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Os efeitos deletérios da ausência de informações de qualidade e da realização de audiências públicas para a produção legislativa

Artigo aborda impacto negativo da falta de informações de qualidade no processo legislativo, exemplificando com o PL 3.722/12 sobre armas de fogo. Helder Ferreira (2020) avalia a qualidade das evidências científicas citadas durante a tramitação.

terça-feira, 5 de março de 2024

Atualizado em 4 de março de 2024 13:55

O presente artigo tratará da influência negativa da ausência de informações de qualidade no curso do processo legislativo. Tal esforço será norteado por produções acadêmicas, assim como análises concretas de proposições legislativas consideradas i) políticas públicas de grande impacto; e/ou ii) alterações no texto constitucional.

Políticas públicas de grande impacto social são aqui entendidas como toda proposição legislativa que gere significativas alterações em setores da sociedade ou mesmo em determinadas áreas da administração pública, como a instituição de programa de incentivo ao desenvolvimento de determinado setor industrial no país ou mesmo programas de combate a determinados crimes, tal qual a lei 13.344/16 impôs sobre o tráfico de pessoas. 

Nessa esteira, é possível notar esses efeitos deletérios no âmbito do PL 3.722/12, da Câmara dos Deputados, que "Disciplina as normas sobre aquisição, posse, porte e circulação de armas de fogo e munições, cominando penalidades e dando providências correlatas."

Helder Ferreira (2020) trata de analisar a qualidade das evidências científicas adotadas durante a tramitação do PL 3.722/12. O autor desenvolve uma avaliação dos documentos, pareceres e discursos dos parlamentares, de modo a avaliar, na hipótese de haver qualquer citação a estudo científico, a pertinência desses trabalhos para a análise do PL.

Durante o estudo o autor utilizou cinco métricas principais que culminaram em três níveis de qualidade das evidências:

Métricas

Foram usadas fontes de dados e medidas de resultados apropriados para a questão pesquisada?

Foi adequado o tempo estudado (por exemplo, tempo de observação suficiente antes e após a lei)?

Foram usados testes estatísticos apropriados?

Os resultados permaneceram robustos com variações nas variáveis e análises?

Os dados e resultados desagregados das variáveis de controle foram consistentes com a literatura?

Níveis de qualidade

boa qualidade, se todas as métricas foram alcançadas;

qualidade razoável, se de três a quatro métricas foram alcançadas, incluindo testes estatísticos apropriados; e

baixa qualidade, tanto para os casos em que só foram alcançadas de uma a duas métricas quanto para aqueles em que de três a quatro métricas foram cumpridas, mas sem teste estatístico apropriado. (FERREIRA, 2020, p. 129)

Observando que seis documentos anexados na página de tramitação do PL, na Câmara dos Deputados, citaram estudos científicos, foi realizada a análise da qualidade/pertinência dessas evidências para a discussão da proposição legislativa. Chegou-se à conclusão de que todos os estudos utilizados eram de baixa qualidade ou insuficientes.

Ferreira (2020, p. 132) conclui que a ausência de evidências de qualidade no âmbito de políticas públicas relacionadas ao controle estatal da posse e porte de armas de fogo pode estar relacionada à pouca influência dessas informações no curso do processo legislativo, à possível pressão de grupos interessados na aprovação da proposta e à dificuldade de os parlamentares e assessores de alcançarem as produções científicas. Daí a importância da perspectiva trazida por Keith Krehbiel (1992) com vistas a verificar qual seria o desenho institucional adequado para fomentar a produção e o compartilhamento de informações de qualidade no processo legislativo.

Interessante destacar que, em seu estudo, Ferreira aponta a utilização de evidência científica no texto original do PL 3.722/12, todavia de maneira equivocada e desconexa com o resultado final da pesquisa ali citada. Em suas palavras:

Documento 1 - PL 3.722/12 original.

Trecho da justificativa do PL 3.722/12 em que o estudo 2011 Global Study on Homicide: trends, contexts, data é citado:

"A própria [Organização das Nações Unidas] ONU, mesmo sendo a 'mãe' da tese de desarmamento, através do mais amplo e profundo estudo já realizado sobre homicídios em âmbito global - o Global Study on Homicide - United Nations Office on Drugs and Crime -, pela primeira vez na história reconheceu que não se pode estabelecer relação direta entre o acesso legal da população às armas de fogo e os índices de homicídio".

