MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. A inépcia da denúncia

A inépcia da denúncia

Apesar de o Ministério Público não estar vinculado às conclusões policiais, a sua discordância deve ser fundamentada.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Atualizado às 08:27

Apesar de o Ministério Público não estar vinculado às conclusões policiais, a sua discordância deve ser fundamentada. Em outras palavras, quando não há indiciamento formal do investigado, e o órgão acusador entende que a denúncia deve ser oferecida, é obrigação do acusador apresentar o suposto fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, sob pena de ter a sua petição inicial rejeitada pela Justiça. 

"Anote-se, por oportuno, que, apesar de o Ministério Público não ficar vinculado às conclusões do inquérito policial, deve, necessariamente, subsidiar a acusação com elementos outros que demonstrem a presença de justa causa, situação que não ocorreu na hipótese dos autos. (RHC 105.836/GO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 26/3/19, DJe de 22/4/19.)"

Isto é, quando a acusação criminal é oferecida de forma superficial ou confusa, a jurisprudência do STJ tem se manifestado por sua inépcia formal, uma vez que a ausência de pormenorização das condutas, inviabiliza ou dificulta o exercício do contraditório e da ampla defesa. No julgamento do RHC 76.678/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/5/17, DJe de 24/5/17 foi reconhecida a inépcia formal da denúncia que imputou o crime de associação criminosa, sem demonstrar a vinculação sólida e durável do recorrente com pelo menos outras 2 pessoas, com a finalidade de cometer crimes:

"Para caracterização do delito de associação criminosa, indispensável a demonstração de estabilidade e permanência do grupo formado por três ou mais pessoas, além do elemento subjetivo especial consistente no ajuste prévio entre os membros com a finalidade específica de cometer crimes indeterminados. Ausentes tais requisitos, restará configurado apenas o concurso eventual de agentes, e não o crime autônomo do art. 288 do Código Penal."

Em outro caso analisado pelo STJ, onde a acusação descartou as provas produzidas pela autoridade policial, que afastava a responsabilidade criminal do sócio formal - aquele que não detém poder de mando na corporação -, o colegiado entendeu que a denúncia foi oferecida de forma temerária (imprudente), pois o Ministério Público, apesar de ter autonomia acusatória, não foi capaz de comprovar a responsabilidade criminal do sócio formal:

"Pelo contexto fático delineado nos autos, não havia elementos objetivos e racionais que fundamentassem a imputação contida na exordial acusatória, visto que, a partir dos depoimentos prestados por sócios da empresa, o relatório policial esclareceu que, "em que pesem os sócios Durval Guimarães Filho e Maria Tenório Guimarães não terem sido localizados para procederem suas oitivas, os relatos dos demais sujeitos ativos indicam que quem de fato administrava a empresa era o investigado Durval Guimarães, motivo no qual foi procedido ao seu indiciamento indireto, sem prejuízo do posterior envio das cartas precatórias quando foram devidamente cumpridas". (RHC 76.487/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 9/10/18, DJe de 18/10/18.)"

Essa mesma interpretação foi adotada no julgamento do HC 461.468/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 9/10/18, DJe de 30/10/18, onde se analisava a imputação dirigida a um advogado que apenas emitiu uma opinião legal sobre um procedimento licitatório. Com muita precisão e inteligência, a eminente relatora do caso, ao abordar que a acusação criminal deve ser coerente com a dignidade do acusado e, portanto, não deve ser promovida de forma desarrazoada, determinou o trancamento da ação penal por ausência de tipicidade formal da suposta conduta delituosa: 

"Fica evidenciada a atipicidade da conduta da Paciente, uma vez que não foi acusado da prática do ato tido por ilícito - contratação direta da empresa, em tese, indevida -, tampouco lhe foi atribuída eventual condição de partícipe do delito. De fato, foi denunciada apenas pela simples emissão de pareceres jurídicos, sendo que essa atuação circunscreve-se à imunidade inerente ao exercício da profissão de advogado, a teor do disposto no art. 133 da Constituição Federal.

O regular exercício da ação penal - que já traz consigo uma agressão ao status dignitatis do acusado - exige um lastro probatório mínimo para subsidiar a acusação. Não basta mera afirmação de ter havido uma conduta criminosa. A denúncia deve, ainda, apontar elementos, mínimos que sejam, capazes de respaldar o início da persecução criminal, sob pena de subversão do dever estatal em inaceitável arbítrio. Faltando o requisito indiciário do fato alegadamente criminoso, falta justa causa para a ação penal."

Em linhas gerais, quando a ação penal é promovida de forma imprudente, a utilização do habeas corpus continua sendo o melhor instrumento de defesa para o estancamento das arbitrariedades acusatórias. Cita-se, como exemplo, o caso analisado no HC 374.515/MS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 7/3/17, DJe de 14/3/17, onde foi reconhecida a ausência de justa causa para uma persecução criminal que se baseava em opiniões pessoais do acusador para promover capitulação jurídica sem a existência de base empírica que viabilizasse a acusação pelo delito de associação criminosa:

"Partindo da análise de um delito de roubo isoladamente considerado, concluiu, genericamente, pela existência de associação criminosa, sem a devida elucidação de que o paciente integrasse grupo criminoso estável e permanente, tampouco que estivesse imbuído do ânimo de se associar com vistas à pratica conjunta de crimes indeterminados, tornando inepta a inicial.

Além disso, dos elementos de informação expressamente referenciados pela peça vestibular (prova pré-constituída), não ressuma a existência de indícios mínimos de autoria e materialidade aptos à deflagração da ação penal, pelo que deve ser reconhecida a ausência de justa causa."

Portanto, ainda que o inquérito policial seja tecnicamente tratado como uma peça informativa, isso não quer dizer que a autonomia concedida ao órgão acusação pode se valer de opiniões pessoais desvinculadas da investigação, uma vez que a absoluta ausência de provas sobre a autoria e materialidade delitiva é uma condição de procedibilidade acusatória que não pode ser ignorada por critérios de oportunidade e de conveniência.

--------------------------------

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941.

Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

RHC n. 105.836/GO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 26/3/2019, DJe de 22/4/2019

RHC n. 76.678/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/5/2017, DJe de 24/5/2017

RHC n. 76.487/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 9/10/2018, DJe de 18/10/2018

HC n. 461.468/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 9/10/2018, DJe de 30/10/2018

HC n. 374.515/MS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 7/3/2017, DJe de 14/3/2017

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

VIP Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca