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Inépcia da inicial acusatória por falta de descrição dos pressupostos do art. 3º, da lei 9.605/98

Responsabilidade penal de pessoa jurídica em crimes ambientais requer comprovação de decisão representativa. Análise do CPP para rejeição de denúncia é necessária.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Atualizado em 20 de fevereiro de 2024 13:22

Sabe-se que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, em crimes ambientais, é limitada aos casos em que "a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade" (art. 3º, da lei 9.605/98 - LCA).

As legislações ambiental e processual, contudo, não discorrem sobre a natureza da exigência citada e as consequências da falta de desenvolvimento do que dita a LCA, o que nos leva ao problema em análise: a denúncia por crime ambiental em face de pessoa jurídica deve ser rejeitada em razão da falta de demonstração dos elementos do art. 3º, LCA?

Responder o problema acima exige análise do art. 395, CPP, que dispõe sobre as hipóteses de rejeição da inicial acusatória por três motivos: I) inépcia, II) falta de pressuposto processual ou condição da ação III) ausência de justa causa.

O primeiro dos requisitos não possui definição expressa no CPP de suas hipóteses. Etimologicamente, a inépcia representa uma característica daquilo que não é inteligível, sem coerência, sem raciocínio etc.  O CPC, por outro lado, discorre as características da inépcia em seu art. 330, §1º , merecendo especial atenção o que diz o inciso III: quando, da narração dos fatos, não decorrer logicamente a conclusão.

Apesar da inexistência de definição sobre o termo na legislação penal, a inépcia da inicial acusatória é analisada à luz do que dispõe o art. 41, CPP, que exige a exposição do fato criminoso, com suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais ele possa ser identificado, a classificação do crime e eventual rol de testemunhas. Conforme Brasileiro, "nem sempre a inobservância dos requisitos do art. 41 do CPP autoriza a rejeição da peça acusatória" , pois a classificação do crime é ajustável pelo instituto da emendatio libelli e o rol de testemunhas pode ser prescindível. A narração inteligível dos fatos e indicação expressa da participação das pessoas, contudo, é sempre requisito essencial para a viabilidade da denúncia .

O inciso segundo do art. 395, CPP, engloba a ausência de pressuposto processual e a deficiência da ação penal. 

Os pressupostos processuais, de acordo com Aury Lopes , podem ser divididos em pressupostos de existência e de validade. São de existência os pressupostos necessários para início da relação processual, exigindo-se juiz investido, partes bem delimitadas e uma demanda com pretensão punitiva. Serão de validade aqueles que, por algum motivo, possam causar nulidade dos atos processuais, como a capacidade postulatória, a citação válida, eventual perempção ou litispendência, entre outros.

As condições da ação são essencialmente quatro: prática de fato aparentemente criminoso; punibilidade concreta; legitimidade de parte e justa causa . Outras específicas podem ser encontradas em determinados tipos de ação penal, como a necessidade de poderes especiais para a queixa crime, nos termos do art. 44, CPP, ou o trânsito em julgado da sentença anulatória para o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236, parágrafo único, CP) .

Por último, o terceiro inciso do art. 395, CPP, indica que a ausência de justa causa repercute na rejeição da denúncia. A expressão "justa causa" também não encontra significado na legislação processual, mas as interpretações dogmática e jurisprudencial mais comuns sobre esse termo é no sentido de que deve existir, no momento do protocolo da denúncia ou queixa, um lastro probatório mínimo, com demonstração da materialidade e indícios de autoria. Trata-se de conceito retirado da doutrina (a exemplo de Renato Brasileiro e Aury Lopes)  e de decisões do STJ.

O exaurimento dos critérios de rejeição da denúncia permite agora a análise sobre como deve ser entendido o art. 3º, da LCA. 

A possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica sempre foi palco de debate doutrinário e jurisprudencial, embora o art. 225, §3º da CF esclareça esta possibilidade, os ânimos acalmaram apenas em 2005, quando julgado o Recurso Especial nº 564.960, em que o Ministro Gilson Dipp, em voto,  destacou: "Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal ".

Posteriormente, o STJ reafirmou o entendimento sobre a teoria da dupla imputação, em que prevê a imprescindibilidade da denúncia em desfavor da pessoa jurídica em conjunto com a pessoa natural - na dicção da LCA, devendo ser, pelo menos, um de seus representantes legais. 

Ao julgar o RE 548.181/PR, o STF passou a admitir a imputação autônoma da pessoa jurídica em crimes ambientais, afastando a teoria da dupla imputação, definindo que a atuação da pessoa natural seria analisada como pressuposto do art. 3º da LCA:

"Em suma, é necessário verificar, ao longo da investigação ou do procedimento penal, se o ato apontado como lesivo decorreu do processo normal de deliberação interna da corporação, se o círculo decisório interno ao ente coletivo foi observado, ou se houve aceitação da pessoa jurídica, no sentido da ciência, pelos órgãos internos de deliberação, do que se estava a cometer e da aceitação, ou absoluta inércia para impedi-lo, o que dependerá da organização própria de cada empresa. Não será qualquer atuação de qualquer dos indivíduos ou unidades vinculadas à empresa que poderá acarretar a atribuição do fato lesivo à pessoa jurídica; indispensável que a pessoa, indivíduos ou unidades participantes do processo de deliberação ou da execução do ato estivessem a atuar de acordo com os padrões e objetivos da empresa, ou seja, estivessem a cumprir com suas funções e atividades ordinárias definidas expressa ou implicitamente pelo corpo social com vista a atender o objetivo da atividade econômica organizada. O fato deve ter se realizado em nome ou sob o amparo da representação social".