Síntese do argumento apresentado - não há relação direta entre o acesso legal da população às armas de fogo e o homicídio.

Análise da qualidade da evidência - o 2011 Global Study on Homicide: trends, contexts, data não é um estudo sobre o impacto do controle de armas sobre homicídios, bem como não realiza uma revisão bibliográfica sistemática sobre o assunto. Também não foi possível ter acesso às pesquisas mencionadas no estudo. Assim, as evidências apresentadas foram consideradas insuficientes. (FERREIRA, 2020, p. 130)

Verifica-se, no caso supracitado, aquilo para que Maurício Pinheiro (2020) já alertava: o risco da subversão das evidências, que podem ser manipuladas de acordo com os interesses de determinados grupos políticos. Justamente por isso a mera utilização/apresentação de estudos não basta para subsidiar proposições legislativas com a complexidade do PL 3.722/12, por exemplo. É necessário que haja uma análise mais detida das informações que se utiliza, sobretudo em matéria de controle ao acesso a armas pelo aparato estatal.

Diante dos estudos expostos, torna-se cada vez mais necessário o debate acerca das informações de qualidade e de evidências no processo legislativo, sobretudo no âmbito do Congresso Nacional, escopo do presente trabalho.

Sabe-se que a ausência de informações de qualidade pode culminar em um processo legislativo conturbado e em atos normativos diversos daqueles inicialmente propostos ou divergentes dos anseios da sociedade, além de leis com providências que não se prestam a solucionar os fins a que se propõem. Ocorre que os efeitos deletérios da falta de elementos informacionais na atividade legislativa não se limitam a apenas esse problema da ineficácia.

É possível que os legisladores aprovem leis simbólicas nos termos do defendido por Marcelo Neves (2007, p. 30), as quais embora aprovadas por um processo legislativo regular e sancionadas, não alcançam os seus fins sociais e normativos, assim como não são dotadas de observância normativa pela sociedade. Em outras palavras, trata-se de lei que existe no ordenamento jurídico, mas não é cumprida na prática por incompatibilidade com a realidade socioeconômica ou demais fatores. 

Com isso, Neves (2007, p. 33) desenvolve categorias de legislações simbólicas, que podem ser decorrentes de confirmação de valores sociais, legislação-álibi ou uma fórmula de compromisso dilatório. 

Quanto à primeira hipótese há um foco na reafirmação de valores inerentes a determinado grupo social, sem se preocupar com a efetiva aplicação da lei, ou seja, trata-se de ato normativo que se volta muitas vezes a agradar determinado setor da sociedade por meio da edição de lei que confirme ou vede comportamentos entendidos como divergentes a valores e costumes da sociedade 

Nesse caso movimenta-se todo o arcabouço técnico e operacional do Poder Legislativo apenas para apresentar legislação que não terá a mínima eficácia normativa, aqui a ausência de informações de qualidade auxilia na aprovação desses diplomas, visto que, pelo menos a princípio, estudos e informações poderiam detectar o caráter simbólico dessas leis já no curso do processo legislativo.

Quanto à legislação-álibi, verifica-se uma variação da categoria acima exposta, mas com a diferença de que além de ter o intuito de dar a aparência de resolução de problemas e demandas sociais, acabam por obstar esse ímpeto de resolução de adversidades sociais. Mais ainda, busca-se conferir confiança no governo ou demais representantes eleitos. Nesses termos aponta Marcelo Neves:

A legislação-álibi decorre da tentativa de dar aparência de uma solução dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador. Como se tem observado, ela não apenas deixa os problemas sem solução, mas, além disso, obstrui o caminho para que eles sejam resolvidos. (NEVES, 2007, p. 39)

Por fim, tem-se que a legislação com compromisso dilatório apenas se presta a adiar a tomada de decisão acerca de temáticas que não são de interesse dos representantes da população, de modo a conferir uma falsa percepção de que com a sua edição o problema tem sido solucionado (NEVES, 2007, p. 41).

Consoante destacado em diversos pontos deste trabalho, a importância de elementos informacionais de qualidade no curso do processo legislativo apenas é reforçada após a exposição dos conceitos elaborados por Neves, ora, quem busca aprovar ou propor legislações que tenham o caráter simbólico não quer que o processo de análise e aprovação do ato normativo seja longo e dotado de debates e informações de qualidade, visto que esses elementos poderiam trazer à luz o seu caráter simbólico - que pode não impedir a sua aprovação, mas pode gerar um óbice para a sua tramitação. 

