Extinção do Perse e MP 1.202/23 - Uma velha manobra política já obstada pelo Poder Judiciário
Sob a ótica do art. 178 do CTN e do princípio da segurança jurídica, a impossibilidade de extinção de benefício fiscal por Medida Provisória retorna à pauta do Poder Judiciário.
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024
Atualizado às 10:14
O Presidente da República editou a MP 1.202, conhecida como MP da reoneração, no último dia útil de 2023. Esta medida, entre outros aspectos, tratou da revogação dos benefícios do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos - PERSE, desonerou, parcialmente, a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento - para 17 setores produtivos - a partir de 1º de abril de 2024, revogou a alíquota reduzida da contribuição previdenciária aplicável a determinados Municípios e limitou a compensação de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado cujo valor total seja inferior a R$ 10.000.000,00.
Assim, desde o final do ano passado (2023), diante da relevância do tema, a matéria tem causado agitação e intenso debate entre os poderes da República, incluindo o Judiciário e o Legislativo.
No Congresso Nacional, para que a norma produza efeitos, para além de 1º de abril de 2024, ela precisará ser convertida em lei pelo Poder Legislativo. A matéria aguarda a formação de uma comissão mista, composta por Senadores e Deputados Federais, para a emissão de parecer, o qual será, primeiramente, apreciado pela Câmara dos Deputados e, posteriormente, pelo Senado Federal.
Especificamente quanto à revogação dos benefícios do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), cumpre destacar que, no âmbito judicial, as empresas já estão mobilizando seus setores jurídicos, tanto internos quanto externos, para mover ações contra o dispositivo da MP que extinguiu o PERSE. Este programa havia reduzido as alíquotas dos impostos federais para empresas do setor de eventos até dezembro de 2026, devido aos impactos sofridos em decorrência da pandemia de Covid-19.
Dentro desta perspectiva, observa-se que o movimento político de aumentar a arrecadação fazendária através da extinção de benefícios fiscais via Medida Provisória não é uma estratégia arrecadatória nova, uma vez já utilizada por outros governos e obstada pelo Poder Judiciário em razão da subsunção direta do caso ao art. 178 do CTN1.
Recorda-se, dentro deste contexto, o Programa de Inclusão Digital - PID, o qual estabeleceu a concessão de benefício, por prazo certo e determinado, de alíquota zero do PIS e da COFINS, para fins de promoção da inovação tecnológica no Brasil, conforme estipulado na lei 11.196/05. No entanto, apesar de ter sido prorrogado até 31/12/18, por força do art. 5º da lei 13.097/15, a fruição do benefício foi encerrada prematuramente em 31/12/16, diante da edição da Medida Provisória 690/15, posteriormente convertida na lei 13.241/15.
Em resposta ao ato do Poder Executivo, o STJ, no julgamento do REsp 1.987.675/SP, de Relatoria do Ministro Herman Benjamin, foi enfático ao eliminar a distinção entre isenção tributária e redução de alíquota a zero, tendo em vista que ambas as hipóteses estão sujeitas a prazos e condições específicas, como previsto no art. 178 do CTN. Isto é, em conformidade com o princípio da segurança jurídica, da previsibilidade e da confiança, o CTN, por meio da regra mencionada, proíbe que isenções fiscais sejam revogadas abruptamente por decisão discricionária do poder público, quando concedidas por prazo certo e condição específica.
A propósito, como é amplamente conhecido, a segurança jurídica é um princípio constitucional fundamental no contexto do "Sistema Tributário Nacional" dentro do Estado Democrático de Direito. Esse princípio se expressa através de requisitos de certeza e justiça, sendo subjetivamente reconhecido pela proteção das expectativas de confiança legítima como meio de sua concretização. Conforme ensinamentos de Canotilho (1998), os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são aplicáveis a qualquer ato de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial2.
Nesse sentido, a respeitável Corte Cidadã julgou, exemplificativamente: AgInt no AgInt no REsp 1658638/SC, Rel. Min. Franciso Falcão; AgInt no REsp 1848221/RS, Rel. Min. Humberto Martins; AgInt no AgInt no REsp 1.854.392/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 17/9/21; REsp 1.725.452/RS, Rel. p/ acórdão Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 15/6/21; e REsp 1.845.082/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ Acórdão Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 15/6/21.
Cumpre rememorar, também, o entendimento da súmula 544/STF, "Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas"3.
Tal súmula, estatuída pelo STF, já foi, inclusive, aplicada pelo STJ, em observância do princípio da segurança jurídica e ao direito adquirido (consagrado pelo art. art. 5º, XXXV), no julgamento do REsp 1.310.341/AM, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria.
Assim sendo, diante da situação presente, ao analisarmos o caso do PERSE, fica evidente que o benefício fiscal foi concedido: (i) por um prazo de 60 meses; e (ii) condicionado à recuperação econômica das empresas no setor de eventos e correlatos, os mais impactados devido ao período de distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19.
Observa-se, portanto, que a ressalva legal estabelecida no art. 178 do CTN foi cumprida, o qual impede que o Poder Público, contrariando a estabilidade jurídica, social e econômica, revogue benefício fiscal concedido por prazo determinado e sob condição específica.
Nesse sentido, pela concessão do PERSE, o governo transmitiu uma mensagem clara e segura aos empresários do setor de eventos, indicando a possibilidade de retomada e continuidade das atividades empresariais por meio da concessão de benefício tributário, devido à condição específica gerada pela pandemia, por um período específico, necessário à recomposição do setor.
Portanto, não é justificável permitir que, baseado unicamente na alegação de perda significativa de arrecadação, o Poder Público revogue repentinamente a desoneração fiscal concedida por prazo determinado, enquanto as condições econômicas de recuperação e reestruturação do setor estão sendo cumpridas, como evidenciado pelo aumento do número de empregos gerados nos últimos anos.
Anuir à extinção abrupta do Perse, ao avesso de um contexto de zelo pela segurança jurídica e estabilidade econômica e social do país, é colocar em risco e desestruturar novamente um importante setor econômico, brutalmente afetado em decorrência do período pandêmico e ao qual ainda depende do período original concedido para reestruturação completa.
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1 Art. 178 - A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104
2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 250.
3 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2283 Acesso em: 5 fev. 2024
Walter Maia
Consultor na Possa Advocacia; Mestrando em Direito pela UFMG; Pós-Graduado em Direito Público pelo UniCEUB; Graduado em Direito pelo UniCEUB; e Graduado em Administração pela UnB.