In dubio pro reo: A evolução de um instrumento de justiça
O legislador fez bem em positivar a regra do in dúbio pro reo em nosso ordenamento jurídico, mas poderia ter feito mais, como estabelecer a composição dos órgãos colegiados em números pares.
quarta-feira, 17 de abril de 2024
Atualizado às 13:50
Antes tarde do que nunca!
A lei 14.836, promulgada em 8/4/24, dentre outras alterações, alterou o CPP - Código de Processo Penal determinando no parágrafo primeiro do art. 615 que "Em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado, proclamando-se de imediato esse resultado, ainda que, nas hipóteses de vaga aberta a ser preenchida, de impedimento, de suspeição ou de ausência, tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado."
O legislador firmou categoricamente que a dúvida deve favorecer o réu quando houver empate nos julgamentos realizados pelos órgãos colegiados dos tribunais, positivando, ainda que tardiamente, a regra do in dubio pro reo.
Tardiamente porque a regra do in dubio pro reo não era prevista em lei até então. Mas era conhecida pelos tribunais através de seus regimentos internos.
O STJ1, por exemplo, no art. 181, § 4º do RISTJ estabelece que no habeas corpus e no recurso de habeas corpus havendo empate prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente. No entanto, a dúvida no julgamento só prevalecia quando se tratava de habeas corpus ou recurso em habeas corpus, não alcançando as demais ações e recursos. Limitava-se arbitrariamente a aplicabilidade do in dubio pro reo.
O TJ/MG2 também contemplou a regra do in dubio pro reo quando estabeleceu no art. 110, § 6º do seu RITJMG que em havendo empate no julgamento prevalecerá a decisão mais favorável ao acusado. Neste caso, apesar da amplitude das ações e recursos em que poderia ser aplicada a regra do in dubio pro reo, no caso de empate, sempre havia margem de manipulação da composição dos órgãos colegiados, adiando os julgamentos até que houvesse a presença de todos os componentes do órgão colegiado.
Como se percebe, o in dubio pro reo sempre foi conhecido por todos, mas nunca aplicado ou aplicado em sua plenitude.
Essa realidade não mais pode prevalecer com o advento da lei 14.836/24. Isso porque os tribunais são obrigados agora a respeitar, nas circunstância delimitadas na referida lei, o in dubio pro reo em toda a sua plenitude, sob pena de violação do devido processo legal e da ampla defesa.
Pauta de julgamento
Uma questão chama a atenção.
O presidente do órgão colegiado poderá ou não incluir em pauta ou mesmo adiar julgamento de processos quando o órgão julgador estiver desfalcado por causa de uma vaga em aberto (aposentadoria, por exemplo) ou pelo fato de algum magistrado se ausentar por férias ou por licença médica?
Ou melhor, se o presidente do órgão colegiado deixar de incluir algum processo na pauta de julgamento ou adiar tal inclusão porque há uma vaga em aberto ou o magistrado membro do órgão colegiado está de férias ou de licença médica, ele, o presidente, violaria a regra do in dubio pro reo insculpido no § 1º do art. 615 do CPP?
Violaria sim. E a correção para tal ato ilegal seria a impetração de mandado de segurança buscando a realização imediata do julgamento.
A lei é bem clara ao afirmar que quando na sessão de julgamento houver empate, prevalecerá a decisão que mais favoreça o imputado.
Não importa como ficou reduzido o quórum do órgão colegiado. Se naquela sessão de julgamento foi arguido e deferido preliminares de impedimento e suspeição e afastado o magistrado, ou mesmo antes de se designar o julgamento, se o magistrado ausentou-se por qualquer motivo, não se adia o julgamento. Faz-se o julgamento e proclama-se de imediato a decisão que mais favoreça o imputado.
Um magistrado de primeira instância pode ser convocado para completar o quórum. Um magistrado de outra turma poderá ser emprestado temporariamente e completar o quórum. Se não houver como completar o quórum em tempo hábil, deve sim o processo ser submetido imediatamente a julgamento, sob pena de nulidade por violação do devido processo legal e da ampla defesa.
A lei 14.836/24 deixa claro que a dúvida favorece o imputado, e não pode o Estado juiz alegar incapacidade organizacional para furtar a chance do jurisdicionado em ter uma possível decisão e/ou resultado favorável.
Antes pouco do que nada!
Não poderíamos deixar de ressaltar uma omissão do legislador. A positivação desse princípio não só veio tarde, como também incompleto. É que a aplicação da regra do in dubio pro reo nos julgamentos é subsidiária. Ela não ocorrerá quando todos os integrantes do órgão colegiado estiverem presentes e participarem ativamente do julgamento.
Vale lembrar que nossa Constituição Federal de 19883, quando se manifestou sobre a composição dos órgãos colegiados o fez em números ímpares, consagrando a decisão dos órgãos colegiados sempre por maioria. O plenário do STF é formado por 11 ministros e suas duas Turmas por cinco ministros cada. O STJ é composto por 33 ministros e cada uma de suas Turmas Criminais são formadas por cinco ministros. Embora a Constituição Federal de 1988 não determina, nem haja previsão legal para que os demais tribunais sigam essa orientação em compor seus órgãos colegiados em números ímpares, o fato é que estes seguem a estrutura da composição dos órgãos colegiados do STF e do STJ.
A realidade é que as decisões dos órgãos colegiados são regidas pela regra da prevalência da maioria de seus membros. A questão do empate sempre foi tratada como exceção à regra da maioria. E, talvez por isso, o legislador demorou tanto em se encorajar a positivar a prevalência da dúvida quando não houver maioria, mas empate entre os membros do colegiado.
O curioso é que o legislador esqueceu que a decisão por maioria também pode ser aplicada quando a composição dos órgãos colegiados forem formados em números pares. Desta forma, seria até mais justo os julgamentos, pois para haver condenações ou absolvições, o colegiado deveria obter a metade mais um dos votos de todos os integrantes do colegiado para atingir a maioria. Caso contrário, a metade dos votos geraria a dúvida, e por conseguinte a incidência obrigatória do in dubio pro reo.
Nesse sentido, é o projeto de lei que institui o novo CPP (PL 8.045/10), mas o legislador continua hesitando em aprovar a proposta dos juristas que a fizeram!
Em conclusão, com a atual previsão legal, só haverá empate e a aplicação obrigatória do in dubio pro reo, nos julgamentos quando um dos julgadores, por qualquer motivo, não puder participar do julgamento!
Não é o ideal de justiça que a sociedade almeja, mas é o que temos. Até então, tínhamos apenas as regras de procedimento dos regimentos internos dos tribunais, ficando a aplicabilidade do in dubio pro reo dependente do humor e da boa vontade dos julgadores.
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1 Art. 181. A decisão da Turma será tomada pelo voto da maioria absoluta dos seus membros.
§ 1º O Presidente da Turma participa dos seus julgamentos com as funções
de relator, revisor e vogal.
§ 2º Não alcançada a maioria de que trata este artigo, será adiado o
julgamento para o fim de ser tomado o voto do Ministro ausente.
§ 3º Persistindo a ausência, ou havendo vaga, impedimento ou licença, por
mais de um mês, convocar-se-á Ministro de outra Turma (art. 55).
§ 4º No habeas corpus e no recurso em habeas corpus, havendo empate,
prevalecerá a decisão mais favorável ao pacient
2 Art. 110. Salvo disposição em contrário, as deliberações serão tomadas por maioria de votos.
§ 1º Nas câmaras cíveis e criminais, o presidente votará se integrar a turma de julgamento e nas hipóteses em que a câmara decide com a participação de todos os seus membros.
§ 2º Nos grupos de câmaras criminais, o presidente votará sempre.
§ 3º No Órgão Especial, o presidente votará nos termos do que dispõe o inciso IV do art. 26 deste regimento.
§ 4º Os desembargadores membros do Órgão Especial, ocupantes de cargo de direção, votarão nas ações diretas de inconstitucionalidade, nos incidentes de inconstitucionalidade, nas dúvidas de competência e em matéria legislativa e administrativa.
§ 5º Em julgamento de mandado de segurança, de ação rescisória e de agravo interno, havendo empate, prevalecerá, respectivamente, o ato da autoridade impetrada, a decisão rescindenda e a decisão agravada. (Redação dada pela Emenda Regimental n° 6, de 2016)
§ 6º Em julgamento criminal, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao acusado.
3 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: XI nos tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno;
Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
Art. 104. O Superior Tribunal de Justiça compõe-se de, no mínimo, trinta e três ministros.