Acordos de leniência: O TCU e o sistema anticorrupção
Leniency agreements, criados nos EUA nos anos 1970, visam combater práticas anticoncorrenciais. No Brasil, são regulamentados pela lei 12.529/11.
sexta-feira, 15 de março de 2024
Atualizado às 14:18
Os leniency agreements foram concebidos ainda na década de 1970, nos EUA, com o objetivo de combater condutas anticoncorrenciais, no contexto da legislação antitruste, visando promover, ao mesmo tempo, punição para condutas ilegais e maior eficácia estatal no combate às atividades anticompetitivas, por intermédio da colaboração de players empresariais com as autoridades. As primeiras experiências foram frustradas porque haveria excesso de discricionariedade ou desproporcionais "critérios subjetivos" na sua implementação e celebração. Eduardo Galeano já dizia que: "a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será".
No Brasil, a primeira regulamentação da matéria ocorreu com a lei 8.884/94, que dispunha sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. Em seguida, foi alterada pela lei 12.529/11, responsável por instituir um verdadeiro programa de leniência, vinculado à atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE.
Contudo, este tipo de acordo ganhou maior repercussão social a partir da aprovação da lei 12.846/13, a lei anticorrupção, que estabeleceu responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública e que determinava expressamente a competência da Controladoria-Geral da União - CGU para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal (Art. 16, § 10).
Os referidos acordos alcançaram os noticiários e ganharam as ruas no bojo das investigações promovidas pela Operação Lava-Jato, considerada, durante anos, um caso de sucesso e modelo no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro no Brasil. Em 2023, a CGU informou que o Governo Federal recuperou mais de 1,2 bilhão, por intermédio de acordos de leniência, com cerca de 30% (R$ 380 milhões) de pagamentos vinculados à Lava-Jato.
O instituto não para de evoluir, e, recentemente, a CGU e Advocacia Geral da União - AGU celebraram o primeiro instrumento sancionador negocial com uma empresa de pequeno porte. Há ainda um processo de "revisionismo", visando a manutenção e aperfeiçoamento do sistema que representa, com a necessária mitigação de vícios, distorções e abusos.
O Supremo Tribunal Federal - STF, em recente decisão monocrática, sujeita a confirmação do Plenário, suspendeu multas bilionárias e autorizou que acordos já celebrados durante a Lava-Jato fossem reavaliados pela Procuradoria-Geral da República - PGR, a CGU e a AGU. Além disso, tramita no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 1051, ajuizada pelas agremiações partidárias: Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, Partido Comunista do Brasil - PCdoB e Solidariedade, que pleiteiam a suspensão geral das multas estabelecidas nos acordos de leniência da Lava-Jato, denunciando atuação abusiva, especialmente, da PGR.
Na ADPF 1051, é citado um documento que vincula a atuação do Tribunal de Contas da União - TCU na matéria da leniência. Trata-se do Acordo de Cooperação Técnica - ACT, celebrado em 2020 entre os titulares do STF, PGR, Ministério da Justiça, TCU, CGU e AGU, todos órgãos autônomos, mas que, em conjunto, compõe o "sistema brasileiro de defesa da concorrência e de prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica" ou, simplificando, o "sistema brasileiro anticorrupção,"
O ACT apresenta uma série de princípios, pilares, ações compromissadas, ações sistêmicas e ações operacionais. São diretrizes que tentam fundamentar e operacionalizar a atuação sistêmica e conjunta dos órgãos signatários. Dentre os sete "princípios gerais" aplicáveis em matéria de políticas e atuações estatais anticorrupção, pode-se destacar: "da articulação interinstitucional", que se realiza com a contínua e permanente cooperação mútua entre os órgãos e instituições competentes para atuar na matéria; "do respeito às atribuições e competências", que reconhece a relevância individual de cada órgão e instituição no combate à corrupção; "da atuação responsável, consciente, prudente e estratégica", que impõe o uso correto, necessário e adequado dos instrumentos disponíveis direcionados ao combate à corrupção, à recuperação de ativos e à defesa do património público.
