Argentina: decreto 70/23 e as bases para a reconstrução da economia
Presidente argentino aprova DNU 70/23, reformando drasticamente o direito econômico. Liberalização intensa levanta debates sobre legalidade e constitucionalidade. Declara emergência pública até 2025, suscitando questões sobre limites presidenciais e a Constituição.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
Atualizado às 07:19
Como primeiro ato relevante de sua administração, o novo presidente argentino Javier Milei aprovou Decreto de Necessidade e Urgência - DNU, abrangendo reformas econômicas profundas. O DNU 70/23 redefine o direito econômico argentino, alterando a orientação intervencionista das últimas décadas. O DNU 70 traz uma liberalização radical das atividades econômicas, levantando questionamentos sobre seus limites legais e sua constitucionalidade. O Decreto, neste sentido, declara emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, administrativa, previdenciária, sanitária e social até 31 de dezembro de 2025.
Inicialmente, deve-se compreender a natureza dos DNU. Segundo a Constituição da Nação Argentina, o Presidente "não poderá, em hipótese de qualquer hipótese, sob pena de nulidade absoluta, expedir disposições de natureza legislativa". Isso para respeitar o sistema republicano, estabelecido no artigo 1º daquela Constituição.
Entretanto, o Artigo 99.º, n.º 3, da Constituição estabelece que "quando as circunstâncias forem excecionais, intransitáveis ou decorrentes de dois procedimentos ordinários previstos nesta Constituição para a edição de leis, e não se tratar de normas que regulem o regime penal, fiscal, eleitoral ou partidário, [o Presidente da Nação] pode expedir decretos por razões de necessidade e urgência, que será decidido em acordo geral dos Ministros que os aprovarem, juntamente com o Chefe do Gabinete de Ministros".
Para justificar a existência dessas circunstâncias excepcionais, o DNU 70/23 afirma, entre outras considerações, "[que] a REPÚBLICA ARGENTINA está passando por uma situação de gravidade das anteriores, gerando profundos desequilíbrios que impactam negativamente toda a população, especialmente social e economicamente".
Inferior à Constituição argentina, a lei 26.122/06 regulamenta o procedimento e o âmbito de intervenção do Congresso Nacional em relação aos decretos de necessidade e urgência editados pelo Executivo. Esta lei determina que a Comissão Bicameral Permanente do Congresso Nacional deverá se pronunciar sobre a validade ou invalidade dos decretos de necessidade e urgência, e submeter seu parecer ao plenário de cada Casa (Câmara e Senado), no prazo de dez dias úteis. Posteriormente, as Casas devem pronunciar-se por meio de resoluções e a rejeição ou aprovação integral dos decretos deve ser expressa.
Enquanto a DNU 70/23 não for rejeitada pelas duas Casas do Congresso, seu texto terá vigência após sua publicação, a partir do dia em que elas próprias determinarem, ou em oito dias após sua publicação. No caso da DNU 70/23, por não prever uma data específica de entrada em vigor, sua vigência se iniciará em 29 de dezembro de 2023.
Como se afirmou, o DNU 70/23 materializa liberalização em várias atividades da economia argentina, de forma alinhada com o discurso libertário do candidato vitorioso nas últimas eleições argentinas.
Um dos capítulos da DNU se dedica, por exemplo, à desregulamentação dos direitos trabalhistas. Assim, revoga quase todo o capítulo sobre o emprego não registrado, que previa as multas ao empregador pelo não-registro correto da relação de emprego. E revoga o artigo que previa o pagamento de juros pelo empregador em caso de falta de pagamento pontual de verbas rescisórias1. Revoga também os artigos que previam multa ao empregador por retenção indevida de contribuições previdenciárias2; a notificação à autoridade fiscal nos casos trabalho não registado ou omissão das obrigações de segurança; revoga a multa pela não-entrega de certidões trabalhistas.
No que se refere à intervenção do Estado no domínio econômico, a DNU 70/23 revoga várias leis, muitas delas oriundas da Ditadura Onganía (1966-1970), que previam controles de preços e limitações às atividades econômicas. Assim, ficam revogadas as leis sobre Promoção Comercial3, Observatório de Preços e Disponibilidade de Insumos, Bens e Serviços4, Locação de Imóveis para Fins Turísticos5, Lei da Gôndola (sobre exposição de produtos)6, Mercados de Interesse Nacional (sobre rede de mercados atacadistas)7, lei de Abastecimento8 e da Lei sobre Celulose e Papel de Jornal9, além da revogação parcial da lei de Desenvolvimento de Fornecedores e Compra de Fornecedores10.
Na regulamentação financeira, o DNU 70/23 flexibiliza a obrigação de realizar depósitos judiciais ou recursos oficiais, em moeda estrangeira, no Banco de la Nación Argentina11. Também revoga parcialmente a lei do Cartão de Crédito12, alterando a definição de cartão de crédito, reduzindo obrigações quanto às taxas de juros. Revoga ainda parcialmente a lei dos Certificados de Depósito Bancário, na parte relativa a produtos agropecuários13.
O DNU 70/23 também traz inovações em vários setores econômicos: no transporte aéreo, busca implementar política de céus abertos, com ampla concorrência. Na área de saúde, altera o marco regulatório dos medicamentos e dos planos de saúde e estabelece prescrições eletrônicas para agilizar o atendimento e minimizar custos, promovendo também concorrência entre empresas farmacêuticas. Também desregulamenta os serviços de internet via satélite e o setor de turismo (eliminando o monopólio das agências de turismo), sob o argumento de incentivar a concorrência.
No Direito Civil, a DNU revoga integralmente a lei de Aluguéis, muito protetiva ao locatário, reforçando o princípio da liberdade contratual. Também altera o Código Civil e Comercial para dar primazia ao princípio da autonomia da vontade e garantir que as obrigações contraídas em moeda estrangeira sejam pagas conforme pactuado. Ainda, modifica a lei Geral das Sociedades Anônimas para que os clubes de futebol possam se tornar sociedades anônimas, se assim desejarem.
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 Lei nº 25.013, Art. 9º.
2 Lei 25.345, Arts. 43 a 48.
3 Lei nº 18.425.
4 Lei nº 26.992.
5 Lei nº 27.221.
6 Lei nº 27.545.
7 Lei nº 19.227.
8 Lei nº 20.680.
9 Lei nº 26.736.
10 Lei nº 27.437.
11 Artigo 2º da Lei nº 21.799.
12 Lei nº 25.065.
13 Lei nº 9643.
Welber Barral
Sócio de Barral Parente Pinheiro Advogados, com escritórios em São Paulo, Brasília e Buenos Aires.