Penhora de bens do cônjuge: equívocos jurisprudenciais e o acertado posicionamento do STJ
A penhora de bens do cônjuge até o limite da meação para pagamento de dívida é permitida pelo Código Civil e tem amparo do STJ, mas encontra resistências em diversos tribunais de segunda instância.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
Atualizado às 07:18
O STJ tem sólida jurisprudência pela possibilidade da penhora de bens do cônjuge do devedor, limitada à sua meação. Recentemente, a decisão proferida nos autos do REsp 1830735-RS, em que o posicionamento é reafirmado, foi amplamente divulgada nos canais de notícias jurídicas.
No mencionado precedente, ficou expressamente consignado ser "perfeitamente possível a constrição judicial de bens do cônjuge do devedor, casados sob o regime da comunhão universal de bens, ainda que não tenha sido parte no processo, resguardada, obviamente, a sua meação."
Entretanto, é comum encontrar decisões de instâncias inferiores negando pedidos de penhora de bens do cônjuge do devedor (casado sob os regimes de comunhão de bens), ainda que tal pedido expressamente faça menção à preservação da meação.
O presente artigo tem por fim analisar o motivo dessa dissonância jurisprudencial.
Analisando diversos casos em que foram negados os pedidos de penhora de bens do cônjuge, infere-se que normalmente se confunde a possibilidade de penhora do patrimônio do cônjuge do devedor para o pagamento de obrigações contraídas pelo marido ou pela mulher para atender os encargos da família, às despesas de administração e às decorrentes de imposição legal com a possibilidade de penhora de meação do devedor para pagamento de dívida pessoal.
A título de exemplo, destacamos dois precedentes proferidos pelo TJ/SP e TJ/DF e dos Territórios:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO. CENTRAL NOTARIAL DE SERVIÇOS ELETRÔNICOS COMPARTILHADOS - CENSEC. INCABÍVEL. PESQUISA SOBRE BENS. CÔNJUGE QUE NÃO COMPÕE A RELAÇÃO PROCESSUAL. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. PROVEITO FAMILIAR. NÃO COMPROVAÇÃO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. OBSERVÂNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. DECISÃO MANTIDA. (...) 3. No regime de comunhão parcial de bens, os bens do cônjuge somente estão sujeitos à execução quando a dívida do outro cônjuge tiver sido contraída em benefício da entidade familiar. 4. No caso em análise, não há sequer alegação do exequente de que a dívida foi contraída em benefício da família. Ademais, trata-se de dívida contraída por empresa já liquidada de que era sócio o executado, portanto, de dívida oriunda do desempenho de atividade empresarial, e não para atender aos encargos da família. 5. A execução não pode alcançar terceiro estranho à lide, sob pena de afronta ao devido processo legal. 6. Não pode o cônjuge do executado, que não compõe relação jurídica de direito material que deu origem à propositura da demanda e não foi parte no processo de conhecimento, ter seu patrimônio alcançado e expropriado em sede de cumprimento de sentença, sob pena de violação ao devido processo legal. 7. Recurso conhecido e não provido. Decisão mantida. (TJ/DFT, 1ª Turma Cível, Agravo de Instrumento 0706310-09.2023.8.07.0000, Des. Rel. Romulo de Araújo Mendes, DJe 18/5/23)
Agravo de instrumento. Execução de título extrajudicial. 1. Legitimidade passiva. O cônjuge do devedor não apresenta legitimidade para integrar o polo passivo da execução, independentemente do regime de casamento. 2. A penhora de bens do cônjuge é medida excepcional e exige comprovação cabal de que a dívida executada beneficiou a entidade familiar, o que, no caso, não houve, independentemente do regime de casamento. R. decisão mantida. Recurso não provido." (TJ/SP, 22ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 2068159-29.2021.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 29/6/21)
Os trechos abaixo extraídos dos relatórios dos acórdãos acima mencionados dão conta de que os pedidos de penhora tinham por fundamento a comunicabilidade existente entre os bens e as dívidas do casal e não eventual benefício da entidade familiar pela dívida contraída por um dos consortes.
Alega, ainda, que é cabível a penhora da meação do cônjuge devedor, uma vez que um dos efeitos patrimoniais do casamento em regime de comunhão parcial é o de que os bens em nome de um dos cônjuges respondem pelas obrigações pecuniárias que recaem sobre um deles. (acórdão do TJ/DFT)
O exequente recorre, alegando, em síntese, que a causa subjacente do título executado é a aquisição de um trator; que, diante da inexistência de patrimônio penhorável, requereu a inclusão de sua esposa no polo passivo da demanda e a penhora de seus ativos financeiros no patamar de 50%, eis que casados sob o regime jurídico da comunhão parcial de bens (...) (acórdão do TJ/SP)
Entretanto, os Tribunais acima mencionados, ao negarem provimento aos recursos, expressamente afirmaram que a constrição pretendida "exige comprovação cabal de que a dívida executada beneficiou a entidade familiar", fazendo menção à hipótese prevista no §1º do artigo 1.663 do Código Civil (também aplicável ao regime da comunhão universal por força do disposto no artigo 1.670), segundo o qual "as dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido." (g.n.)
Pela dicção do dispositivo legal, infere-se que, no regime de comunhão parcial de bens, os bens do cônjuge somente estão sujeitos à execução para pagamento de dívida quando esta tiver sido contraída em benefício da entidade familiar.