Também são reconhecidos dezessete "Princípios específicos" aplicáveis aos acordos de leniência (lei 12.846/13), dentre os quais: "da colaboração, lealdade, boa-fé objetiva e proteção da confiança entre Estado e a pessoa jurídica colaboradora"; "da inaplicabilidade de sanções adicionais àquelas aplicadas ao colaborador no acordo de leniência"; "da busca do consenso quanto à apuração e eventual quitação de danos decorrentes de fatos abrangidos no acordo"; "da responsabilização objetiva da pessoa jurídica pelos atos lesivos praticados"; "da busca do interesse público na avaliação da vantajosidade da proposta de acordo para a Administração Pública"; "da objetividade dos parâmetros para fixação proporcional e razoável dos valores a serem pagos"; "da transparência e publicidade dos acordos de leniência firmados"; "da cooperação internacional; "da razoabilidade e da proporcionalidade" na imposição de obrigações e sanções; "da efetividade e caráter dissuasório das sanções"; "do non bis in idem" e "da colaboração do particular por meio do programa de integridade".
Os quatro pilares reconhecidos como regentes dos acordos de leniência são: 1) a efetiva colaboração do envolvido na apuração dos ilícitos; 2) o ressarcimento ao erário dos valores apurados consensualmente; 3) a obrigação de implementação de altos padrões de integridade e compliance; 4) a perda de todos os benefícios em caso de descumprimento.
O Acordo de Cooperação Técnica é, portanto, um documento paradigmático que já antecipava os problemas e desconfiança que os acordos de leniência enfrentam. Igualmente, projetou a atuação conjunta dos órgãos do sistema anticorrupção
Sobre o TCU, o ACT estabelece diversas ações operacionais, das quais devem ser prestigiadas: a) compromisso de acionar a CGU e a AGU para atuarem quando, em investigações, sob sua competência, for identificado o envolvimento de pessoa jurídica em ilícitos alcançados na lei 12.846/13; b) no âmbito de sua jurisdição, colaborar com CGU e AGU, na estimação dos danos decorrentes dos ilícitos; e c) atuar destacadamente em tomadas de contas especial/fiscalização de contratos daquelas pessoas, físicas ou jurídicas, envolvidas em ilícitos, não abarcadas por um determinado acordo de leniência.
A Corte de Contas da União não tem competência para negociar e nem é parte nos acordos baseados na lei 12.846/13, mas é indiscutível que pode e deve atuar em colaboração, amplificando as virtudes do sistema anticorrupção brasileiro. Por exemplo, débitos já apurados em processos que tramitam na Corte poderiam ser incorporados aos termos de ressarcimento de um acordo de leniência, ainda na fase de tratativas negociais.
Todas as atuações do TCU decorrem com alto grau de técnica e profissionalismo, que conferem segurança jurídica e previsibilidade ao órgão (membros e servidores), aos fiscalizados ou interessados e à sociedade como um todo. Daí que, sob a relatoria do ministro Benjamin Zymler, foi explicitado o resultado de um grupo de trabalho, instituído ainda em 2021, cujos encaminhamentos estão expostos no Acórdão 239/24 - Plenário.
Os frutos do trabalho desenvolvido são dois importantes atos normativos: a IN - TCU 94/24, que disciplina a atuação da Corte em relação aos acordos de leniência da lei 12.846/13 e a Resolução - TCU 366/24, que regulamenta a atuação do Tribunal em diversos procedimentos associados aos acordos, como o recebimento e ação cabível diante de informações compartilhadas pela CGU e AGU.
A análise quanto a esses normativos será apresentada em um próximo texto, mas uma certeza restou afirmada: se determinados procedimentos da lei 12.846/13 realizados durante o auge a Lava-Jata estão sujeitos à revisão, críticas e contestações, nem de longe significa que o sistema anticorrupção brasileiro está disposto a abrir mão dos acordos de leniência, vistos como uma importante ferramenta para conferir efetividade ao combate de atos lesivos que atentem contra o patrimônio público e contra princípios da Administração Pública.