MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Neurodireitos - A tutela do nossa mente

Neurodireitos - A tutela do nossa mente

A evolução da tecnologia traz muitos benefícios na área da saúde, mas junto com eles, alguns riscos, em especial nos direitos à privacidade e à proteção de dados. A IA e o desenvolvimento da neurotecnologia impõem novos desafios e a necessidade de tutela dos chamados neurodireitos para garantir que sejam vistos como um direito humano fundamental.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Atualizado em 18 de abril de 2024 15:24

No ano de 2023, com o intuito de acompanhar os rápidos avanços tecnológicos, o direito à proteção de dados pessoais foi incluído no rol de direitos e garantias fundamentais da nossa Constituição Federal.  

Nessa mesma linha, com o advento da IA, as atenções estão agora voltadas ao desenvolvimento da neurotecnologia e o impacto que esse avanço pode ocasionar na vida das pessoas, mais especificamente na proteção da nossa integridade mental e cognitiva.

E do que se trata a neurotecnologia? A neurotecnologia abarca todas as tecnologias desenvolvidas para entender o cérebro, visualizar seus processos e, inclusive, controlar, reparar ou melhorar suas funções.  Assim, são inúmeras as aplicações da neurotecnologia, que vão desde o desenvolvimento de medicamentos mais eficientes por conta da melhor compreensão do sistema nervoso até o desenvolvimento de próteses capazes de suprir as capacidades motoras, sensórias ou cognitivas danificadas por lesões ou doenças.

Sendo assim, a neurotecnologia tem um potencial gigantesco para melhorar nossas vidas, principalmente no campo da saúde1, no tratamento de doenças até hoje consideradas incuráveis, por exemplo. Por outro lado, o emprego de neurotecnologias sem um controle e regras específicas e para fins comerciais pode trazer consequências drásticas, como a violação da integridade mental das pessoas. E esta realidade não está longe de nós. O neurobiólogo espanhol Rafael Yuste2, apontado como um dos mais influentes neurocientistas da atualidade acredita que "em mais de cinco ou dez anos, descobriremos como começar a modificar a atividade cerebral"3.  Deste modo, apesar dos inúmeros benefícios, o aperfeiçoamento e a consequente intensificação do uso das neurotecnologias suscitam novos problemas éticos e sociais.  

Por conta dessa preocupação, em 2017, um grupo de 25 especialistas de diversas nacionalidades se reuniu na Universidade Columbia em Nova Iorque para analisar o problema, propondo um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana frente aos avanços da neurotecnologia, os chamados neurodireitos. Os neurodireitos ganharam maior destaque com a criação, em 2019, pelo grupo liderado por Yuste, da "Neurorights Foudation"4, organização para proteção dos neurodireitos que busca envolver organizações, governos, cientistas, empreendedores e o público em geral para aumentar a conscientização global sobre os riscos envolvidos nos avanços neurotecnológicos.

A proposta desses cientistas é da ampliação dos direitos humanos para a inclusão dos neurodireitos, protegendo cinco aspectos da atividade humana contra o potencial uso indevido ou abuso na utilização das neurotecnologias:

  1. Direito à privacidade mental: proteger as informações pessoais obtidas com o emprego de neurotecnologias, ou seja, os dados sobre a atividade cerebral das pessoas não podem ser usados sem o consentimento delas.
  2. Direito à identidade pessoal ou à consciência: uso da neurotecnologia não pode perturbar ou alterar o senso de identidade, ou seja, não pode alterar o sentido do "eu" das pessoas.
  3. Direito ao livre arbítrio: poder continuar escolhendo a forma como nos comportamos sem interferências externas, ou seja, as pessoas devem ser capazes de tomar decisões livremente, sem a manipulação neurotecnológica.
  4. Direito ao Acesso Equitativo: garantir benefícios e melhorias sensoriais de forma equânime a toda população, a fim de evitar abismos sociais.
  5. Direito à proteção contra vieses algorítmicos: indivíduos não podem ser discriminados a partir de dados obtidos por meio da neurotecnologia.

Nos últimos anos, tem crescido globalmente o debate sobre a necessidade de os legisladores reconhecerem e protegerem os neurodireitos. O Chile foi o primeiro país do mundo a aprovar uma emenda constitucional5 para incluir os direitos digitais e a proteção da integridade mental perante o avanço das neurotecnologias.  

No Brasil, agosto de 2022 o tema passou a ser mais discutido quando a procuradora do Estado de São Paulo, Camila Pintarelli, levou a pauta para o Senado, se tornando uma das principais vozes sobre neurodireitos no país. Segundo Camila, "diante de tantas evoluções na medicina e na tecnologia, o cérebro assumiu um valor jurídico que há 20 anos ele não tinha. Isso é natural, faz parte da caminhada social da humanidade. É essa jornada que faz novas necessidades e carências surgirem. E hoje, temos essa grande carência que é a tutela do nosso pensamento, da nossa mente, da nossa parte mais íntima. É essa virada que traz a necessidade de discutir essa tutela".6 

O projeto foi acolhido pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE) e em junto de 2023 foi protocolado uma proposta de emenda constitucional (PEC 29/233) para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica.  

No texto da PEC 29/23, o senador Randolfe Rodrigues afirma que as neurotecnologias trazem "evoluções tecnológicas e científicas que vão além de a proteção de dados pessoais já inserida dentre os direitos fundamentais de nossa Constituição, pois dizem respeito à própria integridade psíquica e física do ser humano - são verdadeiros neurodireitos". O senador então conclui que:

"O Brasil, como um dos principais celeiros, mercados e destinatários globais dos progressos da tecnologia, precisa caminhar conjuntamente nessa vereda da reinserção do giro kantiano no contexto das evoluções tecnológicas e científicas, reafirmando seu conhecido protagonismo na defesa dos direitos humanos ao expandir a compreensão jusnormativa da dignidade da pessoa humana diante do progresso da neurotecnologia e do uso dos algoritmos de inteligência artificial, e internalizando em seu conjunto normativo a tutela constitucional a esse novo direito humano: o  neurodireito."

A PEC 29 ainda aguarda a indicação do relator da matéria pelo presidente da CCJ - Comissão de Constituição e Justiça, senador Davi Alcolumbre. O relator ficará encarregado de apresentar um parecer aos demais membros do colegiado responsável por opinar sobre a constitucionalidade das propostas em análise no Senado.  

Não obstante, é importante notar a magnitude que o impacto da tecnologia, em especial da Inteligência Artificial, pode ter na nossa vida. O incremento das técnicas da neurotecnologia pode trazer inúmeros benefícios científicos na compreensão do funcionamento do nosso cérebro e, com isso, entender quais fatores contribuem para doenças ainda misteriosas para a medicina, como o Alzheimer, por exemplo. Por outro lado, a depender da forma de utilização desse poder tecnológico, o seu impacto pode ser mais nocivo à sociedade a longo prazo, na medida em que há o risco de perdermos a última barreira de controle que temos sobre nossa privacidade e proteção de nossos dados, a nossa intimidade mental.

Em função disso, é de extrema relevância que se inicie esse caminho em torno de uma regulação protetiva dos direitos mais fundamentais do homem, como o direito à vida privada, à privacidade e à proteção de dados pessoais, aplicada especificamente para os neurodireitos, dando desde já um norte e limites legais ao uso dessa tecnologia, partindose do princípio basilar da ética e da boa-fé.

---------------------------

1 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/ciencia/noticia/2024/04/cerebro-humano-detalhado-pormaquina-de-ressonancia-magnetica-mais-poderosa-do-mundo.ghtml

Disponível em: https://veja.abril.com.br/ciencia/conheca-rafael-yuste-cientista-que-defende-os-neurodireitos 3 https://exame.com/ciencia/neurotecnologia-permitira-alterar-funcionamento-mental-dizcientista/

3 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9386704&ts=1686688862951&disposition=inline

4 Disponível em: https://neurorightsfoundation.org/

5 O Chile é um país pioneiro a consagrar a proteção dos neurodireitos a nível supralegal com a modificação do artigo 19-numeral 1 de sua Carta Magna:

Artículo 19.- La Constitución asegura a todas las personas:

1º.- El derecho a la vida y a la integridad física y psíquica de la persona.

6 Disponível em: https://futurodasaude.com.br/neurodireitos/

Juliana Guimarães de Castro Neves

Juliana Guimarães de Castro Neves

Advogada e engenheira mecânica, com pós-graduação em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas e mestrado (LLM) em Arbitragem Internacional pela University of Miami School of Law. Realizou o curso Privacidade e Proteção de Dados - Teoria e Prática do Data Privacy Brasil e é certificada em Sistemas de Informação pelo Exin (ISFS ISO/IEC 27001). Membro da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB/SP e integrante da equipe de privacidade do Mendonça de Barros Advogados, com larga experiência em projetos de adequação à LGPD em diversas empresas de grande, médio e pequeno porte.

Maria Carolina Mendonça de Barros

Maria Carolina Mendonça de Barros

Advogada em São Paulo sócia do escritório Mendonça de Barros Advogados. Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). ECPC-B Professional DPO Certification, European Centre on Privacy and Cybersecurity (Maastricht University). CIPP/E. Certificação Data Privacy Brasil em Privacidade e Proteção de Dados.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca