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A (in)aplicabilidade do "atual" Direito Empresarial na era digital (Parte 1)

Uma análise dos conceitos vigentes frente à nova realidade socioeconômica. Os remendos insuficientes para aumentar o cobertor curto. Os influenciadores digitais como empresários.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Atualizado às 08:13

É inegável a revolução que a internet provocou nas últimas décadas. O surgimento das novas tecnologias propiciou mudanças em diversos aspectos socioeconômicos, com destaque (neste artigo) para os meios de comunicação e de comércio. 

Decerto, "comunicação" e "comércio" caminham juntos, sendo difícil desassociar os conceitos.  A palavra "comércio", que tem origem no latim commutatio mercium, significa a troca de mercadorias por mercadorias1. Essa troca, por seu turno, pressupõe a comunicação entre os sujeitos da relação comercial/negocial. 

O desenvolvimento do comércio de forma organizada remonta à Idade Média2, com a crise feudal, migração do campo e consequente concentração populacional nas recém-inauguradas cidades, e a ascensão da classe burguesa, a partir da qual, segundo Ascarelli3, se desenvolveu um novo espírito empreendedor e uma nova organização dos negócios.

O, até então, incipiente Direito Comercial teve sua primeira fase caracterizada por um conjunto de normas criado pelos comerciantes para os próprios comerciantes: um sistema subjetivo e destinado à proteção da classe. 

As normas e a aplicabilidade do Direito Comercial perpassaram por profundas alterações, em resposta às mudanças sociais, como, por exemplo, a objetivação do sistema, com a centralização monárquica e a estatização do direito, a criação do Código Napoleônico (1807) e a teoria dos atos de comércio (que influenciou o Código Comercial Brasileiro, de 1850), seguidos pela fase de dinamização da atividade econômica, que inspirou o Código Civil italiano de 1942 e o Código Civil brasileiro vigente. 

Nos dizeres de Fran Martins4, o Direito Comercial, modernamente, é o Direito das Empresas e tem por escopo a tutela das relações econômicas, do crédito e dos bens e serviços destinados à atividade econômica. 

Toda a evolução teórica pode ser sintetizada em uma singela retrospectiva factual: num primeiro cenário, as feiras medievais, com a intensa circulação de pessoas, e o escambo de bens variados. Avançando alguns séculos, vislumbram-se os grandes maquinários da Revolução Industrial, a produção em massa, a eletricidade, as linhas de montagem e o fluxo de bens e serviços, os títulos de crédito e o papel-moeda. 

Hoje, algumas dessas imagens já se mostram obsoletas. O que inicialmente ocorria com a centralização de pessoas, bens, serviços e moedas, agora, ocorre, em grande parte, através da rede mundial de computadores, que propicia a negociação, em tempo real, entre sujeitos situados em diferentes locais do planeta, dispensando o deslocamento, com a possibilidade de pagamento por meio de operações e moedas digitais. 

Atualmente, fala-se na "era do mercado digital". Com um aparelho celular, conectado à internet, é possível, com alguns cliques e poucos minutos, negociar, interagir, vender, comprar, pagar etc. O que antes demandava considerável tempo e grandes deslocamentos, hoje, está disponibilizado de forma (quase) instantânea na palma da mão. A circulação de pessoas e de moeda deu lugar à transferência de dados.

Como sintetiza Ana Frazão5, o rápido avanço das tecnologias da informação tem possibilitado a intensificação da atividade econômica, através das trocas eletrônicas, rapidez e facilidade na comunicação, bem como em razão da renovação da forma de desenvolvimento da atividade econômica. Segundo a Autora, a economia do compartilhamento constitui uma ruptura com o modo de produção tradicional, ao passo que as relações de consumo clássicas estão sendo substituídas pelo "capitalismo de multidões". 

Se, por um lado, as transformações na empresa - entendida, aqui, como atividade econômica organizada - ocorrem de maneira rápida e profunda, noutro flanco, o ordenamento jurídico pátrio caminha "com passos de formiga e sem vontade".  

Há, sim, que se reconhecer alguns avanços, como por exemplo, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, além de algumas reações do Legislador a situações de extrema gravidade e violação de direitos cometidos no âmbito digital, como é o caso, por exemplo, da Lei Carolina Dieckmann.

Todavia, muito há para se percorrer, ainda. 

Para trazer mais luz à discussão, pesquisa realizada pelo SEBRAE6, no ano de 2023, apontou que 7 em cada 10 pequenos negócios brasileiros possuem perfis nas redes sociais, sendo o Instagram a plataforma mais popular (64%). 

Em outra pesquisa, realizada pela BigDataCorp7, chegou-se à conclusão de que 73,5% dos e-commerces são familiares, e quase metade são "empresas individuais" (o termo é utilizado na pesquisa em referência ao empreendimento exercido por apenas uma pessoa, sem relação direta com o conceito previsto no Código Civil). Apontou-se, ainda, que apenas 16,5% desses e-commerces possuem lojas físicas. 

A partir desses dados, e diante da nova perspectiva da "era do mercado digital", há que se responder a uma série de questionamentos que, para muito além do campo de discussão teórica, importa em efeitos práticos diversos, a depender da solução aplicada. 

É o que se pretende no restante deste Artigo e nos que o sucederão. 

Inicialmente, com o escopo de fincar a primeira estaca e indicar o caminho que se seguirá, o ponto de partida será a análise da possibilidade de enquadramento desses empreendedores no conceito de "empresário" constante no art. 966 do Código Civil. 

A legislação pátria define o empresário como aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços, excluindo do conceito aqueles que exercem profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística.

Não se olvida que a doutrina diverge acerca das características fundamentais que compõem o conceito de "empresário", uns trazendo mais e outros menos elementos. Todavia, para os fins ora propostos, será utilizada a sintetização realizada por Marlon Tomazette8, em seu Curso de Direito Empresarial, que condensa proposições doutrinárias diferentes e chega aos seguintes elementos essenciais: economicidade, organização, profissionalidade, assunção de risco e direcionamento ao mercado. 

Valendo-se dessas premissas, tome, como exemplo, a figura de um influenciador digital que se utiliza, exclusivamente, de uma rede social para divulgar conteúdo. Por meio de seu perfil ("@"), o influenciador atrai centenas de milhares de seguidores. 

Dentre os conteúdos divulgados, estão o oferecimento de um e-book e de cursos, ambos disponibilizados dentro da própria rede social, e adquiridos por uma centena dos milhares de seguidores. Além disso, o influenciador consegue uma segunda fonte de riqueza advinda da própria rede social, por meio da monetização de alguns conteúdos, evidenciando, assim, o requisito da economicidade. 

Decerto, aqui se está diante de uma produção de conteúdo de maneira organizada: existe uma logística e tomada de decisões sobre quais materiais geram engajamento ou não, estudo sobre as métricas e algoritmos da rede, avaliação da audiência/seguidores, reflexões sobre os conteúdos que serão objeto de impulsionamento e tráfego pago, entre outros fatores de decisão e ordenamento. 

Outrossim, a produção, divulgação e comercialização dos conteúdos e dos bens e serviços oferecidos ocorre de maneira habitual e com estabilidade, não se tratando de lazer ou recriação. 

Por seu turno, o empreendedor assume os riscos do negócio, consciente da possibilidade de interpretar equivocadamente as métricas e o algoritmo da rede, fadando ao fracasso a entrega de seu conteúdo. Soma-se a isso as recorrentes falhas operacionais e sistêmicas da rede social, que podem deixar a plataforma fora do ar por horas. Para além dos fatores externos de risco (que poderiam preencher páginas e páginas com exemplos), há que se destacar o fator subjetivo, a saber, a ausência de criatividade ou carisma do empreendedor para conquistar e cativar seguidores; a falta de conhecimento para elaboração dos infoprodutos etc. 

E, por fim, há que se reconhecer que a atividade desenvolvida pelo influenciador digital é destinada ao mercado, e não para fins pessoais ou satisfação própria. Em revés, todo o conteúdo produzido, divulgado e oferecido tem um destino certo: alcançar os demais usuários da rede, de maneira a fazê-los seguidores e torná-los clientes. 

Logo, todos os elementos sinalizados por Marlon Tomazette foram devidamente assinalados, de modo que é possível que o influenciador se enquadre no conceito de "empresário", consoante disposição constante no art. 966 do Código Civil. 

Em sendo assim, as normas de Direito Empresarial são aplicáveis a esse influenciador digital? Há a obrigatoriedade de inscrição no Registro? Aplica-se, aqui, as regras da capacidade do empresário constantes no art. 972 do Código Civil? Indo adiante, o que será considerado como estabelecimento deste empresário? Será admitido o conceito de "estabelecimento virtual", com a possibilidade de trespasse do perfil na rede social? Como se dará a proteção à clientela? Quais serão os parâmetros para metrificação do aviamento?

As indagações são múltiplas e, ao se deparar com uma 'pseudoresposta', em verdade, surgem outras tantas perguntas. 

Todavia, já é possível chegar a uma conclusão: os institutos, conceitos e entendimentos que conduziram o direito empresarial até aqui já não servem para a fase atual da sociedade e da economia em rede.

Decerto, não precisa ser especialista para perceber o limpo entre a realidade da atividade econômica digital e as normas regulamentadoras. Em que pese alguns remendos na legislação, como tentativa de aumentar o cobertor curto, não se pode olvidar que a maioria dos conceitos e regramentos jurídicos remonta à idade da pedra. 

Os remendos interpretativos não são suficientes; é premente um cobertor novo, que se adeque às realidades da era digital e suas nuances, que cubra, senão todas, a grande maioria das novas relações jurídicas advindas da internet. 

Mas enquanto isso não ocorre, passemos ao próximo remendo... 

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1 TOMAZZETE, Marlon. Teoria Geral e Direito Societário. 14. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. 

2 Destaca-se, no presente Artigo, o período do comércio a partir do fim da Idade Média, remontando aos séculos XI e XII, sem desconsiderar, todavia, que a atividade comercial, em sua concepção etimológica, é tão antiga como a própria sociedade., sendo cediço que, ainda na Antiguidade, surgiram as primeiras regulamentações por meio do Código de Manu, na Índia, e do Código de Hammurabi, na Babilônia.

3 ASCARELLI, T. Origem do Direito Comercial. Tradução de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, n. 103, p. 88, jul./ser. 1996.4 

4 MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

5 Frazão, Ana. "Internet, Novos Negócios e Economia Do Compartilhamento: Desafios Para a Regulação Jurídica." Internet e Regulação (2021): n. pag. Print.

6 https://agenciasebrae.com.br/dados/sete-em-cada-10-pequenos-negocios-tem-perfis-nas-redes-sociais-instagram-e-a-plataforma-preferida/#:~:text=Ag%C3%AAncia%20Sebrae%20de%20Not%C3%ADcias,-Voc%C3%AA%20est%C3%A1%20na&text=Sete%20em%20cada%2010%20pequenos%20neg%C3%B3cios%20brasileiros%20t%C3%AAm%20perfis%20nas%20redes%20sociais. 

7 https://istoedinheiro.com.br/pesquisa-mostra-que-73-das-lojas-virtuais-no-brasil-sao-familiares/ 

8 TOMAZETTE, Marlon. Teoria Geral e Direito Societário. 14. ed. São Paulo : SaraivaJur, 2023 (Curso de direito empresarial).

Luany Andrade Aguiar

Luany Andrade Aguiar

~ Simplificando o juridiquês. Especialista em Recuperação Judicial e Extrajudicial. Pós-graduada em Licitações e Contratos Públicos. Compliance.

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