Comentário sobre a gravação do advogado
Acredito que a transparência e o respeito mútuo entre as partes presentes na audiência seriam soluções adequadas para resolver a questão.
quinta-feira, 21 de março de 2024
Atualizado às 08:22
O portal Migalhas recentemente destacou um confronto memorável que se desenrolou em uma audiência no Rio de Janeiro, uma narrativa onde tecnologia, direito e um toque de leveza não planejada se entrelaçam de maneira singular. A cena pela lente: um advogado, armado com seu fiel celular, resolve registrar o momento, visando guardar cada detalhe. Porém, em uma reviravolta digna de cinema, a promotora, dotada de uma percepção aguçada, detecta a ação e a atmosfera se transforma. Frente a este impasse, o juiz, mantendo a serenidade, intervém e determina a apreensão do dispositivo.
O que realmente destaca este episódio não é meramente o ato de apreensão, mas sim o embate dialético que se sucede. O advogado, mantendo a polidez e o respeito ao tribunal, argumenta em defesa de sua conduta, invocando o Código de Processo Civil (CPC) para justificar a gravação como um meio de criar um arquivo pessoal. No entanto, com uma inocência quase palpável, ele se depara com a resposta da promotora, que, munida da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com pitacos de proteção do direito a personalidade, transforma o debate em um verdadeiro duelo de legislações. Ela alega, com uma convicção que reverbera pelos corredores do tribunal, que sua voz é sua propriedade, resguardada por um arcabouço legal inquebrantável.
Neste momento crítico, o juiz, talvez sentindo-se como um personagem de thriller cinematográfico diante de uma escolha decisiva, opta pela via da cautela e confisca a gravação. A deliberação gravada reflete sobre a questão da autorização para capturar a voz da promotora, acendendo uma luz sobre dilemas contemporâneos.
Este peculiar acontecimento suscita uma reflexão (acompanhada, quem sabe, de um sorriso): é permitido gravar ou não? Em meio a debates jurídicos e apelos fervorosos pelos direitos à informação e à privacidade, esta história se desdobra, lembrando-nos de que, tanto em tribunais quanto na vida, as coisas nem sempre são preto no branco. E, por vezes, a melhor estratégia é abraçar o bom humor e tirar lições das mais inesperadas situações.
A questão de gravar uma audiência judicial e a necessidade de autorização é um tema complexo que envolve o direito à privacidade, a proteção de dados pessoais e as normas que regem o procedimento judicial.
No Brasil, o Código de Processo Civil permite, em seu artigo 367, que as partes gravem a audiência por meios próprios, independentemente de autorização judicial. Contudo, esta disposição deve ser conciliada com outros direitos, como os garantidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que protege dados pessoais e a privacidade.
Há argumentos de que, apesar da permissão legal, a gravação de audiências deveria considerar o direito à personalidade e à privacidade das outras partes envolvidas, especialmente quando captam a imagem ou a voz de pessoas que podem não estar cientes de que estão sendo gravadas. Em alguns casos, o advogado pode ser orientado a informar todas as partes envolvidas sobre a gravação para evitar qualquer violação potencial de privacidade.
Portanto, embora a lei permita a gravação sem autorização prévia, as questões éticas e de privacidade podem sugerir que a obtenção de consentimento seja a melhor prática, especialmente em situações onde a LGPD é aplicável.
Vamos rever o caso em detalhes.
Um juiz da 2ª Vara Criminal de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, apreendeu a gravação feita pelo advogado Cleydson Lopes durante audiência com uma testemunha. A apreensão foi determinada depois da reclamação feita pela promotora de Justiça Erminia Manso, que percebeu que a sessão estava sendo registrada.
A gravação de audiências de instrução e julgamentos por quaisquer das partes, no entanto, é permitida pelo Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 367, independentemente de autorização judicial.
Ao perceber a gravação, a promotora de Justiça questiona o advogado. "O senhor está gravando, doutor? Mas o senhor não avisou nem a testemunha nem a ninguém", disse a promotora.
Em seguida, o advogado confirma a gravação e lembra o artigo do CPC que permite o registro da audiência. "Mas a gravação é minha, excelência, artigo 367 do CPC", disse Lopes.
"Mas eu não autorizei. Tem a voz da testemunha na gravação. Ele autorizou a gravação em algum lugar", rebateu a promotora, usando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) como argumento. "Mas não precisa [de autorização]. É uma prerrogativa do advogado. O CPC autoriza", argumenta o advogado.
O juiz Aylton Cardoso, então, interrompe o bate-boca e anuncia a interrupção do depoimento. Em seguida, o magistrado avisa ao advogado que a gravação seria apreendida.
"A sessão está encerrada, o depoimento está interrompido, porque essa gravação será apreendida", informou o juiz.
O Artigo 367 do Código de Processo Civil (CPC) brasileiro estabelece as formalidades para a documentação do que ocorre em uma audiência, incluindo a elaboração do termo de audiência e a possibilidade de gravação. Os parágrafos 5º e 6º são particularmente relevantes para a questão da gravação de audiências.
O § 5º do artigo mencionado autoriza que a audiência seja gravada integralmente em imagem e áudio, contanto que isso assegure acesso rápido às partes e aos órgãos julgadores. Isso significa que o registro eletrônico da audiência deve ser feito de forma a facilitar a consulta por quem de direito, dentro do devido processo legal.
O § 6º vai além, ao esclarecer que essa gravação pode ser realizada diretamente por qualquer das partes, sem necessidade de autorização judicial. Isso confere a advogados, promotores e partes o direito de registrar os procedimentos para seus próprios usos legítimos, como a preparação para etapas subsequentes do processo ou para salvaguardar seus interesses legais.
No entanto, a gravação não deve violar outros direitos fundamentais, como a privacidade, que é protegida tanto pelo Código Civil quanto pela LGPD. Portanto, embora o CPC permita a gravação sem a necessidade de autorização judicial, as partes devem manejar tal prerrogativa com responsabilidade e respeito aos direitos alheios, sob pena de responsabilização nos termos da legislação aplicável.
Em casos de desacordo sobre a gravação, pode-se buscar um entendimento com o juízo para assegurar que a gravação seja realizada de maneira que respeite os direitos de todas as partes, podendo, inclusive, ser estabelecidas condições para a sua realização e posterior uso.
Ao considerar a situação envolvendo a gravação da voz da promotora durante uma audiência sem sua autorização expressa, a reflexão sobre o direito à personalidade e a proteção legal da voz como extensão da imagem pessoal ganha profundidade com a citação do Artigo 20 do Código Civil. Este artigo estabelece:
"Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais."
Dentro deste contexto, podemos entender o reclamo da promotora quanto à gravação de sua voz sem prévia autorização. O artigo 20 delineia claramente a proteção contra a transmissão da palavra (neste caso, a voz) sem autorização, exceto em circunstâncias que justifiquem tal ação para a administração da justiça ou manutenção da ordem pública. A preocupação da promotora pode ser fundamentada no receio de que a gravação e possível divulgação de sua voz possam, de alguma forma, atingir sua honra, boa fama, respeitabilidade ou serem usadas com propósitos inapropriados.
A autorização para gravação de audiências pelo Código de Processo Civil, especialmente no parágrafo 6º do artigo 367, visa assegurar a transparência e a fidelidade dos procedimentos judiciais, servindo como ferramenta para a defesa dos direitos das partes envolvidas. No entanto, o uso dessa gravação deve ser cuidadosamente ponderado com os direitos à privacidade e à imagem das pessoas gravadas, como estabelecido pelo Código Civil.
Esse embate entre o direito de registrar o procedimento judicial e o direito à proteção da personalidade das pessoas envolvidas sugere a necessidade de um diálogo aberto e consentimento mútuo antes da realização da gravação. A prática ideal, nesse sentido, seria informar todas as partes presentes na audiência sobre a intenção de gravar, explicando o propósito e assegurando que a utilização da gravação será restrita aos limites processuais e de defesa, sem prejuízo aos direitos de personalidade dos envolvidos.
Assim, o respeito à legislação e a busca por um equilíbrio entre os direitos em jogo evidenciam a complexidade da matéria e reforçam a importância da sensibilidade e da ética profissional na condução dos procedimentos judiciais, garantindo a proteção dos direitos individuais sem comprometer a justiça e a ordem pública.
Sob a égide da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a voz é categorizada como dado pessoal devido à sua capacidade intrínseca de identificar um indivíduo, como, por exemplo, a promotora. A LGPD tem como objetivo a regulamentação do tratamento de dados pessoais, instituindo uma série de direitos e obrigações para assegurar tanto a privacidade quanto a proteção desses dados.
