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Lei 14.717/23 - Proteção ou aflição

Daniele Domingos Monteiro

Lei 14.717/23 institui pensão especial a filhos órfãos de feminicídio, com renda familiar per capita até 1/4 do salário mínimo. Apesar de lacunas, o benefício não exige a qualidade de segurado, diferenciando-se da Pensão por Morte.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Atualizado às 07:40

No dia, 31 de outubro de 2023 foi sancionada a lei 14.717, que institui  a pensão especial aos filhos e dependentes, crianças ou adolescentes, órfãos em razão do crime de feminicídio tipificado no inciso VI do § 2º do art. 121 do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 1/4 do salário-mínimo.

A Lei que conta com apenas 4 artigos, vem com muitas lacunas, o que na pratica poderá trazer mais aflição do que proteção aos beneficiários deste benefício.

O benefício instituído pela lei 14.717/23, ainda que denominado pensão especial, mantém nítido caráter de benefício assistencial, pois não traz a exigencia da qualidade de segurado da instituidora do benefício, ou seja, da vítima do feminicídio. Diferenciando assim do benefício previdenciário - Pensão por Morte, prevista no art. 20 da lei 8213/91, que é pago aos dependentes, apenas quando o instituidor do benefício mantiver a qualidade de segurado na data do óbito.

O artigo 1º da lei da lei prevê que a pensão especial será paga aos filhos e dependentes menores de 18 anos de idade, órfãos em razão do crime de feminicídio tipificado no inciso VI do § 2º do art. 121 do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 1/4 do salário-mínimo.

Analisando a primeira parte do referido artigo, já verificamos que a lei, fixa idade limite para recebimento do beneficio, ou seja, 18 anos. Seguindo assim  a regra do art. 5º do Código Civil, que após a reforma de 2002 fixou a  maioridade civil em 18 anos de idade.

Outro ponto que merece atenção é quanto aos dependentes, pois ao fixar a idade, pela literalidade da lei, os filhos maiores de 18 anos, ainda que dependentes por alguma enfermidade, física ou psíquica, estarão excluídos do direito ao benefício de pensão especial.

Mas um ponto que difere do beneficio previdenciário - Pensão por morte, pois esse beneficio previdenciário é assegurado aos dependentes até 21 anos de idade, e no caso de dependentes, sem limite de idade.

A lei ainda exclui os cônjuges e companheiros atuais da vítima de feminicídio. Desconsiderando que nem todo crime de feminicídio é cometido pelo conjunge ou companheiro atual, e quem muitos, talvez a maioria, são cometidos por ex cônjuges e companheiros, que não aceitam o fim do relacionamento. Assim, os atuais não terão direito ao beneficio.

Quanto ao critério econômico, a Lei exige o critério de renda já considerado para o Beneficio de Prestação Continuada, ou seja, que a renda per capita familiar seja igual ou inferior a 1\4 do salário mínimo.

O critério econômico exigido, sem dúvida será um grande limitador, pois exigir que uma família conviva com um 1/4 de salário mínimo, para assim ter direito ao benefício, é exigir que a pessoa esteja em um estado abaixo da pobreza, ou seja, de extrema vulnerabilidade econômica e social.

O beneficio deve ser garantido de modo, a diminuir os efeitos econômicos que os filhos, filhas e dependentes da vítima de feminicídio venha sofrer com a perda da mãe, ou do ente querido. Assim, além do imensurável abalo emocional,  o objetivo central do benefício deve ser o de assegurar meios para que a pessoa em estado de necessidade, não venha viver em estado de miserabilidade ou de extrema pobreza para assim possa alcançar o direito ao beneficio.

Buscando exemplificar o quanto o critério econômico poderá limitar e muito o alcance ao benefício, podemos analisar uma questão muito simples.

Consideramos que duas crianças ou mesmo adolescentes, após a morte de sua mãe, vítima de feminicídio, venham a compor a família dos avós maternos ou mesmo paternos, e  cada um desses avós recebam um benefício previdenciário no valor de um salário mínimo, a renda total da família será de dois salários mínimos, e por conseguinte, considerando a nova composição familiar,  a renda per capita da família será de meio salário mínimo. Assim, essas crianças ou adolescentes, estarão excluídas do direito ao benefício.

E  me parece que não poderemos nos socorrer da  exclusão prevista no  141 do art. 20 da lei 8742/93, pois a lei dispõe que a exclusão será especifica para a concessão do benefício de prestação continuada. Aqui teremos o critério de especialidade da lei, não podendo ser aplicado como regra geral. Talvez a jurisprudência venha responder esse nosso ponto de aflição.

Já no tocante ao conceito de família, a lei não traz qualquer menção qual conceito de família que será considerado. Assim, não se tem seguro se será considerado o critério de família disposto § 1o do art. 20 da lei 8742/932, ou um conceito mais restrito. Mas, essa resposta não temos no momento, e ao que parece será mais um ponto de aflição.

O § 2º do art. 1º prevê que o benefício poderá ser concedido, antes do julgamento do crime, ou seja, em fase preliminar, quando houver fundados indícios de materialidade do feminicídio, na forma definida em regulamento. Esse parágrafo indica que haverá um regulamento posterior de modo a trazer parâmetros a ser analisados e considerados para requerimento de benefícios antes do trânsito em julgado do crime.

O que podemos extrair desse ponto, é que a lei possibilita, por meio de regulamento, que um servidor ou servidora, na análise do benefício requerido, considere se houve ou não um crime. Atividade essa exclusiva da Justiça Criminal, com base nas analise do todas as provas que deve constituir um crime.

Esse ponto é de um absurdo sem tamanho, pois ainda que a lei, tenha por objetivo garantir o acesso ao benefício, de forma mais célere, o caminho não poderia ser da incerteza, mas sim, garantir meios que os crimes de feminicídio fosse o mais breve possível solucionados, e os processos os mais breve possível julgados, com prioridades, de modo que o transito em julgado seja o mais breve possível, de modo que os filhos, filhas e dependentes da vítima do crime de feminicídio tenham acesso ao benefício de forma célere e segura possível.

No entanto, após o trânsito em julgado, e verificado que não se tratava de crime de feminicídio, ou seja, que o servidor ou servidora, errou em sua análise criminal, o pagamento do benefício cessará imediatamente, desobrigando os beneficiários do dever de ressarcir os valores recebidos, salvo má-fé. (§ 3º, art. 1º).

Mas um ponto que merece ser analisado, é cessação do benefício, caso não seja provado o crime de feminicídio. Ainda que a lei assegure que os valores recebidos não serão devolvidos, ela traz uma ressalva, qual seja, a má-fé.

Pelo princípio geral do direito a  boa-fé se presume, já a má-fé se prova, principio esse que não é muito considerado pelo INSS em sua atuação pratica que ao cessar os benefícios já impõe automaticamente a devolução do valor. Sem duvida, esse será um ponto de aflição dos beneficiários, que estarão em gozo do beneficio, sem a certeza se esse beneficio será mantido, e se cessado, deverão devolver ou não, ou enfrentar um processo judicial, para buscar provar a  sua boa-fé, desconsiderada pelo INSS.

Temos ainda que considerar o risco de grandes perdas para o cofre da previdência, pois  ao deferir um benefício, sem a certeza de sua validade,  sem garantir o ressarcimento, sem duvida poderá gerar perdas significativas para os cofres da previdência ou mesmos da Assistência Social. Pois a lei não deixa claro qual será a fonte pagadora deste beneficio. O que poderá ainda gerar argumentos para futuras reformas mais duras no âmbito da previdência, pois temos que considerar que o argumento de ausência de recursos é sempre utilizado nas reformas já enfrentadas no campo da previdência.

E para encerrarmos esse breve artigo, um ponto importante, a lei, como no início apontada, foi publicada em 31 de outubro de 2023, porém até a conclusão do presente artigo, 20 de janeiro de 2024, não foi publicada a Portaria de modo a dispor sobre a operacionalização do benefício, ou seja, como os filhos, filhas e dependentes vão poder   requerer o beneficio. Ou seja, temos um  beneficio que ainda só existe na lei, mas sem possibilitado de ser requerido.

O que pode observar, diante de alguns apontamentos que apresentei nesse breve texto,  é que estamos diante de uma lei com clara característica assistencialista, sem analisar o contexto social e econômico do país, ao exigir um critério de renda per capita que mais exclui do que inclui. Que exclui dependentes com maioridade civil, mas com capacidade física ou psicológica comprometida, sendo por muitas ocasiões considerados incapazes civilmente. E por fim, por não ter o respeito em assegurar com rapidez o acesso ao beneficio, pois sequer foi operacionalizado.

Concluindo, ouso a apontar ser uma lei "para inglês ver".

Aguardamos o próximo capitulo, e voltarei com os apontamentos, na torcida que seja breve.

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1 § 14. O benefício de prestação continuada ou o benefício previdenciário no valor de até 1 (um) salário-mínimo concedido a idoso acima de 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou pessoa com deficiência não será computado, para fins de concessão do benefício de prestação continuada a outro idoso ou pessoa com deficiência da mesma família, no cálculo da renda a que se refere o § 3º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.982, de 2020)

2 § 1o  Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)

Daniele Domingos Monteiro

Daniele Domingos Monteiro

Advogada, Membro do Grupo de Pesquisas Trabalho e Capital (GPTC - USP), Membro do Grupo de estudos " O trabalho além do direito do trabalho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral"-(NTADT) FDUSP, membro do Grupo de Pesquisa RESIST - REDE DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DE SEGURIDADE SOCIAL E TRABALHO. Mestrando - Sociologia do Trabalho. Universidade Estadual de Campinas- Unicamp. Coordenado do IEPREV na Região Metropolitana de Campinas

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