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Dia das mulheres e a lei 16.411/23

Este artigo especifica os vários fatores ligados ao mercado de trabalho, às pessoas, aos valores e à cultura que, de forma indireta, mas muito eficaz, determinam diferenças salariais e de rendimento das mulheres em relação aos homens e questiona a efetividade da recém aprovada lei 14.611/23 para alcançar a pretendida igualdade.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Atualizado em 5 de março de 2024 14:24

A professora Claudia Goldin, Prêmio Nobel de Economia em 2023, dedicou a sua vida ao estudo do trabalho das mulheres e apontou os vários fatores ligados ao mercado de trabalho que determinam as diferenças salariais entre elas e os homens. 

Nas últimas décadas, o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho se deve a três fatores. O primeiro é a enorme expansão e diversificação dos equipamentos que ajudam as mulheres no trabalho da casa - máquina de lavar roupa e louça, aspirador, enceradeira, micro-ondas e tantos outros. O segundo é a universalização da pílula anticoncepcional. O terceiro é o expressivo aumento da educação das mulheres que hoje supera a dos homens. 

Mas, ao ganharem independência laborativa, as mulheres "ganharam" também uma enorme sobrecarga de responsabilidades que atingiu até as que não trabalham fora de casa. Com a saída para o mercado de trabalho das filhas e noras, muitas mulheres mais velhas assumiram a responsabilidade de cuidar da casa e de educar sobrinhos e netos.

O quadro se agrava quando a mulher fica viúva. Nesse caso, a sobrecarga aumenta ainda mais e costuma durar anos. Sim porque a mulher viúva raramente recasa, ao contrário do homem. A mulher parece ter sido preparada para cuidar da própria vida. O homem se sente perdido, e parte logo para uma nova união, em geral, com uma mulher mais jovem - em busca, talvez, de uma "garantia" de bons serviços domésticos por um longo período.

Não há dúvida. Para as mulheres, conciliar trabalho e família é um grande desafio.  Muitos fatores limitantes impedem que as mulheres alcancem melhor participação no mercado de trabalho, nos cargos de liderança e na escala salarial. 

A situação é relativamente diferente nos países avançados, em especial na Escandinávia. Ali, os homens ajudam muito nas tarefas domésticas e no cuidado com os filhos. As licenças (maternidade e paternidade) são generosas. Na volta ao trabalho, as mães contam com horários flexíveis para amamentar os filhos. Em muitos casos, há creches, escolas e outras facilidades próximas à empresa, o que permite uma supervisão constante das crianças. 

Não há dúvida que a mulher, de modo geral, sofre uma penalidade no mercado de trabalho. Quanto maior é a sua sobrecarga de trabalho fora do emprego, maior é a sua penalização no emprego. Pelo fato dela não poder aceitar trabalhos em horários inóspitos, jornadas muito extensas, horas extras, etc. - como fazem os homens - as suas oportunidades de promoção e remuneração são menores. 

Tudo se inverte quando a mulher decide adiar a maternidade. Vários estudos mostram uma forte correlação entre a postergação da gravidez e uma maior participação das mulheres no mercado de trabalho, assim como nas promoções de cargos e de salários. As mulheres que têm filhos cedo trabalham em condições muito mais adversas (Amalia, R. Miller, "The effects of motherhood timing on career path", Journal of Population Economics, Vol. 24, No. 3, July 2011). 

O adiamento da maternidade é um fenômeno frequente. Nos EUA, a idade média do primeiro filho era 27 anos em 2000 e passou para 29 em 2017; na Alemanha, o salto foi de 28,8 em 2000 para 31,2 em 2019; no Reino Unido, passou de 27,7 em 1990 para 30,6 em 2018; na Itália de 28,9 em 1990 para 32,1 em 2019 (Massimiliano Bratti, Fertility postponement and labor market outcomes, Bonn: Instituto for Labor Studies, 2024). No Brasil, no ano 2000, 67,4% da primeira gravidez se concentravam em mulheres de 20 a 34 anos; em 2020, isso caiu para 57,8% (Fiocruz, Mulheres têm filhos cada vez mais tarde1).

Ou seja, o adiamento da maternidade determina trajetórias de carreira mais promissoras. Caso contrário, a mulher retorna à atividade e ao seu salário anteriores ao nascimento da criança e tem dificuldade para subir na escala de cargos. Essa mulher, arca sozinha com o alto custo da maternidade. O fato de muitas vezes ter educação mais alta do que a dos homens ajuda muito pouco para vencer os obstáculos. 

É impossível querer mudar isso por lei. São fatores ligados ao mercado de trabalho, às pessoas, aos valores, às normas sociais e à cultura das sociedades. Nos países avançados, os governos procuram atacar esses fatores com medidas concretas, evitando as leis, porque temem aumentar a discriminação contra as mulheres. Em lugar de leis que obrigam os empregadores a pagar os mesmos salários e rendimentos, eles dão incentivos para que as empresas e prefeituras criem creches ao redor dos locais de trabalho e garantem recursos à Previdência Social para conceder licenças que permitem aos pais atender as crianças por longos períodos. 

Apesar de os fatores ligados à vida da mulher-mãe serem alheios às empresas, eles são compensados por políticas públicas que atenuam as restrições das mulheres e da maternidade. Com isso reduzem a penalidade das mulheres no mercado de trabalho. 

Como diz Chiaradia, "é um esforço que leva tempo. Depende da cultura, valores e políticas que precisam ser repensados por todos, especialmente pelos homens, de quem dependemos muito na desconstrução dos costumes, práticas e olhares que se consolidaram em outro direcionamento por séculos" (Tatiana G. Cappa Chiaradia, "Os desafios e conquistas da liderança feminina no Direito", Folha, 1/3/24).    

Para chegar a esse ponto, o Brasil terá de crescer muito, de modo a poder gerar excedentes de renda para as pessoas, com a ajuda das Previdência Social, cuidarem bem de si e das novas gerações. Será que a recém aprovada lei 14.611/23 terá essa força? Quem viver verá.

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1 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/dia-das-maes-mulheres-tem-filhos-cada-vez-mais-tarde-no-brasil/

José Pastore

VIP José Pastore

Professor de relações do trabalho da USP e membro do CAESP - Conselho Arbitral do Estado de São Paulo.

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