O banco central do Brasil como empresa pública: Com a corda no pescoço e o banquinho balançando
Proposta de transformação do BCB em empresa pública levanta questões sobre sua autonomia e papel institucional, enquanto a profusão de emendas constitucionais no Brasil reflete instabilidade jurídica.
segunda-feira, 22 de abril de 2024
Atualizado em 19 de abril de 2024 15:07
Introdução
A proposta de emenda constitucional - PEC 65/2023, da qual já tratamos antes sob outro aspecto1, pretende transformar o BCB em empresa pública, ou seja, cujo controle acionário pertencerá integralmente à União.
Recordemos sob que forma esse Órgão foi criado pela Lei 4.595, de 31.12.1964 que, conforme consta do seu artigo 8º, teve nascimento na condição de uma autarquia Federal, com personalidade e patrimônio próprios. Portanto, integrante da administração indireta do Estado. Com a promulgação da Lei Complementar 179/2021 ele alcançou finalmente, depois de quase cinco décadas, uma muito esperada autonomia, na esteira dos bancos centrais estrangeiros, seguindo os modelos do direito comparado. Esse tema foi objeto da minha preocupação com um estudo aprofundado realizado em 2001, seguido de outro datado de 20052.
No tocante à atuação do BCB, destacavam-se: (i) o dever de cumprir e fazer cumprir as disposições legais pertinentes e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional - CMN; (ii) emissão da moeda; (iii) os serviços do meio-circulante; (iv) o recolhimento compulsório; (v) operações de redesconto; (vi) controle do crédito; (vii) o controle dos capitais estrangeiros; (viii) ser depositário das reservas de ouro e de moeda estrangeira e de Direito Especiais de Saque; (ix) exercer a fiscalização das instituições financeiras; (x) fiscalizar as atividades das instituições financeiras; (xi) atuar para manter em regularidade o mercado de câmbio e o equilíbrio do balanço de pagamentos; etc.
Como nem tudo são flores, a referida MP 179 deixou uma casca de banana no caminho do BCB, ao estabelecer de forma confusa um mandato duplo para o exercício de suas funções, no seu art. 1º e parágrafo único, tema também objeto de outros textos da minha autoria3. Essa questão do mandato duplo (ou múltiplo em alguns casos) tem dificultado a atuação dos bancos centrais, como está acontecendo atualmente em relação ao FED, espremido em segurar/reduzir a inflação nos USA e garantir a empregabilidade, uma escolha entre ficar dentro da frigideira quente ou pular diretamente no fogo. E nesse contexto as empresas e famílias daquele país estão são apanhadas, contrariamente ao seu interesse individual, em cortes de crédito e diminuição da velocidade da redução da taxa básica de juros. Essa discussão não é a preocupação deste texto e sim a malfadada transformação do BCB em empresa pública, tipo de entidade que existe somente nos países cuja economia é objeto de intervenção direta do governo, para o bem e, mais frequentemente, para o mal. E para tanto deverei falar um pouco sobre instituições.
1. Instituições e segurança jurídica
Em tempos imemoriais a humanidade deixou de ser caçadora/coletora - e, portanto, nômade - porque era mais garantido tornar-se sedentária, buscando seu sustento de forma mais segura, pelo recurso à agricultura e à domesticação de animais, fenômeno econômico que permanece até os dias de hoje. Essa teria sido a primeira forma de instituição, apta a dar mais segurança e certeza em relação à sobrevivência, cuja característica principal está na sua expressiva durabilidade ao longo do tempo. Depois foram desenvolvidas outras instituições essenciais à sociedade, o direito de propriedade e a moeda. Para a finalidade deste texto é preciso abordar ligeiramente a teoria institucional, com base principalmente em Douglass North4, cuja análise em extensão e profundidade não cabem neste artigo, como é evidente.
As obras mais importantes daquele autor nesse campo são "Institutions, Institutional Change and Economic Performance", de 1990 e Institutions, transaction costs, and the rise of merchant empires", em The Political Economy of Merchant Empires, State Power and World Trade 1350-1750, James D. Tracy (ed.), Cambridge University Press, Cambridge, 1997, (1ª ed. 1991) que, juntamente com estudos de Willianson, Coase, Demsetz e Alchian, entre outros, deram origem a um programa de pesquisa da Nova Economia Institucional5.
O que interessa para este momento são as conclusões gerais às quais chegou Douglass North (aqui somente relacionadas as que particularmente se tornam necessárias para este texto), no sentido de que (i) a incerteza é a circunstância sob a qual se encontram os ambientes econômicos e sociais dos agentes; (ii) como resultado surgem os custos de transação6; (iii) com a finalidade da redução desses custo na coordenação da atividade humana as sociedades desenvolveram as instituições que se caracterizam como um conjunto de regras duradouras no tempo, de natureza formal e informal; e (iv) o conjunto dessas normas é encontrado na chamada matriz institucional das sociedades, que tem a natureza de path dependent7.
