A lei 14.737/23 e os seus objetivos na prevenção à violência contra a mulher nos serviços de saúde públicos e privados
Lei 14.737, publicada em 28/11, amplia o direito de acompanhante para mulheres em atendimentos de saúde, fortalecendo a norma de segurança (Lei 8080/1990) e proporcionando maior proteção em procedimentos médicos, inclusive os que demandam sedação.
quarta-feira, 17 de janeiro de 2024
Atualizado às 08:17
A lei 14.7371, publicada no Diário Oficial da União - DOU do último dia 28 de novembro, altera a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde), para ampliar o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde públicos e privados. (Agência Senado)
Objetivamente, a nova lei reforça a estabilidade da norma de segurança da saúde (lei 8080/90), ampliando o rol de procedimentos para os quais a mulher tem direito a um acompanhante, independente da necessidade ou indicação de sedação, conferindo, portanto, maior proteção a mulheres quando submetidas a procedimentos médicos, especialmente aqueles que requeiram a diminuição química da consciência.
Além disso, a alteração legislativa em questão estende a referida proteção, também, às instituições privadas, bem como às unidades de saúde que estejam sob a direção de entes subnacionais, ou seja, estados e municípios, os quais podem não estar submetidos às Portarias do Ministério da Saúde em razão do federalismo sanitário, este constitucionalmente previsto e que propicia a regionalização das ações e serviços de saúde no Brasil2.
Trata-se, sem dúvidas, de um avanço na proteção aos direitos das mulheres, o reconhecimento da necessidade dessa proteção e a sua defesa, tendo em conta a recorrente incidência de desrespeito e violências a que mulheres foram submetidas historicamente e que se intensifica a cada ano.
Infelizmente, não há divulgação de levantamentos oficiais sobre o número de casos de violência contra a mulher em ambientes hospitalares, além de que tais casos nem sempre são relatados pelas vítimas por inúmeras razões, dentre elas o medo, a vergonha e para afastar a revitimização, ou seja, a exposição da vítima a atos e questionamentos que a constrangem e fazem reviver a violência.
Em levantamento inédito realizado pelo site Intercept, foi possível conhecer alguns números, registrando-se que somente determinados estados brasileiros forneceram dados por intermédio de suas Secretárias de Segurança Pública, dados esses que confirmam 1.734 casos de assédio sexual e violência sexual mediante fraude, além de atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor, entre 2014 e 2019:
"São 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. O número certamente é maior, tendo em vista a ausência de dados de 18 unidades federativas e o fato de que apenas 10% dos estupros são registrados no Brasil.
As informações, pedidas às Secretarias de Segurança de 19 estados e do Distrito Federal, foram obtidas via lei de acesso à informação. Mas só Acre, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, São Paulo, Rondônia, Roraima, Tocantins e Rio de Janeiro enviaram as informações - este último, no entanto, não contabilizou os casos de 2019.
Os dados mais detalhados, enviados por São Paulo, revelam a violência aguda praticada nos serviços que deveriam zelar pela saúde e a integridade corporal das mulheres. Há 854 registros de estupro em 15 tipos de estabelecimento, incluindo asilos, hospitais psiquiátricos, consultórios médicos e dentários, laboratórios e postos de saúde. Mesmo os ambientes mais expostos se tornam cenário de abusos - há seis registros de estupro em recepções de hospitais - e a exploração de pessoas extremamente vulneráveis chega a ser macabra: foram registrados 16 estupros em CTIs e UTIs, além de quatro casos e uma violação sexual mediante fraude em centros cirúrgicos." (Fonte: www.intercept.com.br) Grifos nossos.
Vale destacar, foram 1239 casos de estupros e 495 casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor, além de que, tais informações são resultado do levantamento feito por alguns estados brasileiros, portanto, não temos dados integrais sobre essa violência.
Outro dado alarmante se refere aos locais onde ocorre a violência em questão, ou seja, somente em São Paulo, em ambientes muito expostos, os estupros não deixam de acontecer, foram 16 estupros registrados em CTI's e UTI's.
Diante disso, é compreensível a necessidade urgente de ações no sentido de evitar que essa violência aconteça, bem como de ações positivas educativas e de informação para todos e, em especial, para mulheres, para que sejam orientadas quanto às formas de prevenção e, também, quanto às providências em caso de violência, sobre como denunciar e quais as formas seguras para tanto, para que sejam identificados os agressores e garantida a devida punição.
No entanto, outra discussão merece espaço quando tratamos da violência contra a mulher e, no caso específico da violência nos ambientes hospitalares, é preciso considerar que o acompanhamento em procedimentos médicos trata-se de ação com características rasas de prevenção e solução do problema, considerando que o ideal seria que mulheres pudessem encontrar total segurança nesses ambientes, assim como deveriam estar seguras em qualquer lugar.
É certo que várias ações foram e vêm sendo implementadas para a diminuição e prevenção à violência contra a mulher em vários sentidos, contudo, não devemos deixar de refletir sobre soluções que foquem na origem do problema e que visem resolvê-lo e não somente remediá-lo.
Diante disso, há que se implementar ações que objetivem exterminar a violência e que tenhamos a devida efetividade das normas correlatas, em especial do conjunto normativo constitucional já existente e que, ainda, pende de efetividade social (eficácia social), esta que transcende a interpretação e aplicação da norma, no sentido de que deve-se garantir o devido atendimento dos seus comandos por seus destinatários e, portanto, com a consequente realização do direito em concreto, demonstrando-se força ativa da Constituição, como bem ensina Konrad Hesse.
Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição tranforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)." (HESSE, 1991, p. 18/19)
Por fim, o que se espera é que os comandos da lei 14.737/23 sejam atendidos, mas que, por outro lado, não sejam considerados bastantes para o combate à violência contra a mulher nesse caso específico, assim como outros comandos legais nesse sentido, e sirvam, em verdade, como base para reflexão e estímulo para mudanças necessárias, principalmente em relação à educação, formas de orientação e informação que alterem substancialmente a dinâmica social nesse sentido.
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1 PL 81/2022, de autoria do deputado federal Júlio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), o qual foi relatado no Senado pela senadora Tereza Cristina (PP-MS). Fonte: Agência Senado
2 O art. 198 da Constituição Federal prevê a integração das ações e serviços públicos de saúde em uma rede regionalizada e hierarquizada que constitui um sistema único e que se organiza a partir de algumas diretrizes, as quais estão dispostas nos incisos e parágrafos do referido artigo. O que implica, em síntese, a sua descentralização, com direção única em cada esfera do governo; atendimento integral e participação da comunidade.
No tocante à descentralização, temos que o "SUS é constituído por uma rede regionalizada e hierarquizada que, preservada a direção única em cada esfera do governo, atua segundo os princípios da descentralização, regionalização e hierarquização dos serviços e ações de saúde. A atuação descentralizada e sob a forma de rede regionalizada de serviços - portanto, não concentrada - permite a adaptação das ações e dos serviços de saúde às necessidades locais, não somente quanto aos aspectos operacionais (...)." (Sarlet; Figueiredo, 2022, pág. 2021)
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em:
BRASIL. Lei 14.737/2023, de 27 de novembro de 2023. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde), para ampliar o direito da mulher de ter acompanhante nos atendimentos realizados em serviços de saúde públicos e privados. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14737.htm. Acesso em: 03dez2023.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar F. Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.
THE INTERCEPT BRASIL. Licença para estuprar. Mais de mil estupros em serviços de saúde: nem em centros cirúrgicos e UTIs mulheres estão a salvo. 2019. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2019/04/28/estupros-servicos-saude/. Acesso em: 03dez2023.
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Art. 198, caput e inciso I. Princípios da descentralização, da regionalização e da hierarquização do SUS. In: Comentários à Constituição do Brasil. CANOTILHO, J.J. Gomes [et al.]; outros autores e coordenadores SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; MENDES, Gilmar Ferreira. 2.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 2021
Viviane Teles
Advogada na Cascone Advogados Associados.