No contexto de gravação de voz, destacam-se artigos pertinentes da LGPD, entre eles o Artigo 7º, que estipula as condições sob as quais o tratamento de dados pessoais é permitido. Especificamente, o inciso I deste artigo ressalta a importância do consentimento do titular dos dados, que deve ser concedido de maneira livre, informada e inequívoca, refletindo a concordância do titular com o tratamento de seus dados pessoais para propósitos claramente definidos.
O Artigo 5º, por sua vez, define o que são considerados dados pessoais, abrangendo qualquer informação capaz de identificar uma pessoa ou expô-la a riscos. Embora a LGPD não classifique explicitamente a voz como um dado sensível, sua capacidade de identificação a insere na categoria de dado pessoal, demandando especial atenção e cuidado em seu tratamento. A legislação também esclarece o conceito de tratamento de dados, englobando uma ampla gama de operações realizadas com dados pessoais, desde a coleta até a eliminação, passando pela utilização, armazenamento e distribuição.
Além disso, o Artigo 18 confere ao titular dos dados diversos direitos, incluindo a confirmação da existência de tratamento, acesso aos dados, correção de informações inexatas ou incompletas e esclarecimentos sobre as consequências de não fornecer consentimento. Situações hipotéticas, como a gravação parcial da voz que é posteriormente divulgada ou vazada fora de seu contexto original, realçam a importância de aderir rigorosamente aos princípios da LGPD.
Caso a voz da promotora seja gravada durante uma audiência, a LGPD fundamenta a necessidade de obter consentimento prévio. A gravação, sendo um tratamento de dado pessoal com potencial de identificar o titular, exige transparência quanto aos objetivos da coleta e a garantia de que a utilização respeitará os limites legais, protegendo os direitos do titular.
No âmbito jurídico, marcado pelas normativas da LGPD, é vital a existência de clareza e comunicação efetiva entre as partes sobre o tratamento de dados pessoais, como a gravação de voz, para garantir a conformidade com a legislação e a proteção dos direitos à privacidade e liberdade dos indivíduos envolvidos.
Contudo, vale notar que a LGPD prevê exceções em seu Artigo 4º, que determina situações nas quais a lei não se aplica, como no caso de tratamentos realizados por pessoas naturais para fins exclusivamente particulares e não econômicos. No entanto, essas exceções não se aplicam no contexto de audiências judiciais, visto que tais eventos envolvem interesses econômicos e públicos, transcendendo o âmbito privado.
Os honorários recebidos pelo advogado evidenciam o interesse econômico em registrar a audiência, enquanto a própria audiência reflete o interesse do judiciário em oferecer uma resposta à sociedade sobre o caso. O advogado, ao exercer sua missão privada, desempenha uma função de relevante interesse público.
Acredito que a transparência e o respeito mútuo entre as partes presentes na audiência seriam soluções adequadas para resolver a questão.
É fundamental reconhecer que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Código de Processo Civil (CPC), o Código Civil (CC), e a Constituição Federal devem ser interpretados e aplicados de maneira integrada, especialmente à luz da nova perspectiva de privacidade introduzida pela LGPD. Esse enfoque holístico é necessário para uma compreensão abrangente dos direitos individuais no que tange à privacidade, proteção de dados, e ao controle sobre o uso da própria imagem e voz.
Um desafio contemporâneo é a tendência de tratar legislações como a LGPD ou o CPC como normativas isoladas no que concerne à definição de privacidade e proteção de dados. Contudo, é imperativo destacar que cada pessoa possui o direito inerente de controlar o uso de sua imagem e voz, bem como o direito de não ser gravada ou filmada sem consentimento. Este entendimento amplo é crucial para uma análise completa dos direitos à privacidade em diversos contextos.
Portanto, a análise dessas normas não deve ser feita em compartimentos estanques, mas sim considerando-se o sistema normativo como um todo. Isso garante que a aplicação das leis respeite os princípios constitucionais e se alinhe aos avanços contemporâneos em matéria de privacidade e proteção de dados, assegurando a proteção efetiva dos direitos individuais.
Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos
Advogado e Presidente da Digital Law Academy. Ph.D., ocupa o cargo de Conselheiro Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP), com mandatos entre 2013-2018 e 2022-2024. É membro da Comissão Nacional de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB. Foi convidado pela Mesa do Congresso Nacional para criar e coordenar a comissão de Juristas que promoveu a audiência pública sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, realizada em 24 de maio de 2019. Possui destacada carreira acadêmica, tendo atuado como professor convidado da Università Sapienza (Roma), IPBEJA (Portugal), Granada, Navarra e Universidade Complutense de Madrid (Espanha).