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STF e STJ alinhados na descriminalização e cultivo individual de maconha

O Brasil enfrenta inércia política na atualização da legislação sobre drogas, enquanto os tribunais avançam. A 'lei de Drogas' mostrou-se desastrosa, levando a um aumento alarmante na população carcerária sem melhorias no combate ao narcotráfico, apesar de tendências internacionais de descriminalização.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Atualizado às 15:01

Enquanto Congresso e governo federal se omitem de sua função constitucional de atualizar a política de drogas no Brasil, os tribunais superiores avançam. A última mudança na área foi há 17 anos, quando se tentou - de forma bem intencionada - distinguir o usuário do traficante. Nesse período, porém, a atual "lei de Drogas" (11.343/06) se mostrou uma calamidade. E apesar do mundo ocidental caminhar pela descriminalização e até a legalização de substâncias, a classe política do Brasil defende a manutenção da chamada guerra às drogas, restando ao Judiciário essa responsabilidade.

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, de 2006 até 2018 o Brasil foi de 401 mil para 840 mil presos1. O número mais que dobrou em 12 anos, nos fazendo a terceira população carcerária do mundo. Essa política não resultou em qualquer índice positivo no combate ao narcotráfico. Inclusive, o Brasil foi considerado no ano de 2021 como a pior política de drogas do mundo pelo relatório Global Drug Policy Index2.

Um dos poucos avanços que o país protagonizou nos últimos anos foram as autorizações judiciais para plantio doméstico de maconha por pacientes. Foram centenas de decisões favoráveis em diferentes instâncias - estaduais e federais - e pelas vias criminal e cível. Até que, em setembro de 2023, o STJ consolidou posição sobre a concessão de habeas corpus para a atividade3. Pela decisão, quem puder comprovar a necessidade de tratamento pode buscar o salvo-conduto na esfera estadual para plantar sem risco de ser preso.

A 3ª Seção do STJ analisou o tema após o ministro Messod Azulay, que tomara posse em dezembro de 2022, propor uma revisão de entendimento firmado nove meses antes. Para o magistrado, o HC não seria mais cabível, uma vez que o país já dispõe de oferta de medicamentos à base de cannabis nas farmácias, e que o estado deve fornecer. O argumento foi visto como um retrocesso pelos colegas4.

"Causaria até certa perplexidade nos aplicadores do Direito, que seguem a jurisprudência da Corte. Viria em prejuízo da segurança jurídica. Então, não seria o momento de se reiniciar uma discussão sobre uma matéria tão recentemente pacificada nas turmas", destacou o ministro Jesuíno Rissato.

A posição de Rissato foi seguida por outros seis juízes: Laurita Vaz, Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti, Reynaldo Soares da Fonseca, Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik.

O ministro Rogerio Schietti Cruz manifestou inclusive preocupação em rever a matéria. Lembrou que "nós estamos discutindo hoje na Suprema Corte algo que vai muito além do que singelamente se decidiu aqui no STJ: a autorização do cultivo da cannabis sativa para fins medicinais". Schietti se referia ao julgamento sobre a descriminalização da posse de maconha, que foi retomado pelo STF em agosto, após quase 8 anos parado. O placar passou para 5x1 votos a favor, restando apenas o voto de mais um entre cinco ministros para se formar a maioria.

Em junho de 2023, no mesmo STJ, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou que tanto a 5ª quanto a 6ª Turma do STJ também consideram que a conduta de plantar maconha para fins medicinais não configura tipicidade material, por isso há necessidade do salvo-conduto quando comprovada a necessidade médica. Assim, evita-se criminalizar pessoas em busca do direito fundamental à saúde, no caso o de uma paciente em tratamento para fibromialgia5.

"Nesse contexto, deve ser confirmada a liminar, para que as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas, inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde do paciente", argumentou o ministro Reynaldo.

Essa virada de chave começou em junho do ano passado, quando a 6ª Turma do STJ concedeu a primeira decisão favorável ao plantio. Até então, não era esse o entendimento. Em 2021, a 5ª Turma havia negado um salvo-conduto a uma paciente. Na ocasião, o relator Reynaldo Fonseca argumentou que a autorização para atividades relacionadas a matérias-primas de drogas é atribuição da Anvisa. Que esse tipo de autorização depende de critérios técnicos cujo estudo não compete ao juízo criminal. Uma posição bem diferente do atual entendimento da Corte.

No entanto, a concessão de salvo-conduto para o plantio de cannabis para fins medicinais pode não ser mais tão indispensável quando o STF formar maioria para descriminalizar a posse de maconha. No julgamento retomado em agosto, o voto que mais chamou atenção da opinião pública e dos próprios magistrados foi o do ministro Alexandre de Moraes, que apresentou argumentos sólidos em favor da descriminalização.

Para o ministro, uma substância que não representa risco significativo à saúde pública, apenas ao próprio usuário não deveria ser enquadrada como inconstitucional. Moraes enfatizou que, mesmo com bilhões de dólares investidos na "guerra às drogas", o país se tornou o maior consumidor de maconha e o segundo maior de cocaína no mundo, mudando a posição que tinha até meados dos anos 1970, quando era um mero corredor do tráfico entre América do Sul e Europa. Essa realidade criou um mercado extremamente atrativo para os cartéis, considerando a geografia favorável do Brasil para o tráfico, com a terceira maior fronteira seca do mundo, incluindo os maiores produtores de cocaína e maconha6.

O ministro também denunciou o caráter racista da lei de Drogas. Ele se baseou em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria - ABJ, que analisou mais de 1,2 milhões de ocorrências policiais de apreensões de pessoas com a droga. Moraes afirmou que o branco precisa de 80% a mais de maconha do que o negro para ser considerado traficante7.

A tese apresentada pelo ministro propõe não tipificar como crime a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo maconha para consumo pessoal. Ele defendeu a presunção de usuário para quem possuir entre 25g e 60g de maconha ou 6 plantas fêmeas. No entanto, destacou que a presunção é relativa, permitindo a prisão em flagrante com base em critérios que caracterizam tráfico, como forma de acondicionamento, diversidade de entorpecentes e instrumentos como balança e cadernos.

Após a sustentação de Alexandre de Moraes, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, surpreendeu ao reajustar seu voto proferido em 2015. Antes favorável à descriminalização de todas as drogas, Mendes restringiu sua posição, alinhando-se ao Moraes e defendendo a liberação apenas da maconha. Justamente para formar maioria e avançar mais rápido na pauta8.

O artigo 28, segundo Mendes, deveria ser retirado o caráter penal e conferir uma sanção administrativa. Ele propôs a aplicação de medidas educativas, como o comparecimento a cursos, afastando repercussão criminal. Mendes fundamentou sua decisão argumentando que a tipificação penal do Artigo 28 viola o postulado constitucional da proporcionalidade. Para ele, trata-se de uma conduta cuja lesividade se restringe à esfera pessoal do usuário, não justificando a imposição de sanções criminais.

As posições dos ministros citados, tanto do STJ como no STF, mostram um entendimento de que o artigo 28 da lei de Drogas é inconstitucional. Por isso, se faz necessário avançar na garantia do direito individual ao auto cultivo. A única manifestação contrária, acima mencionada, do ministro Messod Azulay, argumentava que remédios de cannabis já estão disponíveis no mercado. Contudo, já há o consenso de que trata-se de uma deformidade jurídica encarcerar cidadãos que produzem em casa o mesmo princípio que está disponível nas gôndolas das farmácia.

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1 Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/01/24/pais-tem-superlotacao-e-falta-de-controle-dos-presidios

2 Global Drug Policy Index é um projeto do The Harm Reduction Consortium, um consórcio de redução de danos formado por 190 entidades de pesquisa em drogas e redução de danos em todo o mundo

3 Disponível em https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/14092023-Terceira-Secao-garante-salvo-conduto-penal-para-cultivo-de-cannabis-com-finalidade-medicinal.aspx

4 Disponível em https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/09/13/stj-permite-cultivo-da-planta-da-maconha-para-fins-medicinais.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-multicontent-widget

5. Ministros do STJ concedem salvo-condutos para o cultivo de cannabis com fins medicinais https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/07062023-Ministros-do-STJ-concedem-salvo-condutos-para-o-cultivo-de-cannabis-com-fins-medicinais.aspx

6 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SstkhhAfwkw&t=1s

7 Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/08/02/branco-precisa-estar-com-80percent-a-mais-de-maconha-do-que-o-preto-para-ser-considerado-traficante-alexandre-de-moraes-cita-estudo-em-voto.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-multicontent-widget

8 Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-08/gilmar-mendes-vota-por-descriminalizar-porte-de-maconha-de-uso-pessoal#:~:text=O%20placar%20do%20julgamento%20%C3%A9,portar%20cerca%20de%2025%20gramas.

Vladimir Saboia

Vladimir Saboia

Advogado especialista em Cannabis e Presidente da Comissão de Direito do setor da Cannabis Medicinal da OAB-RJ.

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