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Propriedade industrial e povos originários

A necessidade de reconhecer os direitos dos povos originários no contexto da propriedade industrial global, destacando a importância da transparência e da repartição justa de benefícios.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Atualizado em 17 de abril de 2024 09:32

A Convenção da União de Paris (CUP) para proteção da propriedade industrial (que deu origem ao sistema internacional de propriedade industrial) teve seu início sob a forma de anteprojeto, redigido em uma Conferência Diplomática realizada em Paris no ano de 1880. Nova conferência foi convocada em 6 de março de 1883, para aprovação definitiva do texto, que, finalmente, entrou em vigor um mês depois do depósito de instrumentos de ratificação, em 7 de julho de 1883.

Várias foram as modificações introduzidas no texto de 1883 através de 7 revisões: Bruxelas (1900), Washington (1911), Haia (1925), Londres (1934), Lisboa (1958) e Estocolmo (1967).

O saudoso Professor Denis Borges Barbosa, explica o explica o sentido das modificações introduzidas no texto da CUP:

"Cada nova revisão da Convenção visou aperfeiçoar os mecanismos de internacionalização da propriedade da tecnologia e dos mercados de produtos, à proporção em que estes mecanismos iam surgindo naturalmente do intercâmbio entre as nações de economia de mercado do hemisfério Norte. A maneira da Convenção conseguir isto é extremamente hábil, o que lhe valeu a sobrevivência por muito mais de um século. A Convenção não tenta, como regra básica, uniformizar as leis nacionais, objetivo do acordo TRIPs, nem condiciona o tratamento nacional à reciprocidade. Pelo contrário, prevê ampla liberdade legislativa para cada País, exigindo apenas paridade: o tratamento dado ao nacional beneficiará também o estrangeiro. Também, quanto às patentes, prescreve a independência de cada privilégio em relação aos outros, concedidos pelo mesmo invento em outras partes."1

Neste mesmo período, os povos originários, não apenas no Brasil, mas em todos em diversos lugares do planeta, se viam à mercê da colonização e de um verdadeiro epistemicídio2 (situação em que uma cultura se sobrepõe a outra, criando formas de dominação política e ideológica).

Para se ter ideia, exatamente nos idos de 1883 a 1885, ocorreu aquela que ficou conhecida como Conferência de Berlim, liderada por Otto Von Bismark, onde diversos países europeus, além dos Estados Unidos e do Império Turco-Otomano, se reuniram para tentar estabelecer acordos para a colonização e exploração econômica do Continente Africano.

Assim, nem há muita dificuldade de se afirmar que no período em que os países discutiam as bases para o sistema de propriedade industrial global, os povos originários lutavam pela sua sobrevivência e foram totalmente alijados de qualquer tentativa de participar e, quiçá, influenciar sobre as regras básicas sobre patentes, marcas e outros direitos de propriedade industrial. 

Segundo a Funai, a população indígena no ano de 1.500 girava em torno de 3 milhões de habitantes, sendo que em 1.650, esse número já havia despencado para 700 mil indígenas3. De acordo com o último censo demográfico, realizado em 2010 pelo IBGE, o Brasil possui 896,9 mil indígenas.4

Assim, para qualquer discussão envolvendo povos originários e propriedade industrial, é importante frisar, com letras garrafais, que eles não foram ouvidos e não tiveram qualquer possibilidade de opinar sobre os seus interesses.

Nos últimos anos, os países começaram a despertar sobre a importância, não apenas histórica, mas humana, cultural e estratégica5 dos povos originários. Alguns tratados começaram a destacar Direitos, que, gradativamente vem sendo refletidos nas legislações locais, como a Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, a Convenção da Diversidade Biológica e o Protocolo de Nagoia.

A Convenção 169 da OIT aplica-se aos povos tribais, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial e aos povos, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

Prevê ainda a Convenção 169, que os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade, incluindo medidas que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população e que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições.

Além disso, a Convenção 169 estabelece que deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente.

Por fim, além de outros Direitos, vale destacar que a Convenção 169 da OIT formaliza a necessidade dos governos consultarem os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente.

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), por sua vez, entrou em vigor em dezembro de 1993 e conta hoje com mais de 160 (cento e sessenta) países membros. Após quase 20 (vinte) anos de existência, continua sendo o principal e mais importante tratado que discute os temas relacionados à biodiversidade global.  Entre os seus principais objetivos, a Convenção definiu que os países devem buscar: a) conservação da diversidade biológica; b) utilização sustentável de seus componentes; c) repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes.

O Protocolo de Nagoia é um tratado internacional que decorre da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e procura implementar um dos seus principais objetivos que é a repartição de benefícios, ou seja, a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos pelos países usuários (que acessaram recursos genéticos) com os países provedores (países de origem destes recursos).

Assim, em suma, os tratados apontados consolidam a necessidade do consentimento prévio informado e da repartição de benefícios junto aos países provedores de recursos genéticos e aos povos e comunidades tradicionais.

No Brasil, a Constituição Federal estabelece diversos dispositivos6 visando reforçar e enaltecer os Direitos dos povos originários, no entanto, o avanço significativo ocorreu com o advento da Lei da Biodiversidade Brasileira (Lei 13.123/15) e o Decreto 8.772/16.

Os Direitos de propriedade industrial, todavia, relacionados aos povos originários, tanto no Brasil, como no exterior são previstos de forma bastante tímida (quase inexistente).

A Lei 13.123/15 estabelece que a concessão de direito de propriedade intelectual pelo órgão competente sobre produto acabado ou sobre material reprodutivo, obtido a partir de acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado, fica condicionada ao cadastramento ou autorização.

Neste sentido o Instituto Nacional da Propriedade Industrial editou a Resolução 69 de 20137, que normaliza os procedimentos relativos ao requerimento de pedidos de patentes de invenção, cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de um acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional.

Da Conferência Diplomática da OMPI sobre recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.

Após 20 anos de discussão, os países finalmente se reunirão, neste próximo mês de maio (2024) em Genebra (Suíça)8 com o objetivo de criarem um instrumento jurídico internacional - um tratado, convenção ou outro documento - relativo à propriedade intelectual, recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.

Os países partirão de uma minuta que possui como objetivo melhorar a eficácia, transparência e qualidade do sistema de patentes em relação aos recursos genéticos e conhecimento tradicional associado, a fim de evitar que patentes sejam concedidas erroneamente para invenções que não sejam novas ou inventivas, levando-se em consideração os direitos de anterioridade dos povos originários.

Esta é uma reivindicação antiga dos povos e comunidades tradicionais, no sentido de evitar que seus conhecimentos sejam apropriados indevidamente (sem o seu consentimento). Algumas iniciativas, mundo afora, começam a despontar, neste sentido, como por exemplo o Conselho Indiano de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR) que busca observar junto aos escritórios de patentes locais, se há algum uso indevido de recursos genéticos ou conhecimentos tradicionais associados de origem indiana, em eventuais depósitos de patentes.

Com base neste trabalho, o CSIR promoveu uma demanda contra o Escritório de Patentes dos EUA (USPTO) visando cancelar a patente (US 5.401.504) relacionada ao uso de medicamento com base no açafrão, que foi indevidamente obtida por dois pesquisadores indianos, Suman K. Das e Hari Har P. Cohly, da Faculdade de Medicina da Universidade do Mississippi. Os demandantes conseguiram fornecer várias evidências escritas de que a cúrcuma já vinha sendo utilizada há milhares de anos e que seu uso medicinal não seria, portanto, uma invenção nova.

As discussões em Genebra prometem ser bastante complexas para os detentores de Conhecimentos Tradicionais Associados. Dois aspectos chamam a atenção9:

a)     compatibilidade entre as normas globais de patente já existentes e o dever de revelação proposto pela minuta a ser discutida.

O Acordo TRIPS define os critérios de patenteabilidade, de forma global, influenciando as legislações locais. O Artigo 29 (1), de forma mais ampla, estabelece que:

"Os Membros exigirão que um requerente de uma patente divulgue a invenção de modo suficientemente claro e completo para permitir que um técnico habilitado possa realizá-la e podem exigir que o requerente indique o melhor método de realizar a invenção que seja de seu conhecimento no dia do pedido ou, quando for requerida prioridade, na data prioritária do pedido."

Nos parece que o referido dispositivo já exige, desde logo, informações claras para a análise do técnico, incluindo a origem de eventual recurso genético ou de conhecimento tradicional associado. Vale lembrar que a ausência de informações precisas, pode levar a uma conclusão errônea para o técnico no assunto.

Neste sentido, a exigência de clareza da invenção, prevista em TRIPS (como também nas mais diversas legislações locais) está em linha com o que o mercado tem exigido sobre a rastreabilidade e origem dos ativos, pois um desenvolvimento de uma nova formulação (de uma fragrância, por exemplo) pode ser bastante diferente, dependendo da origem da matéria-prima, levando em consideração não apenas as condições climáticas, mas também a forma de cultivo e colheita.

Há quem defenda, todavia, que uma modificação expressa de TRIPS, ou ainda um Tratado específico sobre o tema, com sanções específicas, podem ser mais contundentes, no sentido de estabelecer leis internas mais eficientes.

Uma preocupação que é generalizada e parece fazer sentido é o receio que os países possuem em relação ao atraso na análise de patentes.

Como é cediço, a maior parte dos escritórios locais de patentes (inclusive no Brasil) possuem histórico de atraso na análise, sendo certo que é necessário buscar respeito aos centros de origem e Direitos dos detentores dos conhecimentos tradicionais associados, notadamente para a justa repartição de benefícios, mas, por outro lado, não sobrecarregar os já sobrecarregados escritórios locais.10

b)    a ambiguidade do conceito de "origem".

A origem pode ser primária (que aponta a região geográfica e os fornecedores originais da matéria-prima, que são os povos e comunidades tradicionais) ou secundária (que engloba os fornecedores secundários ou ainda as coleções "ex situ").

A Diretiva européia 98/44/CE sobre a Proteção Legal das Inovações Biotecnológicas, especificamente em seu "Considerando 27", recomenda aos países parte que "Se uma invenção se basear em material biológico de origem vegetal ou animal ou se utilizar esse material, o pedido de patente deverá, se for caso disso, incluir informações sobre a origem geográfica desse material".

Nota-se que a Diretiva não traz maiores explicações sobre o conceito de "origem", cabendo a cada um dos países do bloco defini-lo em suas legislações locais.

Por exemplo, a lei de patentes suíça utiliza o termo "fonte" para que definir o que deve ser trazido pelo depositante da patente. "Fonte", como se sabe, possui um cunho bem mais abrangente do que "origem".

Conclusões finais

Está mais do que na hora dos países, finalmente, reconhecerem os Direitos dos povos e comunidades tradicionais, não apenas no que já definido pelos Tratados em vigor, notadamente a Convenção 169 da OIT, CDB e Protocolo de Nagoia, mas também através de um robusto procedimento de identificação de origem, nas patentes depositadas, mundo afora.

A Conferência Diplomática que será realizada em Genebra, no próximo mês de maio, pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, pode ser o foro apropriado para se criar um instrumento global no sentido de obrigar que os países revelem a origem dos recursos genéticos utilizados e/ou conhecimentos tradicionais associados, para fins de repartição de benefícios.

A fim de que esta obrigação não acarrete em atraso na análise das patentes (que teria o pernicioso resultado de emperrar a inovação), propõe-se, como sugestão a ser debatida na Conferência da OMPI, que seja feito um levantamento fidedigno de dados relacionados a origem dos recursos genéticos, além dos conhecimentos tradicionais e seus detentores e que, através da inteligência artificial, se faça um cruzamento com os escritórios de patentes, a fim de se evitar que as patentes sejam concedidas de forma equivocada, prejudicando o Direito dos povos e comunidades tradicionais, dos países de origem e a consequente repartição de benefícios.

Obviamente, é necessário ouvir e obter o consentimento prévio informado dos povos e comunidades tradicionais, sobre a solução aqui proposta.

Vale lembrar que as diversas legislações, inclusive a brasileira, abre a possibilidade dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, estabelecerem a melhor forma de conceder o seu consentimento.

Assim, com base nesta premissa, é totalmente possível que os povos estabeleçam formas de gatilhos, podendo definir previamente e parcialmente seu consentimento, e, se houver deferimento da patente, num segundo momento, que se obrigue a devida repartição de benefícios, como condição de concessão do direito.

O momento é propício para a discussão e a vindoura Conferência Diplomática da OMPI pode estabelecer um resultado histórico para os países megadiversos (como é o caso do Brasil) e para os povos e comunidades tradicionais nele inseridos.

Nunca é demais lembrar que todos nós precisamos que as florestas e biomas permaneçam vivos e, para isso, é necessário conceder e fortalecer os Direitos dos povos que nelas habitam.

_______

1 https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/pi_direito_internacional.pdf

2 Termo comumente utilizado por Boaventura de Sousa Santos, em suasr obras.

3 https://observatorio3setor.org.br/noticias/genocidio-brasil-mais-de-70-da-populacao-indigena-foi-morta/

4 Uma redução de aproximadamente 70%, levando-se em conta o início do processo de colonização do Brasil (1500).

5 Um estudo publicado em janeiro na revista científica PNAS Nexus analisou a cobertura florestal, no período entre 1985 e 2019, de 129 terras indígenas (TI) localizadas em áreas de Mata Atlântica - a maior parte das registradas no bioma (fonte FAPESP).   A pesquisa usou dados do Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas) e revelou uma redução da taxa de desmatamento de 0,77%, a cada ano, nas TI oficialmente demarcadas, em comparação com os territórios indígenas ainda não oficializados.  BENZEEV, R. et al. Formalizing tenure of Indigenous lands improved forest outcomes in the Atlantic Forest of Brazil. PNAS Nexus. v. 2, n. 1, pgac287. jan. 2023.

6 Artigos 215, §§ 1° e 3°; 216, §§ 1° e 5°; 216-A, §1°; 231.

7 https://www.gov.br/inpi/pt-br/backup/legislacao-arquivo/docs/resolucao_69-2013.pdf

8 2024 WIPO Diplomatic Conference on Genetic Resources and Associated Traditional Knowledge.

Karinov, Elnur. Disclosure of Origin in European Biotechnology Patent Law: A Social Network Analysis Perspective, GRUR International.

10 Humildemente, e obviamente, sob a condição de validação dos detentores de CTA, propomos um encaminhamento de solução, nas conclusões finais deste artigo.

Luiz Ricardo Marinello

VIP Luiz Ricardo Marinello

Mestre em Direito pela PUC/SP, coordenador da Comissão de Estudos de Bioeconomia e Sustentabilidade da ABPI (Associação Brasileira da Propriedade Intelectual) e sócio de Marinello Advogados.

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