Apesar da importância de informações e estudos de qualidade para o processo legislativo como um todo, não basta a mera produção ou recebimento de estudos e informações pelos atores políticos. Nos termos do já destacado no capítulo anterior, a participação popular é um dos componentes do denominado devido processo legislativo e consiste em importante etapa do processo legislativo.

Ademais, não se pode considerar que as informações por si só possam influenciar ou mesmo fomentar um ambiente de produção legislativa com maior qualidade, é necessário, como destacado, que haja um debate acerca desses elementos trazidos ao processo legislativo. De acordo com o que defende Roberta Nascimento (2021b, p. 25), as evidências devem ter o papel de qualificar o debate sobre a proposta apresentada  

Tem-se, desse modo, que a realização de audiências públicas por comissões parlamentares, por exemplo, pode auxiliar sobremaneira na captação, eleição e análise de estudos e evidências relacionadas às proposições legislativas. É por meio delas que diversos setores da sociedade podem se manifestar e contribuir para o debate das propostas, incluídas instituições de ensino, acadêmicos e estudiosos de um modo geral.

Nesse aspecto, Jeremy Waldron (2016, p. 18) desenvolve princípios para a produção legislativa, dentre os quais está o amplo debate entre os mais variados setores da sociedade, contribuindo para a captação de informações e opiniões de todas as naturezas representando um sistema democrático de criação de leis. Para Waldron (2009, p. 345) as legislaturas são, além de tudo, representativas, motivo pelo qual devem contribuir para a apresentação e debate da maior quantidade de interesses presentes na sociedade. Nesse sentido:

Nossas legislaturas não podem fazer esse trabalho a menos que sirvam como câmaras de compensação para informações sobre os interesses e para a pressão das reivindicações de interesses sobre a consciência da nação. Este é o ideal da política, e é em relação à esse ideal - não um ideal filosófico impossível - devemos desenvolver nossa avaliação das instituições legislativas reais. (WALDRON, 2009, p. 355, tradução nossa)

Entretanto, em levantamento realizado por Victor Pinheiro (2024, p. 267), em que foram analisadas todas as proposições legislativas transformadas em leis ordinárias no curso da 55ª Legislatura (2015-2019), foi possível verificar que dos 272 projetos transformados em leis ordinárias, apenas 21 contaram com audiências públicas na Câmara dos Deputados e 11 no Senado Federal.

Esse estudo demonstra que a possibilidade de acesso aos mais variados pontos de vista e, principalmente, a dados de especialistas e evidências embasadas foi oportunizada - pelo menos a princípio - em apenas 7,72% das 272 propostas analisadas e aprovadas pelos deputados federais da 55ª legislatura e em 4,04% daquelas 272 apreciadas e aprovadas pelo Senado Federal.

Quando se considera a realização de audiências públicas em ambas as casas do Congresso Nacional, tem-se um número bem menor ao observado isoladamente em cada casa, isto é, dentre o 272 PLs analisados na 55ª Legislatura, apenas sete tiveram audiências públicas tanto na CD quanto no SF, o que corresponde a 2,57% do total de proposições analisadas nesse período.

Para ilustrar a ausência da participação popular na atividade legislativa durante a 55ª legislatura, cite-se, por exemplo, o PL 8.843/17, de autoria do então deputado federal Pauderney Avelino (DEM/AM), que instituiu o processo administrativo sancionador no âmbito do Banco Central do Brasil - BACEN e da Comissão de Valores Mobiliários - CVM. No curso de sua análise não foram realizadas audiências públicas e não constam dos portais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal o recebimento de documentos e informações de atores externos1.

Trata-se de importante proposição, que estabeleceu os parâmetros e conceitos principais para o exercício do poder regulatório tanto do BACEN quanto da CVM, especialmente para a implementação de sanções e fiscalização dos agentes sujeitos à regulação das respectivas autarquias especiais, entretanto, não houve amplo debate com a sociedade e com setores que poderiam trazer ao processo evidências de qualidade para o devido cotejo com a proposição.

