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Emendas Pix, TCU, Governo Federal e a guerra contra incentivos perversos

Os mecanismos de transferências especiais oferecem incentivos políticos, como obtenção de crédito eleitoral. No entanto, podem induzir à corrupção e ineficiência. Estudos sobre "compatibilidade de incentivos" exploram essa dinâmica.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Atualizado às 14:25

Quais incentivos o mecanismo de transferências especiais (ou "emendas pix" ) fornece aos agentes políticos? Esses agentes são incentivados a seguir as regras constitucionais? Ou os incentivos são perversos levando à improbidade, corrupção e ineficiência? O que tem sido feito?

Na economia, há uma teoria chamada de "compatibilidade de incentivos", que estuda a concordância entre inúmeras normas de determinado processo e os interesses privados dos agentes que nele se encontram. Nessa construção teórica, descrevem-se as estruturas nas quais os participantes do processo não encontrariam vantagem em violar suas regras, na medida em que estas preservam seus interesses legítimos. Em outras circunstâncias, deparamo-nos com processos inviáveis nos quais não existem incentivos para a conformidade com as regras estabelecidas (incentivos perversos).1

No âmbito das transferências de recursos por parlamentares, os incentivos legítimos se consubstanciam na busca por crédito político em seus redutos eleitorais pelos dois principais atores envolvidos nas transações: (1) o parlamentar que envia os recursos; e (2) os gestores locais que maximizam seus orçamentos públicos por meio das transferências recebidas. Em regra, parlamentares buscam levar dinheiro para o seu distrito eleitoral, maximizando seus ganhos políticos mediante o suporte de seu eleitorado e de governos locais. Estes incentivos políticos foram objeto de reflexão no artigo publicado na revista eletrônica do PGE/RJ, intitulado "Orçamento Impositivo e as Transferências do Artigo 166-A da Constituição: Notas sobre Regime Jurídico, Accountability e Corrupção".2

Presume-se inicialmente que os recursos de emendas parlamentares sejam alocados de acordo com procedimentos políticos e burocráticos lícitos e aceitos, resultando em benefícios como: Escolas locais, estradas, poços e instalações de saúde.

Não se ignora, contudo, que a decisão parlamentar também seja motivada por interesses privados ilícitos. Os incentivos perversos são ligados a utilização dos recursos transferidos para práticas ligadas à improbidade e corrupção.

As regras constitucionais

Prevista no art. 166-A da Constituição, emenda "pix"  (ou transferência especial) é uma modalidade de repasse efetuada diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente da identificação da programação específica no orçamento federal e da celebração de convênio ou de instrumento congênere. Sua característica mais marcante é a previsão de mudança de titularidade da receita transferida no ato da efetiva transferência financeira, mudando igualmente a competência para controle desses recursos (dos órgãos federais de controle para órgãos locais de controle).

Emendas pix possuem uma série de condicionalidades nos gastos que, em suma, tentam incentivar gastos em investimentos (modalidade de despesa de capital) de forma ágil e livre de burocracias3.

Os incentivos perversos (gargalos)

Na prática, a emenda pix se tornou um mecanismo polêmico que permite repasses de verbas federais para estados e municípios de forma pouco transparente, escapando da devida fiscalização, abrindo caminho para práticas questionáveis, como gastos inadequados, improbidade administrativa e corrupção. Essa associação negativa surge devido à falta de transparência e accountability na alocação desses recursos, evidenciando uma lacuna empiricamente observável no sistema de controle e prestação de contas.

Em outra oportunidade, defendeu-se a interpretação conforme à Constituição do art. 166-A. No caso, entendemos que: (1) não há, na previsão das transferências especiais, quaisquer violações às cláusulas pétreas (§4º do art. 60 da CF); (2) deve-se, no entanto, fazer uma interpretação sistemática entre o art. 166-A e o art. 163-A da Constituição, pois as transferências especiais não escapam dos deveres de transparência e de accountability devidamente assegurados em plataforma pública de amplo acesso para fins de controle social4.

Em relação à falta de accountability, não se ignora que as transferências especiais se encontram dentro de um contexto de falta de transparência orçamentária que envolve outras questões como o próprio desvio de finalidade das emendas de relator-geral RP9 (vulgo "orçamento secreto"). A diferença é que as emendas RP9, em sua execução, careciam de transparência em relação aos parlamentares que seriam os reais autores das emendas e os gastos no destino (ausência de accountability na origem e no destino). No caso das transferências especiais, os autores das emendas são conhecidos, o problema residiria na transparência e execução orçamentária dos recursos repassados, não mais submetidos ao controle da corte de contas federal (ausência de accountability no destino)5.

Ressalta-se que as emendas de RP9 - relator-geral não foram julgadas inconstitucionais pelo STF nas ADPFs 851, 850, 854 e 1014 - estas emendas destinam-se, exclusivamente, à correção legislativa de erros e omissões da peça orçamentária. A prática do "orçamento secreto" é que foi julgada inconstitucional - que era a utilização das emendas de relator-geral para a burla da transparência orçamentária, carecendo de identificação do proponente e clareza sobre o destinatário. De forma similar, defende-se que as transferências especiais não são, por si, inconstitucionais, mas a ausência de mecanismos que inibam a sua utilização para gastos ímprobos e sem transparência é de fato inconstitucional. Haveria uma inconstitucionalidade por omissão nesse aspecto.

Quais são os incentivos perversos das emendas pix (transferências especiais) que permitem os gastos ímprobos? Defendemos anteriormente que, no procedimento das emendas pix, há desenhos institucionais que dificultam a fiscalização e incentivam o descumprimento de normas6. Alerta-se que a descentralização fiscal não é um gargalo, mas um instrumento político de governança que mitiga o monopólio de poder estatal. Pode-se dizer que havia quatro gargalos: (1) na origem, havia a ausência de responsabilização dos entes receptores infratores no momento da definição dos beneficiários das emendas pix (ausência de impedimento técnico); (2) a falta de transparência na execução orçamentária; (3) a baixa governança orçamentária de grande parte dos entes receptores; e (4) a ausência de institucionalização da comunicação e cooperação entre TCU, de um lado, TCE,  TCDF e TCM, do outro. Tudo isso incentiva agentes políticos a se afastarem da conformidade com as regras constitucionais estabelecidas.

A guerra contra os incentivos perversos (suprimento de algumas lacunas) 

Considerando que os parlamentares federais se beneficiam diretamente da informalidade das transferências especiais para angariar apoio político, não há incentivos para o surgimento de uma sólida normatização por meio de lei federal tão cedo.

Haveria espaço para a regulamentação local das transferências especiais enquanto não sobrevier norma nacional editada pela União Federal. Ante a omissão do Congresso Nacional em regulamentar o art. 166-A da Constituição Federal, incumbe aos estados trazer segurança jurídica no controle dessas verbas públicas dentro de sua competência supletiva (§ 3º do art. 24 da Constituição Federal).7 O problema é que muitos estados reproduziram, em suas constituições, as normas do art. 166-A da Constituição - parlamentares estaduais, logo, possuem o mesmo "desincentivo".

Felizmente, os esforços para combater os gargalos (incentivos perversos) estão partindo do TCU e do Governo Federal.

Em 17/1/24, o TCU publicou a IN - Instrução Normativa 93/24, que dispõe sobre a fiscalização, pelo TCU, de recursos alocados aos estados, Distrito Federal e municípios por meio de transferências especiais. Nessa instrução normativa, o TCU detalhou procedimentos de fiscalização e imposição de transparência.

O art. 2º da IN 93/24, notadamente, obrigou os entes federados beneficiários das transferências especiais a realizarem "a inserção de informações e documentos sobre a execução desses recursos na plataforma Transferegov.br (ou sistema/plataforma que vier a substituí-la)",  para permitir transparência e accountability desses recursos. O §5º do referido artigo ainda determina que os recursos recebidos por meio de transferências especiais "deverão ser movimentados em uma conta corrente específica para cada transferência, em agência bancária de instituição financeira oficial, onde houver, vedada a transferência financeira para outras contas correntes" - medida que facilita a rastreabilidade dos recursos transferidos.

O destaque regulatório do ano, no entanto, fica para o Governo federal que editou a Portaria Conjunta MF/MPO/MGI/SRI-PR nº 1, de 1º/4/24. O art. 4º da portaria passa a prever expressamente impedimentos técnicos para a execução de transferências especiais nos casos de: (1) não indicação de instituição financeira para recebimento e movimentação de recursos de transferências especiais pelo ente federado beneficiário na Transferegov.br; (2) inobservância da aplicação mínima obrigatória de setenta por cento em despesas de capital nas transferências especiais, por autor; e (3) não indicação da área da política pública na qual o recurso oriundo de transferências especiais será aplicado.

Inegável o avanço regulatório promovido pelo TCU e pelo Governo federal. Essas regulamentações não substituem nem se equivalem a uma lei nacional que trate sobre as transferências especiais (emendas pix), mas certamente já são um começo.

Espera-se que a regulamentação de procedimentos das emendas pix crie incentivos para conceber processos políticos viáveis - ou seja, processos em que haja incentivos para a obtenção dos objetivos constitucionais e todos os participantes vejam maiores vantagens em seguir as regras constitucionais do que o contrário.

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1 LEDYARD, John O. Incentive compatibility. In: The New Palgrave Dictionary of Economics. London: Palgrave Macmillan, 2018, p. 6148.

2 Para citação: MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: Notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), [S. l.], volume 6, número 1, 2023. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/340/269.

3 Previstas no artigo 166-A, as condicionalidades proibitivas aplicam-se a todos repasses de emendas parlamentares individuais (emendas pix ou não), determinando-se que tais recursos: a) não integrarão a receita do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios para fins de repartição e para o cálculo dos limites da despesa com pessoal e de endividamento do ente federado; b) não poderão ser destinados para pagamento de despesas com pessoal e encargos sociais relativas a ativos e inativos, e com pensionistas e encargos referentes ao serviço da dívida. No caso específico da Transferência Especial, há as condicionalidades impositivas de gastos, porquanto os recursos desta modalidade (calculados pelo total) deverão ser aplicados em despesas de capital em montante não inferior a 70% (setenta por cento), na forma do §5º do artigo 166-A da Constituição.

4 Para citação: MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: Notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), [S. l.], volume 6, número 1, 2023. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/340/269.

5 Ibid, p. 31.

6 Improbidade, corrupção e os quatro gargalos das Emendas pix. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-18/caio-gama-improbidade-corrupcao-e-os-quatro-gargalos-das-emendas-pix/.

7 MASCARENHAS, Caio Gama. Regulamentação local das transferências especiais (Emendas pix) e combate à corrupção. Revista da Procuradoria-GeraL do Estado de Mato Grosso do Sul, v. 1, p. 64, 2023. Disponível em: https://www.pge.ms.gov.br/wp-content/uploads/2023/12/Revista-PGE-19-Caio.pdf.

Caio Gama Mascarenhas

Caio Gama Mascarenhas

Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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