A garantia jurídica do direito de propriedade pode ser considerada uma instituição universal na sociedade humana, sem a qual ela não poderia jamais ter se desenvolvido. E é extremamente interessante verificar que Douglass North relacionou no seu estudo de 1990 organizações como os piratas, a Máfia8, a General Motors, e as indústrias químicas. Estas últimas geram demandas voltadas para a eficiência e a para a aquisição de novos conhecimentos, exercendo atividades produtivas; enquanto os primeiros, no processo de saquear e de roubar, estariam dando privilégios a atividades distributivas entre os seus membros. Nesse sentido podemos relacionar no Brasil as escolas de samba, o jogo do bicho e os times de futebol. Suas regras internas, formais e/ou informais se têm mantido extremamente resilientes ao longo de muito tempo, merecendo a inteira credibilidade dos usuários/consumidores. Se as regras falharem perde-se a confiança e a instituição primeiro se esgarça e depois desaparece.
2. As constituições federais como instituições primordiais nas sociedades. Os fascículos constitucionais brasileiros
Quando pensamos em certeza e segurança jurídica é evidente que ela é dada à determinada sociedade humana pela sua constituição nacional, que deve ser perenizada como regra, permitidas mudanças quando isso se torna extremamente necessário, para o fim de sua atualização em vista de mudanças radicais na sociedade e não como o ingrediente casuístico de uma receita, que pode ser mudado por outro sem que o resultado se desfaça.
Por exemplo, a constituição norte-americana foi promulgada em 1789 e foi alterada apenas vinte e sete vezes, a partir dos sete artigos originais (isto mesmo, só sete artigos, o que significa dizer que quantidade não implica em qualidade.), após os quais são acrescentadas aquelas emendas9.
Do nosso lado, desde a proclamação da independência tivemos uma farta coleção de constituições e de emendas em profusão. Vamos a elas, em número de oito.
(i) Constituição de 1824 - Outorgada pelo Imperador D. Pedro I, teve a duração de sessenta a cinco anos.
(ii) Constituição de 1891 - a primeira da República, promulgada no governo de Deodoro da Fonseca.
(iii) Constituição de 1934 - outorgada por Getúlio Vargas ao tempo do chamado Estado Novo, com curta duração, de três anos.
(iv) Constituição de 1937 - também assinada por Getúlio Varga, chamada de Carta Constitucional do Estado Novo.
(v) Constituição de 1946 - assinada por Eurico Gaspar Dutra.
(vi) Constituição de 1967 - promulgada no regime do governo militar de Humberto Castelo Branco.
(vii) Constituição de 1969 - renovou a anterior por meio da Emenda nº 1, sob o governo do Arthur da Costa e Silva.
(viii) Constituição de 1988 - chamada de "Constituição Cidadã", dentro do processo de redemocratização. Ela sofreu cento e trinta e duas emendas até dezembro/2023. Atualmente há inúmeras propostas de emendas constitucionais.
A quantidade de constituições federais até a de 1988 reflete mudanças políticas relevantes no Brasil, a exemplo dos processos ditatoriais que o país atravessou. Mas a profusão imensa de emendas à atual constituição indica que ela não apresenta absolutamente o caráter de instituição, banalizada por mudanças casuísticas para o fim do atendimento de interesses de determinados grupos e não para o bem geral.
E o processo de desinstituição é geral em todos os setores da sociedade, a exemplo do que se tem feito e se pretende fazer com nova reforma da lei de falência e de recuperação judicial. Como se sabe e com toda razão, o antigo Decreto-Lei 7.661/1945, nossa antiga lei de falências e de concordata foi revogado e substituído pela Lei 11.101/2005 e esta reformada pela Lei 14.112/2020. No momento se pretende fazer nova mudança, passados tão somente quadro anos desse último texto legal, sobre cujos princípios ainda são feitas diversas discussões quanto o seu entendimento, indagando-se se o novo texto legal, uma vez aprovado na forma como foi proposto chegará mesmo a algum ganho de eficiência, especialmente no que tange à eficácia da RJ - que tem alcançado um patamar de sucesso muito baixo - e de redução de custos de transação em geral.
3. Os bancos centrais como instituições. O caso do Banco Central do Brasil
A durabilidade dos ordenamentos jurídicos dos bancos centrais no direito comparado é um dos elementos que os demonstram com a qualidade de instituições. Mas existem outros, conforme foi demonstrado em trabalho da minha autoria, citado na nota nº 2, supra, como sua caracterização na condição de órgão do Estado e não do governo10; orçamento próprio independente do governo; a existência de mandatos físicos para os seus dirigentes; e quadro de pessoal eficiente e estável, para que não fique sujeito a pressões políticas; e o respaldo da sociedade.
No caso do BCB faltam ainda alguns desses elementos e a proposta de sua organização, sob a forma de uma empresa pública mostra-se extremamente preocupante. Isso porque toda e qualquer garantia para o fim da autonomia daquele pode ser derrubada a qualquer momento por outra PEC. Já foi mostrado exaustivamente neste texto que não temos instituições jurídicas e o novo BCB, na forma de uma quase instituição, pode soçobrar em virtude da interesses políticos que se apresentem no futuro, voltados para a implementação da uma novíssima matriz econômica, consistente na aforisma de que gasto é vida, o que deixa os pais da economia em verdadeira polvorosa nos seus túmulos.
Um ponto a destacar nessa pretendida reforma está em saber como uma empresa pública pode ser dotada de poder normativo cogente e o modelo da CEF não se presta a dar um entendimento quanto a este tema.
Ressalte-se que na Lei 4.595/1964 o Banco do Brasil mereceu tratamento próprio (arts. 19 a 21), exercendo um papel relevante em algumas áreas nela determinadas, mas não é dotado de qualquer poder normativo.
Por sua vez, a CEF - que, reforcemos, é uma empresa pública federal - é tutelada pelos artigos 23 e 24 tão somente como uma das demais instituições financeiras públicas, sem regramento próprio. Ela se reveste da qualidade de agente auxiliar do governo na sua política de crédito, sujeita à disciplina do Ministério da Economia e sob a fiscalização do BCB, despida de poder normativo. Seria interessante ver como uma empresa pública regeria as atividades de todas as instituições financeiras, bem como a de uma companheira, dotada da mesma forma jurídica. Um desafio normativo do qual certamente não se aperceberam os autores do projeto em questão.
E não se tocou no projeto o assunto da capitalização dessa nova empresa pública, que terá de ser na casa de dezenas e dezenas de bilhões. De onde sairá esse dinheiro?
Conta-se uma história do mercado financeiro antigamente em funcionamento no centro velho de São Paulo. Havia um pipoqueiro que tinha o seu carrinho na porta de u banco. Numa ocasião alguém lhe pediu um empréstimo e ele disse que tinha um acordo com aquele banco: ele não dava empréstimos e o banco não vendia pipoca. Ou seja, cada macaco no seu galho. Isso significa dizer que os congressistas não são dotados de competência técnica adequada para realizarem uma reforma tão profunda no BCB - e tão pouco tempo depois da anterior - sem terem para tanto buscado o conselho da maior quantidade e qualidade de agentes financeiros/econômicos para o fim de produzirem uma reforma estritamente necessária, segundo a natureza dos bancos centrais, contemplando o BCB com os elementos faltantes da sua economia e não os colocando em perigo, pois como todos temos visto, lei vigente hoje é lei morta amanhã. Ou no mesmo dia, se der tempo de incluir no diário oficial.
Conclusão
O BCB está com a corda no pescoço e há muita gente desejosa de chutar o banquinho no qual ele ainda se equilibra, para prejuízo geral, cujos autores da mudança pretendida não valorizam a sua atuação a bem da sociedade, como bem mostra a criação do PIX, cuja utilização democratizou os meios de pagamento, ainda que problemas no tocante a esse instrumento possam ser constatados, mais que não é assunto desta hora.
Ah, tenho de me desmentir. Acabei de descobrir sim, que temos ao menos uma instituição verdadeira: a de que não as temos.
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1 Vide "Receita para detonar o Banco Central do Passado, do presente e do futuro", Migalhas de 28.03.2024.
2 Cf. "Os Regimes Políticos dos Bancos Centrais", in "Direito da Integração", originado do Núcleo de Pesquisa Jurídica da UNICID - Universidade Cidade de São Paulo, São Paulo, 2001, por essa publicado em conjunto com a Editora Cultural Paulista, pp. 113 a 512; e "Bancos Centrais no Direito Comparado - O Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil (O regime vigente e propostas de reformulação", Ed. Malheiros, São Paulo, 2005.
3 Vide "O Banco Central do Brasil com os pés em duas canoas - Isto não vai dar certo", I e II, Migalhas de 18.11 e 24.11.2022.
4 Vide "A teoria institucional de Douglass North", por Paulo Gala, in https://doi.org/10.1590/0101-31572003-0684 , acesso em 17.04.2024.
5 Cf. M. Rutherford, "Institutions in Economics, the Old and the New Institutionalism", Cambridge University Press, 1994.
6 Explicando de maneira bem simples significam as despesas e os esforços desenvolvidos pelos agentes para o fim de se alcançar o resultados mais eficiente que for possível.
7 Um processo segundo o qual, nas ciências sociais, eventos ou decisões passados restringem/influenciam eventos ou decisões posteriores.
8 Essas "organizações" eram regidas por códigos próprios, duradouros, não escritos e a quebra de suas normas levava à aplicação de penas severas, até mesmo a morte.
9 O historiador Capistrano de Abreu fez a proposta de uma constituição de somente um artigo: "Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cada. Parágrafo único - Revogam-se as disposições em contrário".
10 É uma confusão feita por ignorância e/ou por cálculo político do Presidente da República, que atacou diversas vezes do Presidente do BCB, a quem chegou a taxar de "aquele sujeito".
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.