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Frankenstein jurídico: já viu um?

Lei 14.811/24, em vigor desde 15 de janeiro, tipifica o crime de bullying e cyberbullying. Sem questionar a necessidade de punição, os comentários abordam os elementos decorrentes dessa tipificação.

domingo, 21 de janeiro de 2024

Atualizado em 19 de janeiro de 2024 14:54

No último dia 15 de janeiro foi publicada (e já está em vigor - art. 10) a lei 14.811/24 que, dentre outras previsões, tipifica o crime de bullying e cyberbullying.

Primeiramente, estabeleçamos desde já a seguinte premissa: não se discute ou se discorda da necessidade em se punir comportamentos que denotem bullying e cyberbullying. Os comentários que se seguem dizem respeito aos elementos decorrentes dessa tipificação e não de sua desnecessidade.

Ok, ideia convencionada, partamos para os comentários.

Analisando o tipo inserido no Código Penal no seu art. 146-A denota-se grotesca atecnia não só legislativa como também jurídica, que poderá gerar mais frustração e impunibilidade, que tutelar a liberdade individual das vítimas desses crimes. Eis a sua redação:

"Intimidação sistemática (bullying)

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:

Pena - reclusão, de 2 anos a 4 anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave."

Você já ouviu falar em Frankenstein jurídico? Baseado na história de ficção cientifica do século XIX, dizemos que algo se parece com aquele personagem quando é tão decotado e depois reunido, que, ao final, se transforma numa espécie de "monstro".

Pois, é! O legislador fez isso no artigo em comento, que já vem sendo considerado no meio jurídico como o pior tipo penal da história.

O art. 146-A do CP, além de prever a repetência de figuras textuais no tipo penal, torna-o inaplicável em outras situações. Vou te mostrar:

  1. Intimidar por meio de atos de intimidação (?);
  2. O tipo exige a necessidade de intimidar sistematicamente de forma repetitiva (?);
  3. O tipo dispõe que tem que ser intencional, mas, se o tipo penal, em regra, é doloso (art. 18 do CP) por que o legislador precisou dizer que ele deve ser intencional?
  4. Dentre as ações possíveis de cometer o crime, ele pode ser praticado por meio de ação física ou material? E qual a diferença?
  5. Termina o dispositivo do caput (bullying) dizendo que a conduta pode ser praticada de modo virtual, que já é o cyberbullying previsto no parágrafo único. Então, qual a lógica desta previsão?

Bem, além de tudo isso, o tipo penal ainda exige que a ação para a prática do crime de bullying e cyberbullying seja praticada sem motivação evidente (?). Ora, isso significa que, se o sujeito evidencia o motivo para a prática do seu comportamento, em tese, não pratica o crime do art. 146-A do CP? Fico aqui pensando se esse tipo penal não feito no ChatGPT (contém ironia).

Terminou por aqui? Infelizmente, não!

Já se levanta a possibilidade de perda total desse dispositivo, por violar vários princípios constitucionais e penais do nosso direito.

De início já há clara ofensa ao princípio da taxatividade vez que a tipificação é extremamente aberta e incoerente.

Desenvolvendo um pouco mais, tem-se que é de fundamental importância no direito penal a ideia de existir uma simetria entre conduta e sanção, sendo basilar observar o princípio da proporcionalidade em todas as fases da existência do direito penal.

De modo que, é escancaradamente desproporcional prever no preceito secundário do crime do caput (bullying) a pena de multa e no seu parágrafo único (cyberbullying) a pena de reclusão de 2 a 4 anos.

Ou seja, no caput, talvez tenhamos letra morta e no parágrafo único teremos a possibilidade de prisão? Tá certo isso, gente?

Tudo isso me leva a pensar muito em direito penal simbólico ou em um direito penal de emergência, onde o legislador, na ânsia de angariar aplausos da sociedade, que aguarda a tipificação de uma conduta tão nociva e reprovável, acaba por deturpar as reais funções do direito penal desta mesma sociedade, que é tutelar os bens jurídicos protegidos pelo nosso ordenamento.

Alcilei da Silva Ramos

Alcilei da Silva Ramos

Alcilei da Silva Ramos - Advogada. Analista Jurídica da DPE/SC. Pós-Graduada em Direito Civil. @alcidsramos.

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