Da análise dos pareceres emitidos pela Câmara dos Deputados, verifica-se que, ainda que houvesse Comissão Especial para análise da proposição, foi proferido Parecer de Plenário, em que o relator deputado federal Alexandre Baldy (PODE/GO)2, propõe substitutivo ao PL original. Além disso, em seu voto não há análise detida das razões e, muito menos, dos impactos decorrentes da proposição, assim como, verificado por Ferreira (2020) nas proposições legislativas relativas à posse e ao porte armas de fogo, não há menção a demandas sociais, estudos que demonstrem a necessidade de aprimoramento ou mesmo implementação de um processo administrativo sancionador nos moldes do proposto no relatório e aprovado pela Câmara dos Deputados. Em sentido contrário, o Parecer se vale de constatações individuais do Relator apenas para justificar as alterações sugeridas ao texto original do PL e defender a ausência de inconstitucionalidade formal por possível inciativa legislativa privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, da CF).

Embora ao analisar o PL 8.843/17, o Senado Federal tenha empreendido análise mais detalhada da matéria, citando, inclusive, a jurisprudência do STJ acerca de alterações no processo administrativo sancionador do BACEN e da CVM, bem como dados que demonstram a lentidão e ineficácia desses procedimentos, não há especificação da fonte dos dados e dos julgados importantes à análise - há apenas a citação da "jurisprudência corrente do STJ" e da "jurisprudência do STJ", de maneira genérica.

Enfim, não se busca realizar juízo acerca da qualidade ou efetividade do diploma legal decorrente do PL 8.843/17 (convertido na lei 13.506/17), mas sim de destacar que em importante proposta legislativa como a em análise, não houve participação popular direta, muito menos o recebimento de informações externas, o que poderia auxiliar na aprovação de ato normativo mais consentâneo às demandas tanto dos atores econômicos, como do BACEN e da CVM. De modo a corroborar com a hipótese do presente trabalho: as políticas públicas e as alterações constitucionais devem ser subsidiadas por informações de qualidade - que em diversas situações são fornecidas em audiências públicas ou por documentos encaminhados por atores externos.

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BRASIL.  Câmara dos Deputados. Parecer de Relator proferido em Plenário ao Projeto de Lei nº 8.843/2017. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1612087&filename=PPP+1+PL884317+%3D%3E+PL+8843/2017. Acesso em: 18 ago. 2022.

________. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei (PL) nº 8.843/2017. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2156331. Acesso em: 18 ago. 2022.

FERREIRA, Helder. Análise de Qualidade de Evidências Científicas Utilizadas em Política Pública:aplicação a documentos relativos à tramitação do PL nº 3.722/2012,

que flexibiliza o controle de armas de fogo. In: BOLETIM de Análise Político-Institucional. Usos de evidências em políticas públicas federais, n. 24. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2020, pp. 125-134.

KREHBIEL, Keith. Information and legislative organization. Michigan studies in political analysis. The University of Michigan Press,1992.

NASCIMENTO, Roberta Simões. A legislação baseada em evidências empíricas e o controle judicial dos fatos determinantes da decisão legislativa. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-Rio de Janeiro: v. 4, n. 3, 2021b. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/253. Acesso em: 21 ago. 2022.

NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

PINHEIRO, Maurício Mota Saboya. Políticas públicas baseadas em evidências: uma avaliação crítica. In: BOLETIM de Análise Político-Institucional. Usos de evidências em políticas públicas federais, n. 24. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2020, pp. 17-27.

PINHEIRO. Victor Marcel. Devido processo legislativo: elaboração das leis e seu controle judicial na democracia brasileira. Rio de Janeiro: GZ, 2024, 462 p.

WALDRON, Jeremy. Political political theory: essays on institutions. Cambridge: Harvard University Press, 2016.

___________. Representative Lawmaking. Boston University Law Review, vol. 89, nº. 2, 2009, pp. 335-355.

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1 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei (PL) nº 8.843/2017. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=215633. Acesso em: 18 ago. 2022.

2 BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer de Relator proferido em Plenário ao Projeto de Lei nº 8.843/2017. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1612087&filename=PPP+1+PL884317+%3D%3E+PL+8843/2017. Acesso em: 18 ago. 2022.

Jean Borges Marques

Jean Borges Marques

Advogado do Barreto Dolabella - Advogados. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Possui experiência em direito administrativo, civil e processo legislativo.

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