MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. Impactos processuais da reforma da lei 14.825/24 na recuperação de créditos

Impactos processuais da reforma da lei 14.825/24 na recuperação de créditos

Quais os limites da garantia de eficácia dos negócios jurídicos relativos a imóveis em cuja matrícula inexista averbação de constrição judicial?

sexta-feira, 22 de março de 2024

Atualizado às 11:37

A lei 14.825, de 20/3/24, foi aprovada para garantir a eficácia dos negócios jurídicos relativos a imóveis em cuja matrícula inexista averbação de qualquer tipo de constrição judicial.

Com sua edição, foi adicionado o inc. V ao caput do art. 54 da lei 13.097/15:

"Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

[...]

V - averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária."

Esta nova disposição encontra-se em vigor desde a publicação oficial da lei 14.825 no Diário Oficial da União do dia 21/3/24.

O art. 54 da lei 13.097/15 deve ser interpretado em conjunto com o art. 792 do CPC de 2015. Com a alteração promovida pela lei 14.825/24, enfatiza-se o princípio da concentração dos fatos no registro do imóvel adotado por esse conjunto de regras.

Esse princípio, no entanto, a meu ver, não é absoluto, mesmo após a importante reforma da Lei 14.825/2024. Explicarei melhor o meu ponto de vista:

Em se tratando de ação que deva recair ou de ato executivo que tenha incidido sobre bem sujeito a registro, a pendência do processo ou o ato constritivo devem ser levados à averbação (cf. incs. I a III do art. 792 do CPC/2015). Essa regra coaduna-se com aquelas previstas no art. 799, IX do CPC/2015 (que dispõe que ao exequente incumbe "proceder à averbação em registro público do ato de propositura da execução e dos atos de constrição realizados, para conhecimento de terceiros"; destacamos) e no art. 844 do CPC/2015 (segundo a qual o arresto ou a penhora devem ser levadas à averbação no registro público competente, "para presunção absoluta de conhecimento por terceiros").

O CPC/15, no ponto, apenas reproduziu, em certos termos, parte do que já constava do art. 54 da lei 13.097/15.

De acordo com esse dispositivo, "os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel" (destacamos) o registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias, a averbação de constrição judicial, da admissão de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, a "averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792" do CPC/2015 (na redação da Lei 14.382/2024), e, ainda a "averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária" (na redação da Lei 14.825/24).

O § 1.º do art. 54 da lei 13.097/15 (na redação da MP 1.085/21, convertida na lei 14.382/22), por sua vez, estabelece que "não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos art. 129 e art. 130 da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel" (além disso, cf. o que consta do § 2.º do art. 54 da lei 13.097/2015, na redação da MP 1.085/21, convertida na lei 14.382/22).

Vê-se que o art. 54 da lei 13.097/15, e, em alguma medida, também o art. 792 do CPC/15, adotam o princípio da concentração dos fatos no registro oficial do imóvel. Todos os fatos relacionados à "vida" do imóvel devem ser concentrados em um mesmo local, evitando a necessidade de dispersão dos interessados em busca de dados relacionados às condições em que se encontra o bem (sobre este princípio, cf. o que escrevi em Código de Processo Civil Comentado, 9.ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2024, em comentário ao art. 792 do CPC, e doutrina ali citada).

Sob esse prisma, como regra, só se reconhecerá a fraude à execução se realizada a averbação a que se referem os arts. 54 da lei 13.097/15 e os incisos do art. 792 do CPC/15 (cf., também, art. 799, IX do CPC/15). A necessidade de averbação, no caso do inc. IV do art. 792 do CPC/15, em se tratando de imóveis, decorre do previsto no art. 54, IV da lei 13.097/15. Em se tratando de outro tipo de constrição judicial, incide o inc. V do art. 54 da lei 13.097/15, adicionado pela lei 14.825/24.

O CPC/15, assim, em consonância com a lei 13.097/15, optou por proteger os interesses do terceiro que venha a adquirir bens do executado, exigindo, nos casos em que o bem se sujeite a registro, a averbação da pendência do processo ou do ato constritivo para que a alienação ou oneração do bem possa ser considerada em fraude à execução.

Tais disposições fazem com que se consolide, na lei, em parte, orientação firmada na jurisprudência do STJ, na vigência do CPC/73, cf. primeira parte da Súmula 375 do STJ: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente." Essa orientação foi reiterada pelo Tribunal por ocasião do julgamento do REsp repetitivo 956.943/PR: "1.4. Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena de tornar-se letra morta o disposto no art. 659, § 4º, do CPC. 1.5. Conforme previsto no § 3º do art. 615-A do CPC, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após a averbação referida no dispositivo"; Corte Especial, j. 20/8/2014).

As regras acima referidas, previstas na lei 13.097/15 e no CPC/15 não são incompatíveis, mas convivem, devendo ser interpretadas de modo harmônico. No caso, não se coloca a questão referente ao ônus de provar o conhecimento de terceiro, em virtude do disposto no art. 844 do CPC/15.

Isso não significa, porém, que, ausente a averbação, fique impossibilitado o reconhecimento do vício. A evidente primazia dada pela lei ao princípio da concentração não impõe que quaisquer atos praticados pelo executado em prejuízo do exequente e da própria função jurisdicional devam ser necessariamente respeitados, se não realizada a averbação de bens sujeitos a registro.

A leitura isolada dos incs. I a III do art. 792 do CPC/15 e do inc. V do caput art. 54 da lei 13.097/15 (na redação da lei 14.825/24) poderia induzir o intérprete ao entendimento de que, não realizada a averbação em registro público, não haveria como se opor à alienação ou oneração de bem penhorado (o inc. III do art. 792 do CPC/15, p. ex., é claro ao dispor que há fraude à execução quando o ato constritivo tiver sido averbado no registro do bem). Mesmo que tais dispositivos sejam interpretados de modo restritivo, a alienação de bem penhorado, ainda que não tenha havido averbação de tal ato constritivo, não pode ser admitida, se demonstrada a scientia fraudis do terceiro adquirente. Adoto esse entendimento pelas seguintes razões:

O § 1.º do art. 54 da lei 13.097/15 ressalva, textualmente, que fica protegido quanto a "situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis" apenas o terceiro de boa-fé. Assim, atos praticados entre o executado e terceiro de má-fé não são amparados pela lei processual ou pela disciplina prevista no art. 54 da lei 13.097/15, mesmo após a reforma da lei 14.825/24.

A alienação de bem penhorado sujeito à averbação, ainda que esta não tenha sido realizada, é ato atentatório à dignidade da justiça (no mínimo, o executado, no caso, está a dificultar a realização da penhora, cf. inc. III do art. 774 do CPC/15, mas não se exclui que outros dos incisos previstos no referido dispositivo também incidam, no caso). Demonstrada a ciência de terceiro quanto à penhora, deverá o juiz declarar a ineficácia do ato de alienação ou oneração do bem penhorado, reprimindo, ex vi do art. 139, III do CPC/15, o ato atentatório à dignidade da justiça perpetrado.

A jurisprudência, na vigência do CPC/73, distinguia a alienação do bem penhorado (que não era mencionado pelo art. 593 do CPC/1973 como uma das hipóteses de fraude à execução) da fraude à execução prevista no inc. II do art. 593 daquele Código (no CPC/15 prevista no inc. IV do art. 792), ressaltando ser, aquela, situação mais grave: "Convém evitar a confusão entre (a) a fraude à execução prevista no inc. II do art. 593 [de 1973, correspondente ao inc. IV do art. 792 do CPC/2015], cuja configuração supõe litispendência e insolvência, e (b) a alienação de bem penhorado (ou arrestado, ou sequestrado), que é ineficaz perante a execução independentemente de ser o devedor insolvente ou não. Realmente, se o bem onerado ou alienado tiver sido objeto de anterior constrição judicial, a ineficácia perante a execução se configurará, não propriamente por ser fraude à execução (CPC, art. 593, II [de 1973, correspondente ao art. 792, IV do CPC/15]), mas por representar atentado à função jurisdicional" (STJ, REsp 494.545/RS, 1.ª T., j. 14.09.2004, rel. Min. Teori Albino Zavascki). A despeito disso, ambas as hipóteses eram tratadas, também na jurisprudência, como modalidades de fraude à execução (cf. revela o enunciado da Súmula 375 do STJ, transcrito acima).

Tem-se, assim, que se pode configurar a fraude à execução quando ocorrer uma das hipóteses referidas nos incs. I a III do art. 792 do CPC/15, para as quais, de acordo com o texto legal, faz-se necessária a averbação em registro público, mas isso não impede que se reconheça haver ato atentatório à dignidade da justiça quando o executado aliena bem penhorado, e o terceiro adquirente tem ciência da penhora. Ainda que se diga que, no caso, não haveria fraude à execução em sentido estrito (isso é, nos precisos termos da redação restritiva dos incs. I a III do art. 792 do CPC/15), o reconhecimento do vício deverá conduzir ao mesmo resultado.

Semelhantemente, em relação à hipótese prevista no inc. IV do art. 792 do CPC/15 (que, em princípio, também depende de averbação no registro de imóveis, nos termos do art. 54, IV e dos arts. 56 e 57 da Lei 13.097/2015), não se deverá deixar de reconhecer a ocorrência de ato atentatório à dignidade da justiça, se verificada a scientia fraudis. Isso também se aplica ao caso previsto no art. 54, V da lei 13.097/15, hipótese adicionada pela lei 14.825/24.

Além de o § 1.º do art. 54 da lei 13.097/15 ser claro quanto à proteção de terceiro de boa-fé (excluindo-se, ipso facto, o terceiro que tenha ciência da fraude), solução diversa criaria grave incoerência sistêmica, já que, embora possível o reconhecimento da fraude contra credores prevista no art. 158 do CC/02 (que, em princípio, resguarda apenas o interesse do credor), criaria condições mais severas para que se reconhecesse a fraude à execução (em que está em jogo não apenas o interesse do exequente, mas, também, o da própria atividade jurisdicional).

O conjunto de regras acima referidas conduz a que se entenda que, em princípio, o exequente terá o ônus de provar a ausência de boa-fé do terceiro, caso não seja feito o registro a que se referem os arts. 792 do CPC/15 e 54 da lei 13.097/15. A jurisprudência do STJ vem caminhando nesse sentido (cf. STJ, AgInt no REsp n. 1.993.894/SP, 3.T., j. 14/11/2022; STJ, AgInt no REsp n. 1.768.672/PR, 4.T., j. 12/6/2023).

Não poderá ser utilizado, como argumento a justificar a atribuição do ônus da prova ao exequente, a exigência de se apresentar certidões referentes a "feitos ajuizados" para a lavratura de escritura pública, antes prevista no § 2.º do art. 1.º da lei 7.433/85, pois a necessidade de se constar tal informação não mais consta do dispositivo (cf. redação da Lei 13.097/2015). Esse entendimento é confirmado pelo § 2.º do art. 54 da lei 13.097/15 (parágrafo este adicionado pela Medida Provisória 1.085/2021, convertida na Lei 14.382/2022).

Continua a ter aplicação, nesses termos, a 2.ª parte do enunciado da súmula 375 do STJ, acima transcrita. Semelhantemente, cf. Enunciado 149 da Jornada CEJ/CJF: "A falta de averbação da pendência de processo ou da existência de hipoteca judiciária ou de constrição judicial sobre bem no registro de imóveis não impede que o exequente comprove a má-fé do terceiro que tenha adquirido a propriedade ou qualquer outro direito real sobre o bem."

Esse entendimento, segundo meu ponto de vista, deve ser mantido, mesmo após a adição do inc. V ao caput do art. 54 da lei 13.097/15 pela lei 14.825/24.

José Miguel Garcia Medina

José Miguel Garcia Medina

Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca