MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Remuneração de dirigentes: Por uma nova lei à altura da sociedade civil brasileira

Remuneração de dirigentes: Por uma nova lei à altura da sociedade civil brasileira

Reconhecer o trabalho no Terceiro Setor é essencial, mas remunerar é crucial para garantir justiça. Mudanças legislativas refletem essa necessidade de profissionalização desde os anos 90.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Atualizado em 11 de abril de 2024 11:08

Remunerar pessoas em contrapartida à prestação de serviços realizada é uma forma de reconhecer e retribuir seus esforços de forma justa e digna. Apesar disso, no Terceiro Setor ainda é muito presente a premissa do trabalho voluntário. Naturalmente, o trabalho voluntário é importante e bem-vindo. No entanto, não se pode esperar que todas as pessoas se dediquem voluntariamente às organizações sem fins lucrativos - e isso vale também para os dirigentes, que administram a entidade e prestam serviços profissionais, assumindo um volume significativo de trabalho.

É sabido que o direito ao trabalho com remuneração adequada e satisfatória é um direito humano relevante previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos1 e outros tratados internacionais do qual o Brasil é parte. Historicamente, ainda que a CF/88 reconheça o direito social do trabalhador, a legislação infraconstitucional previa a não remuneração de dirigentes no Terceiro Setor, estabelecendo, a contrario sensu, que seus serviços em benefício das entidades deveriam ser gratuitos. Os desafios de gestão e a necessidade de profissionalização do campo das organizações da sociedade civil passou a exigir a atualização das normas, sendo possível observar uma mudança de cenário na década de 90 quando da edição da lei das OSs (lei 9.637/98) e da lei das OSCIPs (lei 9.790/99).

Durante a agenda MROSC - Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil) na Secretaria-Geral da Presidência da República de 2011 a 2016, o tema também foi objeto de atenção nas mudanças normativas havidas no período. A lei do CEBAS foi modificada em 2013 (lei 12.868/13) e passou a autorizar expressamente a remuneração de dirigentes. O pagamento da equipe de trabalho com recursos públicos foi também previsto em 2014 pela lei 13.019/14. A legislação tributária foi modificada em 2015 pela lei 13.151/15 e pela lei 13.204/15. Esta última revogou a antiga lei 91/35 que tratava da Utilidade Pública Federal e previa a proibição de remuneração de dirigentes como alicerce antigo do sistema. A lei 13.800/19, que dispõe sobre os endowments (fundos patrimoniais) no Brasil, seguiu o caminho de autorizar expressamente a remuneração de conselheiros. No geral, está superada na legislação federal a lógica anterior da não remuneração de dirigentes em entidades privadas sem fins lucrativos.   

Apesar do avanço percebido no ordenamento jurídico vigente, o tema da remuneração de dirigentes ainda é daqueles que merece um estudo mais aprofundado. É que a tão desejada mudança de paradigma do altruísmo para o profissionalismo no Terceiro Setor veio acompanhada de alguns obstáculos, e mesmo com a autorização expressa para as entidades remunerarem seus dirigentes se assim desejarem e tiverem orçamento para tanto, os limites e condições impostos à remuneração nas diferentes leis dificultam a sua aplicação.

Trabalhar no Terceiro Setor é uma escolha profissional relevante e que tem chamado cada vez mais atenção de quem quer atuar com propósitos. O campo da sociedade civil organizada tem atraído profissionais em início de carreira, profissionais estabelecidos ou até mesmo pessoas que já contribuíram em outras esferas e que desejam dedicar sua energia e expertise profissional para uma organização da sociedade civil vinculada a uma causa de seu interesse que apresente um impacto positivo na nossa sociedade. No Direito, as advogadas e os advogados têm a função essencial de garantir segurança jurídica e conformidade legal aos atos de gestão das organizações, além de assessorá-las nos mais diversos desafios.

Temos estimulado especialmente os jovens a enxergarem essa possibilidade de união de trabalho com engajamento cidadão nas suas trajetórias. A legislação vem se aprimorando para induzir esse caminho e, ao mesmo tempo, exigir dos gestores das organizações, dedicação de tempo e especialização para cumprimento de regras na sua atuação. São muitas camadas regulatórias que incidem sobre as organizações que demandam um olhar atento de gestão para alimentação de diversos sistemas de controle e transparência. Além das regulações específicas do setor sem fins lucrativos e das leis que regem as políticas públicas setoriais das áreas em que atuam, as organizações estão sujeitas a muitas regras de observância obrigatória das empresas, inclusive sob o ponto de vista cível e trabalhista. É um segmento especializado que exige conhecimento.

A remuneração guiada por valores de mercado é então um ponto crucial para reter talentos. A legislação não pode ser um entrave, engessando a política remuneratória das entidades ao estabelecer para o Terceiro Setor tetos de valores aplicáveis à Administração Pública e ignorando as particularidades do universo das entidades sem fins lucrativos. O ordenamento jurídico deve ser aprimorado para que as organizações alcancem um novo patamar de profissionalização, estruturação e governança, à altura da sociedade brasileira. Precisamos dos melhores gestores à frente das organizações que lutam por direitos, que criam tecnologias e inovação, que criticam o que precisa ser transformado e apresentam alternativas, que doam para organizações, projetos e pessoas em vulnerabilidade social, que enfrentam graves desigualdades econômicas, sociais e ambientais, e que executam ações em diversas áreas de interesse público tão relevantes para nosso país.