Assim, apesar de desnecessária a dupla imputação em crimes ambientais, é preciso que a denúncia contenha toda a descrição dos atos praticados pelos representantes legais, contratuais ou órgãos colegiados no interesse da pessoa jurídica: deve existir descrição fática que eventual ato foi praticado em nome ou sob o amparo da representação social.

As explicações acima são suficientes para compreender o enquadramento do art. 3º, da LCA, entre as hipóteses de rejeição de denúncia. Por se tratar de exigência discursiva, não estamos tratando de pressuposto processual ou de condição da ação. O processo continuará válido independentemente da descrição dos atos praticados pelos representantes legais da pessoa jurídica. Da mesma forma, a ação não está condicionada à demonstração dessa atuação - o ato de propor a denúncia não é condicionado à exposição narrativa do art. 3º, LCA.

Igualmente, o não cumprimento da narrativa não implica em rejeição da denúncia por ausência de justa causa - neste ponto, independentemente da descrição dos atos praticados pelos representantes legais, existindo lastro probatório mínimo de dano efetivo ou potencial ao meio ambiente e de autoria, a justa causa pode ser constatada.

Como exigência narrativa/discursiva, o art. 3º da LCA mais se aproxima do art. 41 do CPP. Trata-se de necessária exposição de circunstâncias fáticas sobre o delito alegado pelo órgão acusador. 

O STF, ao afastar a necessidade da dupla imputação, reafirmou o art. 225, §3º da CF, reconhecendo a possibilidade da responsabilização da pessoa jurídica, ao passo que interpretou o art. 3º da LCA como a necessidade de se verificar se os atos lesivos decorrem de procedimento interno normal ou de aceitação, ambos provenientes de atos decisórios. 

Levando-se em consideração que a responsabilidade da pessoa jurídica é regida pelo modelo da heterorresponsabilidade , por reconhecer a incapacidade de agir do ente, responsabilizando-o por ato proveniente de seus representantes legais em seu benefício, outra não poderia ser a concepção sobre o art. 3º da LCA.

Não podendo agir a pessoa jurídica por conta própria, a descrição das circunstâncias fáticas, em se tratando de crimes ambientais imputados à pessoa jurídica, só é possível analisando-se os atos de terceiros - neste caso, de quem detenha a capacidade de decisão. Inexistindo a narrativa, é de se reconhecer a inépcia da denúncia nos termos do art. 395, I, por afronta ao art. 41 do CPP c/c o art. 3º, LCA.

Sem a narrativa descritiva indicada no art. 3º da LCA, sequer há conclusão lógica, pois a pessoa jurídica não pratica crime por si só, razão pela qual a legislação ambiental foi redundante ao tratar da imprescindibilidade de atuação de ao menos uma pessoa natural. 

Ocorre que por falta de enfrentamento do tema pela legislação e pelos tribunais superiores, as discussões doutrinárias e jurisprudenciais permanecem em aberto. Por exemplo, em recente julgado, o TRF-3 reconheceu a inépcia da inicial acusatória por necessidade de cumprimento das exigências do art. 3º da LCA, mas justificou pela ausência de dupla imputação:  

1. O trancamento da ação penal na via estreita do mandado de segurança somente é possível, em caráter excepcional, quando se comprovar, de plano, a inépcia da denúncia, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 2. A responsabilização criminal da pessoa jurídica por crime ambiental só será possível mediante o preenchimento dos requisitos estabelecidos pelo art. 3º da LCA, com descrição pormenorizadas dos atos praticados pelos representantes legais, contratuais ou órgãos colegiados no interesse da sociedade. 3. Segurança concedida para trancamento do processo-crime. (TRF-3 - MSCrim: 50088665720184030000 SP, Relator: Desembargador Federal MAURICIO YUKIKAZU KATO, Data de Julgamento: 14/12/21, 5ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 16/12/21) - grifo nosso.

Em suma, apesar de inexistir entendimento consolidado sobre o tema, entendemos que observar o art. 3º da LCA como exigência narrativa é integrá-lo como uma demonstração de circunstância fática que, caso descumprida, implica em inépcia da denúncia. Não importa se há ou não dupla imputação, mas sim se foi minimamente demonstrado o motivo para inclusão da pessoa jurídica no polo passivo da ação penal. 

Caio Vilela Costa

Caio Vilela Costa

Sócio da Queiroz Cavalcanti Advocacia. Mestrando em direito. Especialista em direito penal. Professor de direito processual penal.

Fernanda Moraes

Fernanda Moraes

Sócia de Queiroz Cavalcanti Advocacia, especialista em direito penal pela OAB-PE e pós-graduanda em Contratos pela Universidade Federal de Pernambuco.

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