando-o.
Compreender que um médico precisa ser especialista para praticar determinado ato médico representaria, em última instância, reduzir a liberdade profissional dos "bacharéis em Medicina". Registre-se que o uso da errônea expressão "bacharéis" é proposital, pois a lei 12.842 estabelece que o graduado em Medicina deve ser chamado de Médico, e apenas isso. Não existe médico habilitado a exercer apenas a especialidade X, Y ou Z.
De acordo com a última demografia médica publicada pelo CFM, o Brasil possui 598.573 médicos inscritos, porém apenas 323.249 (trezentos e vinte e três mil, duzentos e quarenta e nove) profissionais são especialistas.2
Se, para exercer a profissão, houver a necessidade de ser especialista, os 46% dos médicos brasileiros seriam de um vazio profissional absurdo, pois não poderiam atuar em nenhuma das 55 especialidades e 59 áreas de atuação profissional.3 Se o médico não especialista não pode atuar em nenhuma especialidade ou área de atuação, nada sobrará em termos de atuação profissional. Depois de 06 sacrificados anos na graduação de Medicina, o médico seria apenas o titular de um papel de "médico" que nada pode fazer profissionalmente.
A despeito dos números assustadores observados no Brasil de mais de 02 casos por dia de exercício ilegal da profissão, conforme dados do Conselho Federal de Medicina, este crime é praticado por não médicos (não graduados em Medicina) que passam a exercer a profissão médica.4
O exercício da Medicina de forma irregular não se confunde com o exercício ilegal. Enquanto o primeiro está exclusivamente no campo administrativo e cível, o segundo constitui crime. Para fins didáticos, um médico devidamente registrado não pode divulgar que é especialista em determinada área sem o devido RQE - Registro de Qualificação de Especialidade. Ou seja, regra geral, o RQE é a autorização administrativa de divulgação da condição de especialista. Ocorre que o direito de se divulgar especialista não se confunde com o direito de exercer uma especialidade. Todo médico pode exercer uma especialidade, mas nem todo médico pode divulgar a especialidade. São coisas distintas que, infelizmente, os não letrados no Direito Médico não conseguem compreender.
De igual forma, o não especialista possui algumas restrições como assumir a Direção Técnica de serviço especializado, conforme previsto na Resolução CFM 2007/2013, e o Responsável Técnico da UTI, UTI Pediátrica e UTI Neonatal deve ser especialista na respectiva área, conforme RDC 7/10 da ANVISA.
Ocorre que todas as eventuais infrações administrativas devem ser apuradas na esfera competente, porém não podem, jamais, ser equiparadas à infração penal.
Se a norma penal busca tutelar a saúde pública - por isso que o exercício ilegal da Medicina, Odontologia e Farmácia são crimes e o exercício das demais profissões apenas contravenções penais, conforme art. 47 da lei de contravenções penais - e o médico pode exercer a profissão em sua completude, independente de ser especialista ou não, não há nenhum risco à saúde pública nas hipóteses de não especialista atuando em área típica de determinada especialidade, o que reforça a ausência de lesão à bem jurídico tutelado criminalmente. O perigo abstrato previsto pela norma inexiste, justamente pela ausência de perigo decorrente da autorização legal para exercício pleno.
Em tempos de devido processo legal, causa estranheza e espanto os pré-julgamentos realizados por determinados operadores do Direito e a ausência de uma busca por uma compreensão das particularidades de cada uma das novas áreas do Direito. A título reflexivo, talvez seja o momento de uma revisão dos conteúdos exigidos na formação dos juízes, delegados e promotores, pois o Direito não pode ser reduzido às disciplinas tradicionais, como se ainda estivéssemos no séc. XX.
1 Disponível em: https://cremepa.org.br/noticias/nota-oficial/ e https://sindmepa.org.br/2024/04/prisao-de-medico-em-terra-santa-foi-arbitraria/
2 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Demografia Médica. Disponível em: https://observatorio.cfm.org.br/demografia/dashboard/. Acesso em 17 de abr. 2024.
3 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2330.2023. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2023/2330. Acesso em 17 de abr. 2024
4 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Brasil registra dois crimes de exercício ilegal da medicina por dia, aponta levantamento do CFM. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/brasil-registra-dois-crimes-de-exercicio-ilegal-da-medicina-por-dia-aponta-levantamento-do-cfm/. Acesso em 17 abr. 2024.
Igor Mascarenhas
Doutor em Direito pela UFPR. Doutorando em Direito pela UFBA Mestre pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo CDB (Coimbra). Professor de Medicina do UNIFIP Centro Universitário. Membro consultor da comissão especial de Direito Médico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Advogado.
Sarah Carvalho
Advogada. Pós-graduada em Ciências Criminais e Interseccionalidades. Membro do Instituto de Ciências Criminais (ICP) e da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Pesquisadora com ênfase em Direito Penal Médico, Bioética e Feminismo.