É com esse espírito que, para termos uma harmonização mais clara, objetiva e isonômica da autorização de remuneração de dirigentes a valor de mercado, a depender do porte e da complexidade das organizações, assumimos o compromisso no início da gestão da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP de tratar do tema. Em 2022, criamos um GT - Grupo de Trabalho e designamos para a sua coordenação o advogado Eduardo Pannunzio. O objetivo do GT foi o de desenvolver um estudo sobre a questão e elaborar anteprojeto de lei que sistematizasse e aperfeiçoasse as normas federais sobre remuneração de dirigentes em instituições sem fins lucrativos.

O GT organizou suas atividades em quatro etapas: (1) pesquisa, (2) discussão e definição de diretrizes, (3) elaboração do anteprojeto de lei e (4) realização de seminário para promover engajamento público. O relatório ora apresentado sintetiza os resultados das pesquisas conduzidas, o anteprojeto de lei e a definição de seus princípios e diretrizes. Ele contém uma introdução com o estado da arte, traz legislação e jurisprudência, além de experiências internacionais de 5 países - Estados Unidos, Reino Unido, Portugal, Argentina e Chile. Dos cinco países pesquisados, apenas o Chile ainda proíbe a remuneração de dirigentes. O Brasil não mais proíbe, mas precisa aprimorar os seus limites e condições.

Importante registrar a voz ativa de todos os membros da Comissão que se dedicaram a essa construção participativa. Os resultados sistematizados pelo GT em dezembro/22 foram debatidos em Reuniões Ordinárias da Comissão e no evento Direito do Terceiro Setor Law Summit2 durante o ano de 2023. Foi aberta ainda uma consulta interna por formulário a todos os integrantes, o que ajudou a ampliar o debate e a qualificar o anteprojeto formulado. Some-se a isso o seminário realizado em 26/3/24,3 quando foram apresentados os principais resultados ao público, no contexto da regulamentação da Reforma Tributária (Emenda Constitucional 132/23) e os seus impactos para o Terceiro Setor e a Filantropia, que trouxe ainda mais reflexões. Ao final, o texto que se apresenta é fruto dessa dialética, e conta com os aperfeiçoamentos da discussão que se seguiu.

Nesse momento tão importante de discussão sobre a regulamentação da Reforma Tributária, parece-nos fundamental que esses subsídios sejam levados em consideração pelo Ministério da Fazenda e pelo Congresso Nacional.

Qualquer alteração no sistema jurídico que trate das imunidades e isenções tributárias e, em especial, da tão festejada não incidência do ITCMD4 para as doações às entidades, que passou a integrar a nossa Constituição Federal a partir do final de 2023, deve estimular e valorizar o campo das organizações da sociedade civil, e não limitar a atuação de seus gestores como condição para acesso a direitos. Esperamos que a legislação seja harmonizada e consolidada como forma também de fortalecer a nossa Democracia. É fundamental que tenhamos uma Sociedade Civil forte e altiva, capaz de lidar com os desafios estruturais e candentes de nosso país, em complemento ao papel do Estado e das Empresas. Neste movimento regulatório de reconhecimento de especificidades, entendemos que é chegada a hora desse debate.

Certos de que essa contribuição é de extrema relevância para o Terceiro Setor, para a Filantropia e, consequentemente, para a toda a sociedade brasileira, desejamos que os estudos realizados e as sugestões apontadas gerem a consciência e o engajamento público que precisamos para que essa mudança normativa aconteça. Nós, da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP, seguimos à disposição para contribuir com a melhoria da regulação para o setor, esclarecer dúvidas e pensar nos melhores caminhos, apoiando os debates normativos em temas relevantes como esse.

-----------------------------

1 Art. 23. 3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. Disponível em https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos Acesso em 26 mar 2024.

2 O evento híbrido "Direito do Terceiro Setor: Law Summit" foi realizado na OAB/SP em 21 de junho de 2023. Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=jfscn7vBHQQ Acesso em 26 mar. 2024.

3 O webminar "Reforma Tributária e os Impactos para o Terceiro Setor e a Filantropia", foi realizado na OAB/SP em 26 de março de 2024. Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=zvvsmc_utM4 Acesso em: 26 mar. 2024.

4 Diz o texto constitucional no art. 155, § 1º , VII que "não incidirá sobre as transmissões e as doações para as instituições sem fins lucrativos com finalidade de relevância pública e social, inclusive as organizações assistenciais e beneficentes de entidades religiosas e institutos científicos e tecnológicos, e por elas realizadas na consecução dos seus objetivos sociais, observadas as condições estabelecidas em lei complementar".

Texto de Apresentação do Relatório do Grupo de Trabalho sobre Remuneração de Dirigentes no Terceiro Setor: por uma nova lei à altura da sociedade civil brasileira, publicado pela Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP em 08 de abril de 2024. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1oZ5VuN2XFeAk3o7FmXAGlPs6Zoo4YRRe/view Acesso em 8 abr 2024.

Laís de Figueirêdo Lopes

Laís de Figueirêdo Lopes

Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca