A crise do agronegócio e seus remédios e a teoria da empresa
A crise agrícola é impulsionada por fatores geopolíticos, como conflitos na Ucrânia e Israel, afetando preços de commodities. O Brasil precisa de estratégias de curto, médio e longo prazo para apoiar os produtores, considerando a instabilidade política e econômica. A incerteza eleitoral e oscilações de subsídios adicionam complexidade.
terça-feira, 16 de abril de 2024
Atualizado em 15 de abril de 2024 16:28
Introdução
Nos meios econômicos e jurídicos é notória a séria crise enfrentada pelos produtores rurais, causada por fatores diversos, a cada um deles devendo serem aplicados os remédios adequados.
Uma causa relevante está na questão geopolítica, cujo tratamento está evidentemente fora do alcance dos agentes econômicos, como sejam, as guerras na Ucrânia e em Israel; a realidade do ataque feito pelo a Israel abre a possibilidade de uma guerra mais ampla, de proporções inimagináveis; a possibilidade de algum movimento militar da China contra Taiwan; a consequente oscilação do preço do dólar e das commodities como o petróleo e os grãos; etc.
Quanto aos pontos acima, no tocante ao Brasil, cabe ao Governo pensar em termos de projetos no curto, médio e longo prazo voltados para o seu enfrentamento no atendimento aos produtores rurais, com a adoção de estratégias voltadas para a substituição de parceiros no campo do comércio internacional, tanto na importação quanto na exportação, precificando antecipadamente na medida possível o nível de efeitos que possam surgir, de olho no que acontece pelo mundo durante vinte e quatro horas por dia. É evidente que o mercado já precificou os eventos que ocorreram e, em caráter prospectivo, aqueles cuja deflagração é possível. Daí o papel governamental será o de dirigir a economia na busca de uma acomodação quanto ao presente e de uma estratégia para o futuro.
Não pode ser perdido de vista o ambiente interno, tanto no campo econômico quanto político. Quanto a este duas ordens de ideias se apresentam. A primeira diz respeito à grande incerteza de que se revestem as posições do Governo e do Congresso, a mercê de um ano eleitoral, em relação ao qual chuvas e trovoadas são esperadas com certeza absoluta. E envolvendo os dois lados acima referidos, sabe-se que o agronegócio tem algum nível de proteção em termos de subsídios, que podem ser restringidos ou aumentados, conforme a maré oscilante das decisões a seu respeito, ainda que subsídios sempre correspondem a um desarranjo na economia.
No sentido acima, sabe-se que a produção rural é protegida pela grande maioria dos países e, quanto à França, nela reside um dos óbices para que o acordo com o Mercosul possa finalmente ocorrer.
Acompanhando esse ambiente, constata-se que, de acordo com a Serasa. Em 2023 foram feitos 123 pedidos de RJ, contra 19 no ano anterior, ou seja, correspondente a um aumento de 535%1. Segundo a matéria em questão, na visão de alguns analistas, a crise não seria generalizada - mesmo porque os problemas são localizados segundo as áreas de produção e por regiões - tendo em conta a sazonalidade do setor, encontrando-se os produtores do Rio Grande do Sul em recuperação depois das secas dos anos anteriores, enquanto o fator climático prejudicou severamente os produtores que estavam endividados, como os do Mato Grosso e de Goiás, afetados por secas.
1. Os remédios jurídicos
Nesse campo os agentes rurais têm trabalhado preventivamente com a venda de unidades, fusões, incorporações, negociação de dívidas e outras operações cabíveis. Buscando manter as fontes produtivas tem se dado uma frenética busca pela recuperação judicial - RJ -, conforme dito acima, ficando a decretação da falência na persppecitiva de um horizonte possível, relativamente distante.
A RJ do produtor rural tem uma história de discussões sobre o seu cabimento quando não havia ele optado pelo regime da equiparação ao empresário, na forma do art. 971 do Código Civil. Contra o direito daquele à RJ tive oportunidade de elaborar um parecer juntamente com a profª Rachel Sztajn, considerada a orientação então favorável do Judiciário2. Tanto era verdadeiro nosso entendimento que a situação foi objeto de mudança na lei 11.101/05 pela lei 14.112, de 24.12.20, a qual deu nova redação ao art. 48, § 3º e introduziu o art. 70-A ao primeiro texto legal aqui citado, tendo restado algumas exigências para o seu deferimento, tanto em relação ao produtor rural pessoa física, quanto jurídica.
Mas problemas continuaram e a jurisprudência têm concedido a RJ para produtores rural ao arrepio da letra da lei, sabendo-se que o sucesso desses regimes tem sido relativamente baixo, dando lugar à falência, depois de esgotados todos os mecanismos buscadas para a salvação daqueles.
1.2 Solução definitiva do problema na reforma do Código Civil segundo a teoria da empresa
Do ponto de vista legislativo a questão aqui em foco seria superada - como muitas outras - por meio de uma reforma radical do Código Civil mediante a ampliação do campo da empresa para a atividade econômica privada em geral, com as exceções cabíveis. Isso implicaria na pura e simples revogação do parágrafo único do seu art. 966 e do art. 971, caput.
