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A responsabilidade civil direta e objetiva do Estado pelos danos causados a terceiros em decorrência da atividade notarial

O STF, ao estabelecer o tema 777, RE 842846, determinou responsabilidade direta e objetiva do Estado por danos causados na atividade notarial. Tabeliães agindo em nome do Estado podem ser responsabilizados, com direito de regresso em caso de dolo ou culpa.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Atualizado às 08:47

1. Introdução

O presente artigo abordará o entendimento adotado pelo STF ao fixar o tema 777, de repercussão geral, Leading Case RE 842846, no sentido de que há responsabilidade direta e objetiva do Estado pelos danos causados a terceiros em decorrência da atividade notarial, cabendo o direito de regresso contra o causador do dano em caso de dolo ou culpa. 

Restará demonstrado que os tabeliães e oficiais de registros exercem suas atividades por delegação do Poder Público agindo, portanto, em nome do Estado, razão pela qual ao causarem danos a terceiros será cabível a responsabilização direta e objetiva do ente estatal.

2. O regime jurídico dos notários e registradores

Notários e registradores oficiais são particulares em colaboração com o poder público que exercem suas atividades in nomine do Estado, com lastro em delegação prescrita expressamente no texto constitucional (art. 236, CRFB/88).

A análise da natureza jurídica da delegação envolve a delimitação das diretrizes fundamentais estabelecidas pelo texto constitucional, que assim estabelece:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Nas lições de Luis Paulo Aliende Ribeiro1, do texto constitucional se extraem quatro diretrizes básicas:

  1. A natureza pública da função notarial e de registro e a imperatividade de sua delegação pelo Poder Público ao particular para seu exercício em caráter privado.
  2. A necessidade de lei para regular as atividades, disciplinar as responsabilidades civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos, definir a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário, assim como a necessidade de lei federal para estabelecer normas gerais sobre emolumentos.
  3. O ingresso na atividade mediante concurso público de provas e títulos.
  4. A impossibilidade de que qualquer unidade fique vaga, sem abertura de concurso, por mais de seis meses.

Ainda, de acordo com Maureci M. Velter Junior2, os serviços notariais e registrais são obrigatoriamente transferidos a pessoas físicas por meio de delegação, estabelecendo um vínculo original e personalíssimo entre o Poder Público e o delegatário. As serventias notariais e registrais, conhecidas como "cartórios", são meramente instituições administrativas, vinculadas à pessoa física do delegatário. O titular exerce o serviço em seu próprio nome, sem que a serventia possua personalidade jurídica. Acrescenta o autor que a delegação não é passível de negociação ou transferência, sendo conferida diretamente pelo Poder Público com base em condições pessoais específicas do delegatário.

Destaca-se que à vista da natureza estatal das funções que exercem, as figuras dos tabeliães e registradores oficiais se amoldam à categoria ampla de agentes públicos. Na esteira das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello3, os agentes públicos são todos aqueles que exercem funções estatais, podendo ser classificados em agentes políticos, servidores públicos ou particulares em colaboração com o Poder Público. Consoante destacado pelo mencionado autor, nesta última categoria estão incluídos os tabeliães e registradores oficiais, os quais, sem perderem sua qualidade de particulares, exercem função tipicamente pública. 

Nessa perspectiva, considerando que i) os titulares das serventias de notas e registros exercem função de natureza pública; ii) o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos; e iii) os atos desses agentes estão sujeitos à fiscalização pelo ente estatal, os notários e os oficiais registradores são considerados agentes públicos, que exercem suas atividades in nomine do Estado.  

Ressalta-se que a capacidade de conferir fé pública, o caráter de imperium inerente à função e a explícita designação constitucional como uma delegação do Poder Público destacam que a atividade em questão é de natureza pública. Como tal, ela gera atos administrativos dotados de todos os atributos e sujeitos aos requisitos do direito administrativo4.

3. O tema nº 777 do STF

Tendo em vista que o Estado responde diretamente pelos atos dos seus agentes, impõe-se a responsabilidade estatal direta pelos atos de tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causarem danos a terceiros.

Esse é o entendimento adotado pelo STF ao fixar o tema 777, de repercussão geral, Leading Case RE 842846, assentando o entendimento de que há responsabilidade direta e objetiva do Estado pelos danos causados a terceiros em decorrência da atividade notarial, cabendo o direito de regresso contra o causador do dano em caso de dolo ou culpa, nos termos da ementa abaixo transcrita: 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DANO MATERIAL. ATOS E OMISSÕES DANOSAS DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES. TEMA 777. ATIVIDADE DELEGADA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO DELEGATÁRIO E DO ESTADO EM DECORRÊNCIA DE DANOS CAUSADOS A TERCEIROS POR TABELIÃES E OFICIAIS DE REGISTRO NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. ART. 236, §1º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELOS ATOS DE TABELIÃES E REGISTRADORES OFICIAIS QUE, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES, CAUSEM DANOS A TERCEIROS, ASSEGURADO O DIREITO DE REGRESSO CONTRA O RESPONSÁVEL NOS CASOS DE DOLO OU CULPA. POSSIBILIDADE. 

Nos termos do voto do Ministro Relator Luiz Fux, a atividade exercida por tabeliães e registradores oficiais é munida de fé pública e destina-se a conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia às declarações de vontade. Acrescenta o I. Ministro que os serviços notariais e de registro são atividades jurídicas próprias do Estado, amoldando-se à categoria ampla de agentes públicos, de modo a sofrer incidências do regime jurídico de direito público.

Nesse prisma, uma vez que o Estado responde diretamente pelos atos dos seus agentes, há de ser reconhecida a responsabilidade estatal direta pelos atos de tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causarem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.

Por fim, o Relator ainda tece considerações sobre a impossibilidade de equiparação entre notários e pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, ante a literalidade do texto da Carta da República (art. 37, § 6º, CRFB/88), que se refere a pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos.

Conclusão

Conforme restou abordado, a atuação dos notários e registradores oficiais, como particulares em colaboração com o poder público, é respaldada pela delegação expressa da Constituição Federal (art. 236, CRFB/88). A análise da natureza jurídica dessa delegação revela diretrizes essenciais, incluindo a natureza pública da função, a regulamentação por lei, o ingresso mediante concurso público e a proibição de vacância prolongada das serventias.

Esses agentes se enquadram na categoria ampla de agentes públicos, exercendo funções tipicamente públicas. Essa perspectiva é reforçada pelo entendimento do STF, expresso no tema 777, que estabelece a responsabilidade direta e objetiva do Estado pelos atos dos notários e registradores oficiais, ressaltando a necessidade de regresso nos casos de dolo ou culpa.

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1 RIBEIRO, Luis Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 42-43.

2 VELTER JUNIOR, Maureci Marcelo; SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 32/2022. p. 223 - 256. Jul - Set / 2022.

3 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 26ª Edição, 2008, p. 249.

4 RIBEIRO, Luis Paulo Aliende. Op. cit., p. 6 e 83.

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BRASIL. Constituição da República Federativo do Brasil de 1988. Brasília/DF, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 842846/MG. Relator: Ministro Luiz Fux. Data de julgamento: 13/08/2019.

RIBEIRO, Luis Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009.

VELTER JUNIOR, Maureci Marcelo; SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 32/2022. p. 223 - 256. Jul - Set / 2022.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 26ª Edição, 2008, p. 249.

Mayara Barretti

Mayara Barretti

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho - UNINOVE. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Universidade Nove de Julho - UNINOVE. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP

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