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O interesse recursal: Uma análise da sistemática do art. 1.009 § 1º do CPC

O CPC atual traz nuances na sistemática de recursos. Destaque para o agravo de instrumento diante de julgamento parcial de mérito, e a diferenciação entre sentença e decisões interlocutórias, cuja recorribilidade pode ser postergada.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Atualizado às 08:21

A sistemática dos recursos no CPC vigente rende algumas dinâmicas interessantes e que merecem aprofundamento. Em primeiro lugar, o cabimento dos recursos em relação ao ato judicial praticado ganha especial importância, uma vez que é assegurado, em atenção aos princípios da duração razoável do processo e da efetividade da jurisdição, o julgamento parcial de mérito (art. 356 do CPC), a desafiar o recurso de agravo de instrumento. Por sua vez, o cabimento do agravo de instrumento neste caso advém da própria definição do ato judicial. Isto porque, o CPC, expressamente consignou que, para ser considerada sentença, é necessária a observância do seu conteúdo e finalidade. Ou seja, sentença é o ato judicial que põe fim à fase de conhecimento e que, na execução, a extingue (art. 203 § 1º do CPC). Tem-se, portanto, que a sentença cumpre uma finalidade, que é o encerramento de uma fase (seja de conhecimento ou de extinção de execução). Já as decisões interlocutórias podem ter o conteúdo próprio de uma sentença, mas não possuem a finalidade de terminar a fase de conhecimento ou extinguir uma execução. Portanto, uma decisão que resolve parcialmente a demanda, não põe fim à fase de conhecimento, mas possui um conteúdo de mérito relativa àquela parcela julgada. Não se pode mais admitir a distinção simplória de que decisões interlocutórias não resolvam mérito e que apenas sentenças possuiriam tal conteúdo. 

Além da necessidade de se atentar para este conceito duplo, baseado no conteúdo e na finalidade do ato judicial praticado, tem-se ainda a adoção de uma técnica de ausência de recorribilidade imediata de algumas decisões interlocutórias, a depender do seu conteúdo. Assim, algumas decisões que se enquadram no conceito de interlocutórias, mas que não estão previstas como recorríveis de imediato (seja pela expressa indicação do art. 1.015 do CPC ou pela adoção da taxatividade mitigada, decorrente da interpretação feita pelo STJ), tem verdadeiramente postergada a sua recorribilidade (alongada a preclusão de tais matérias, naquilo que se pode chamar de preclusão diferida) para a sentença, quando então se encerra a fase de conhecimento. A esta altura, já estamos trabalhando com vários conceitos dos atos judiciais praticados: finalidade, conteúdo e recorribilidade, que pode ser imediata ou postergada. 

O cenário recursal, portanto, leva em consideração tanto a natureza do ato, o seu conteúdo e o tempo em que foi produzido no processo. As decisões interlocutórias não recorríveis de imediato - e disto, não se tem propriamente uma escolha discricionária da parte - podem ser levantadas através de preliminar da apelação (interposta contra a sentença que colocará fim à fase de conhecimento) ou até mesmo em contrarrazões de apelação. Interessante que, nesta última hipótese, as contrarrazões, comumente definidas tão somente como uma resposta do recorrido da apelação interposta pela parte contrária, assume uma função hibrida. Nas contrarrazões, é permitido se recorrer justamente da questão decidida na interlocutória que não poderia ser, naquele momento em que proferida, objeto de recurso imediato. Tem-se uma forma de gerenciamento de preclusões e o desligamento de sintonia automática entre o recurso cabível e ato impugnado. Na apelação contra a sentença (ou nas contrarrazões) a parte poderá também impugnar decisões interlocutórias proferidas anteriormente, e que, portanto, não estão, textualmente, no ato de sentença. 

Tais situações podem gerar reflexos também no interesse recursal, que, a depender do caso não se torna tão evidente. Como se sabe, o interesse recursal é requisito de admissibilidade, já que é por meio do recurso que a parte procura melhorar a sua situação na relação processual. Portanto, evidentemente, quem perde a demanda, possui um nítido interesse em recorrer para melhorar a sua situação. Mas o fato de o Código ter disciplinado a postergação de recorribilidade em determinadas decisões interlocutórias, sobrelevam situações interessantes, que representam, até mesmo, a autorização de um interesse recursal nitidamente condicionado ou interesse recursal não relacionado apenas ao resultado formal da demanda. 

Pensemos em uma demanda em que o autor pede a produção de uma determinada prova que considera essencial para o reconhecimento do seu direito, mas o juiz nega e com o transcurso do procedimento, profere sentença julgando totalmente procedente o pedido autoral. Ou seja, mesmo o autor não conseguindo produzir a prova que gostaria sagrou-se vencedor na demanda.  Tratando-se de decisão que não é recorrível de imediato, não ocorreu ainda a preclusão da matéria. Por evidente, não há para ele, qualquer interesse - em evidência ao menos - em recorrer, pois já alcançou o melhor resultado que poderia obter: ganhou o processo. A parte contrária, perdedora, no entanto, tem um óbvio interesse de conseguir reverter a sua derrota e, tratando-se de sentença, apresenta apelação, na forma do art. 1.009 do CPC. 

Inicialmente, poder-se-ia pensar que para a parte vencedora da demanda somente se teria o interesse em responder ao recurso, por simples contrarrazões. Porém, lembre-se que aquela prova que ela requereu e que não foi produzida por um indeferimento do magistrado, poderá trazer reflexos, numa eventual possibilidade de inversão do resultado. Uma verdadeira ponta solta no emaranhado de decisões. Afinal, a parte autora ganhou o caso sem a demonstração daquela prova. Existe, de forma oculta, um interesse em ver a decisão de indeferimento da prova reformada, caso, a parte contrária consiga uma reforma da decisão de procedência.  O que fazer neste caso? 

Ora, tratando-se de indeferimento de prova, que não se admite uma recorribilidade imediata, para tal questão não se operou a preclusão, podendo, em contrarrazões, por exemplo, requerer a reforma daquela decisão, sob o argumento da essencialidade da prova. Porém, tal pedido somente possui utilidade prática (e recorda-se que interesse de agir é baseado no binômio necessidade-adequação), se o resultado atual restar invertido. Ou seja, se reformada a sentença que o colocou na posição de vencedor.  Portanto, tem-se um verdadeiro interesse recursal condicionado. Tudo dependerá da análise, pelo Tribunal, da apelação do réu/apelante. Se o tribunal entender que a sentença de procedência deve ser reformada, se exterioriza naquele instante, o interesse evidente do autor/apelado, de ver a questão sobre o indeferimento da produção de prova analisada pelo Tribunal. Por sua vez, se acolhida a pretensão do autor/apelado, a sentença deverá ser anulada, dando-se provimento ao recurso feito pelo autor/apelado em contrarrazões, determinando a produção daquela prova antes indeferida. 

É de se reparar que o interesse recursal do autor/apelado, somente surgiu, diante de uma análise do apelo do réu (que havia perdido a demanda e interposto recurso) que poderia ocasionar a inversão do resultado. O Tribunal, ao acolher o pedido recursal de reforma do julgado, deverá observar o pedido feito em contrarrazões, que é questão prejudicial, até mesmo para a tutela recursal do réu/apelante, que poderá, neste ponto, não reformar a sentença mas simplesmente, lograr o  provimento para anulá-la, permitindo-se, em contrapartida, o provimento do recurso que foi feito em contrarrazões para que,  àquela decisão não recorrível de imediato, seja substituída pela decisão do tribunal que permitiu a produção da prova.  

O resultado é que, o antes perdedor conseguiu uma chance, anulando a decisão de mérito que lhe era desfavorável e a parte contrária, que se sagrara vencedora até então, ainda que não tenha conseguido manter a vitória, logrou êxito em reverter uma questão que havia sido indeferida. Não dá para dizer que ficou bom para os dois lados, afinal, a parte que venceu, agora terá que lutar novamente para obter o ganho. 

Aqui se exemplificou o pedido de reforma feito pela parte ganhadora em contrarrazões, justamente porque só diante da interposição da apelação pela parte contrária é que a parte ganhadora, de fato, se preocuparia, neste exemplo, em procurar obstar a preclusão sobre decisões não recorríveis de imediato e que, somente diante da reversão da procedência mostrar-se-ia prejudicial aos seus interesses. Porém, as decisões não recorríveis de imediato, podem ser objeto também de apresentação de apelação pela própria parte, sem ter que realizar tais pedidos em sede de contrarrazões.

Uma outra hipótese também curiosa é aquela decorrente, por exemplo, da aplicação da multa do art. 334 §8º do CPC (ausência na audiência de mediação). Neste caso, mesmo com uma procedência do pedido, a parte vencedora que teve contra si aplicada a multa por não comparecimento, possuirá interesse recursal para atacar a decisão que fixou a multa, tendo em vista não ser uma decisão recorrível de imediato, e, portanto, submetida aos termos do art. 1.009 § 1º do CPC. Poderá o pedido de reforma ser feito diretamente pela parte vencedora na sua apelação, por mais que pareça, a princípio estranho, a parte vencedora apelar. A hipótese consta do enunciado 67 do Conselho de Justiça Federal.

Assim, o sistema recursal do código manda um recado claro: não há como aplicar diretamente a equação evidente da perda na demanda com o interesse recursal. O interesse recursal, inclusive, nem sempre se manifestará umbilicalmente do ato direto que se recorre. E isto fica evidente quando diz que as questões resolvidas na fase de conhecimento e que não comportaram recurso imediato, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em momento posterior. Nem sempre aquilo que aparenta é. Isso não é novidade. Afinal, deve-se perguntar: ganhei tudo que poderia mesmo ou ainda tenho riscos? 

Na dinâmica processual, deixar portas abertas, é um convite para revezes. Afinal, estamos diante de uma relação viva!

Scilio Faver

VIP Scilio Faver

Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados. Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

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