O teor do caput do art. 966 passaria a ser o conceito legal, adequado ao estabelecido pela doutrina, colocando o direito brasileiro entre os ordenamentos jurídicos mais modernos, especialmente os do direito da common law, muito mais aderentes à realidade do que aqueles de base romano-germânica, ou seja os do continente europeu e os da América Latina que dele se originaram.
Esse assunto foi objeto de tratamento no item 1.7 do vol. 1 da Coleção de Direito Comercial, elaborada por mim com outros autores, destacando-se que até mesmo o exercício das chamadas profissões liberais tem sido feito sob a forma da empresa em outros ordenamentos jurídicos, para todos os fins legais, inclusive sua recuperação e sua falência. No campo do direito ninguém pode dizer que os grandes escritórios de advocacia não apresentam claramente a estrutura e o funcionamento de qualquer empresa, observando-se que restrições para que atuem juridicamente sob essa forma colocam-se tão somente no plano da história.
Sabe-se que o Direito Comercial é de natureza histórica e não ontológica. Ele surgiu diante de circunstâncias peculiares verificadas na Idade Média, quanto nasceu e se se desenvolveu paralelamente e também em contrapartida ao direito então vigente, aplicável à vida dos comerciantes - o direito canônico e o direito comum, o civil. Tanto é verdade que se viu frustrada a tentativa do Código Comercial francês de 1807 no sentido da identificação da atos de comércio por sua própria natureza que, se realizada, teria alcançado o resultado da caracterização do Direito Comercial como categoria ontológica, diverso do Direito Civil. Mas isso se revelou o sonho de uma noite de verão que logo deu lugar à realidade do dia.
No sentido de uma unificação da empresa sob um mesmo regime jurídico podemos recorrer a Ronald H. Coase, no estudo que fez em relação às firmas, estas que podem na devida proporção serem equiparadas às empresas3. Defendeu o autor citado que as empresas são feixes de contratos, que permitem a reunião dos fatores de produção, objetivando a oferta de bens no mercado ou, ainda, um sistema de relações que passa a existir quando a direção a ser dada aos recursos é dependente de um empresário4, dando-se aqui a aproximação, por sua vez com um dos perfis da empresa indicados por Asquini, o funcional.
Ao transplantar o conceito de firma para o nosso ordenamento jurídico podemos considerá-lo como neutro, ou seja, independente da natureza do titular da atividade, se comercial, industrial, de serviços, inerente a uma atividade liberal ou qualquer outra em relação à qual se identifique um mercado, o qual, atendidas as restrições de natureza ética, é disputado entre os agentes que nele atuam. Feita a modificação legislativa acima mencionada, desaparece uma série de discussões jurídicas sobre o direito aplicável, inclusive quanto ao empresário rural, objeto do cerne das nossas atuais preocupações. É claro que adaptações serão necessárias como, por exemplo, o do tratamento tributário.
Verifica-se que os custos de transação dos agentes econômicos unificados sob única tutela jurídica seriam sensivelmente reduzidos, abrindo-se as portas para crédito mais barato e longo, permitido aos produtores rurais acesso a produtos e serviços bancários aos quais na atualidade se encontram limitados. E o BNDES poderia ter um papel fundamental, com fulcro no S de social, abrindo linhas de crédito para os produtores rurais com prazos mais longos e taxas de juros mais reduzidas. Para tanto poderiam ser criados novos títulos de crédito para o setor rural, que se fossem adequados à realidade dessa área da economia, que se orientassem na sua construção para o porte diferenciado dos produtores rurais (de mini a grandes) e ao setor específico de suas atividades.
Nunca se esqueça, pensando-se particularmente nos produtores rurais de pequeno porte, que eles operam em unidades familiares, que passam de pai para filho, dentro de colônias produtivas, os quais são detentores de conhecimentos técnicos transmitidos durante longo tempo nos seus respectivos ambientes. Dessa forma, o desaparecimento de uma unidade rural que foi assim erigida representa uma perda sensível na sua respectiva área de atuação, com prejuízo geral. Esse é um fator que deve ser levado em conta na elaboração de uma estrutura jurídica mais coincidente com essa realidade econômica particular, em benefício de toda a coletividade.
1 Cf. "O Agro está em crise? Entenda o que pesam produtores, entidades e governo", in jornal "O Estado de São Paulo" de 15.02.2024.
2 In "Revista Brasileira do Direito do Agronegócio", v1. 1, pp. 213-245, 2019. Vide sobre a RJ do produtor rural pessoa física o item 13.4 do texto "O Plano de Recuperação para Microempresas e Empresas de Pequeno Porte", de Amanda Gouvêa Toledo Barreto, na obra "Falência e Recuperação de Empresas - Estudo Integrado com a Reforma Introduzida pela Lei 14.112/2020", sob a nossa coordenação geral, Ed. Dialética, São Paulo, 2022.
3 In The "Firm, the Market and the Law", 1990.
4 Cf. "The Nature of the Firm".
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.