A limitação da saída temporária como mais um erro do Estado
O Código Penal brasileiro, seguindo a CR/88, deve respeitar a dignidade humana na execução da pena, atendendo a princípios como legalidade, proporcionalidade e individualização. Adota a teoria mista, visando prevenção geral e especial, e reprovação do crime.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024
Atualizado às 14:29
O Código Penal brasileiro, assim como todas as demais leis, deve se pautar pela CR/88. Desse modo, a dignidade da pessoa humana, como um dos seus fundamentos (art. 1º, III), deve ser acatada também na execução da pena. Além de observar os princípios da legalidade, da intranscendência, da proporcionalidade, da individualização, entre outros.
O CP brasileiro ao prever que a pena deve ser necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime, adotou a teoria mista ou unificadora da pena (art. 59). Tal teoria se baseia em aspectos preventivos, sendo geral (objetiva alcançar os demais membros da comunidade, de modo inibi-los do cometimento de delitos, bem como sedimentar a força das leis do Estado), e especial (busca obstar o agente em outras empreitadas criminosas e ao mesmo tempo regenerá-lo para retornar ao convívio social), e aspecto de reprovação do crime cometido a partir da penalidade aplicada.
O CP assenta ainda que as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado (art. 33, §2º). Nesse sentido destaca que os regimes de cumprimento são o fechado, semiaberto e o aberto (art. 33, caput).
A Lei de Execução Penal (lei 7.210/84) tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado (art. 1º). Ela cria mecanismos para proporcionar a dita ressocialização, como o é a saída temporária (tema central de nosso artigo).
A LEP dita que a saída temporária para os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderá ser autorizada, sem vigilância direta, nos seguintes casos: visita à família; frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do ensino médio ou superior, na Comarca do Juízo da Execução; participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social. Essa autorização cabe ao juiz da execução, por ato motivado, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos: comportamento adequado; cumprimento mínimo de 1/6 da pena, se o condenado for primário, e 1/4, se reincidente; compatibilidade do benefício com os objetivos da pena. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 dias, podendo ser renovada por mais 4 vezes durante o ano. Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado: fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício; recolhimento à residência visitada, no período noturno; proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres (arts. 122, 123 e 124).
Contudo, foi veiculado pelo G1 que pouco mais de 52 mil presos deixaram a prisão na saidinha de Natal de 2023, que foi permitida em 17 das 27 unidades da federação, segundo dados levantados junto aos governos estaduais. Dos 52 mil, 49 mil retornaram (ou 95%) e 2,6 mil (ou 5%), não e, por isso, são considerados foragidos.
O Senado Federal trouxe para a pauta um projeto de lei (PL 2253/22) que visa extinguir a saída temporária, assim como trata de outros institutos. Houve aprovação na Comissão de Segurança Pública, cuja relatoria é do Senador Flávio Bolsonaro. Em seu relatório constou que:
O PL também busca extinguir a saída temporária em vista dos recorrentes casos de presos detidos por cometerem infrações penais durante o gozo desse benefício. As emendas apresentadas, como visto, também tratam da saída temporária. De acordo com a Emenda nº 1- CSP (Substitutivo) a saída seria concedida com base em parecer da Comissão Técnica de Classificação, enquanto a Emenda 2 - CSP propõe que a concessão seja unicamente para frequência a cursos profissionalizante ou de ensino médio ou superior, vedada a concessão nos casos de crime hediondo ou praticado mediante violência ou grave ameaça contra a pessoa. O nosso sistema carcerário infelizmente encontra-se superlotado e, em muitos Estados, com instalações precárias, o que impede a devida ressocialização dos presos. Assim, ao se permitir que presos ainda não reintegrados ao convívio social se beneficiem da saída temporária, o poder público coloca toda a população em risco. Por outro lado, privar o acesso do condenado (por crimes não violentos) a cursos que o habilitem para o trabalho ou aperfeiçoem sua educação formal dificulta a sua ressocialização. Assim, no que toca à saída temporária, temos que solução apresentada pela emenda do Senador Sergio Moro é a mais adequada e, portanto, deve ser acolhida.
Cabe destacar que a Emenda 2 é a do Senador Sergio Moro.
Como dito acima, tal proposta fora aprovada com a limitação ao benefício da saída temporária, cabendo apenas para frequência a cursos profissionalizante ou de ensino médio ou superior, vedada a concessão nos casos de crime hediondo ou praticado mediante violência ou grave ameaça contra a pessoa.
A ADPF 347- STF- reconheceu que há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos. Esse estado de coisas demanda a atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória.
Portanto, é de conhecimento geral que o sistema carcerário brasileiro não chega nem perto, na prática, do que determina a Lei de Execução Penal. O intento de ressocialização fica no plano formal, de modo que o Estado quer que o indivíduo se recupere sem fornecer os meios adequados, inclusive o próprio relatório do relator Flávio Bolsonaro destaca a superlotação e a precariedade do sistema carcerário brasileiro.
Não obstante, a dita Comissão acima aprovou a limitação de uma importante medida de ressocialização- saída temporária-, mas que em certas ocasiões será de extinção mesmo, uma vez que os Estados da federação têm baixa disponibilidade para o estudo. O Estado visa punir mais uma vez o detento, embora reconheça sua omissão e culpa.
Não se quer a reincidência, jamais. Mas pelo número de presos, como destaca a matéria do G1, que saíram e não retornaram é muito menor em relação aos que voltaram. O PL aprovado pela Comissão de Segurança Pública do Senado irá prejudicar muitos detentos que ainda desejam sua reabilitação. O castigo da pena não basta para diminuir a violência experimentada pelo Brasil, pois que nenhum país do mundo assim conseguiu.
Busca-se, por meio deste, um esforço maior de aplicar a legislação que temos antes de alterá-la, endurecendo-a, o Estado tomando a vanguarda, fortalecendo o ser humano enquanto ser humano. Não se pode acreditar que há vidas irrecuperáveis. Até no lixão nasce flor, como sublinha Racionais MC's.
O Estado continua sendo o maior produtor- pela omissão- da criminalidade violenta. Precisa-se enxergar além de dois palmos à frente.
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MARTINELLI, João Paulo e SCHMITT, Leonardo. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. 2016
GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 2010
ALEIXO, Kleila e PENIDO, Ávila. Introdução à prática na execução penal.2020
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/18/saidinha-de-natal-beneficiou-52-mil-presos-49-mil-retornaram-e-26-mil-nao.ghtml
Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento dm=9541749&ts=1707395752734&rendition_principal=S&disposition=inline&_gl=1*1c1zi61*_ga*MTI1NzQ3MjI1NC4xNjczNDY5MTcy*_ga_CW3ZH25XMK*MTcwNzQyNjg1My41LjEuMTcwNzQyNzgyNS4wLjAuMA..