Entretanto, a penhora de bens em nome do cônjuge até o limite da meação do devedor não se confunde com a hipótese acima mencionada, mas por força da comunicabilidade de bens prevista nos artigos 1.658 e 1.667 do Código Civil, que têm a seguinte redação:
Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.
Extrai-se da comunicabilidade de bens que um dos efeitos patrimoniais do casamento em regime de comunhão de bens é o de que os bens em nome de um dos cônjuges respondem pelas obrigações pecuniárias que recaem sobre um deles, no limite da meação do patrimônio comum.
Isso porque, no regime da comunhão de bens, forma-se, dos bens comunicáveis, um único patrimônio entre os consortes, o que agasalha todos os créditos e débitos que cada um possui individualmente, excetuando as hipóteses previstas nos artigos 1.659 e 1.668 do Código Civil para os casos de comunhão parcial e universal, respectivamente.
Tal conclusão, conforme já mencionado anteriormente, é expressamente adotada pelo STJ, conforme se infere do precedente acima citado e cuja ementa importa destacar:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA DE VALORES NA CONTA BANCÁRIA DA ESPOSA DO EXECUTADO, QUE NÃO INTEGRA A RELAÇÃO PROCESSUAL. POSSIBILIDADE. REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. FORMAÇÃO DE PATRIMÔNIO ÚNICO DOS CONSORTES. PROTEÇÃO DA MEAÇÃO E BENS EXCLUSIVOS DO CÔNJUGE QUE SE DÁ PELA VIA DOS EMBARGOS DE TERCEIRO (ART. 674, § 2º, INCISO I, DO CPC/2015). REFORMA DO ACÓRDÃO RECORRIDO. RECURSO PROVIDO.
(...)
2. No regime da comunhão universal de bens, forma-se um único patrimônio entre os consortes, o qual engloba todos os créditos e débitos de cada um individualmente, com exceção das hipóteses previstas no art. 1.668 do Código Civil.
3. Por essa razão, revela-se perfeitamente possível a constrição judicial de bens do cônjuge do devedor, casados sob o regime da comunhão universal de bens, ainda que não tenha sido parte no processo, resguardada, obviamente, a sua meação.
4. Com efeito, não há que se falar em responsabilização de terceiro (cônjuge) pela dívida do executado, pois a penhora recairá sobre bens de propriedade do próprio devedor, decorrentes de sua meação que lhe cabe nos bens em nome de sua esposa, em virtude do regime adotado.
5. Caso, porém, a medida constritiva recaia sobre bem de propriedade exclusiva do cônjuge do devedor - bem próprio, nos termos do art. 1.668 do Código Civil, ou decorrente de sua meação -, o meio processual para impugnar essa constrição, a fim de se afastar a presunção de comunicabilidade, será pela via dos embargos de terceiro, a teor do que dispõe o art. 674, § 2º, inciso I, do CPC/15.
6. Recurso especial provido.
(STJ, 3ª Turma, REsp 1830735-RS, Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze, j. 20/6/23, v.u.) (g.n.)
Com efeito, o STJ não apenas adota o entendimento de ser possível a penhora bens do cônjuge do devedor, ainda que não tenha sido parte no processo, resguardada, obviamente, a sua meação, bem como expressamente afirma que tal medida não implica em "em responsabilização de terceiro (cônjuge) pela dívida do executado, pois a penhora recairá sobre bens de propriedade do próprio devedor, decorrentes de sua meação que lhe cabe nos bens em nome de sua esposa, em virtude do regime adotado".
Tal anotação é importante, uma vez que a jurisprudência dissonante e já citadas acima afirmam, justamente, não ser possível a penhora de bens do cônjuge do devedor, tendo como um dos argumentos, que a penhora pleiteada se traduz em responsabilização do cônjuge do executado que não compõe relação jurídica de direito material que deu origem à propositura da demanda e não foi parte no processo de conhecimento.
Por outro lado, o STJ afasta essa impossibilidade afirmando que a penhora de bens em nome do cônjuge, de qualquer forma, recairá sobre bens de propriedade do próprio devedor e isso se dá porque a comunicabilidade de bens implica na necessária consideração dos bens do casal como uma massa única pertencente a ambos (no limite da meação de cada um).
Portanto, enquanto o STJ analisa a questão pela ótica da comunicabilidade de bens, prevista nos artigos 1.658 e 1667 do Código Civil, e as implicações dela decorrentes, os Tribunais de Justiça, a exemplo das cortes do Distrito Federal e dos Territórios e do Estadão de São Paulo, encaram o tema pela responsabilidade decorrente de dívidas contraídas em benefício da entidade familiar, prevista no §1º do artigo 1.633 do Código Civil.
Conclui-se, portanto, que a divergência jurisprudencial não decorre de interpretações distintas de um mesmo texto legal, mas de fazer incidir, sobre um fato, dispositivos legais diversos.
E a posição adotada pelo STJ é a acertada, pois a Corte Superior faz a necessária distinção entre a constrição de bens decorrente da comunicabilidade do regime de comunhão (parcial ou universal) de bens e a possibilidade de penhora de bens do cônjuge para pagamento de dívida contraída em benefício da entidade familiar.
Aliás, o STJ já tem se manifestado, há muito tempo, sobre a correta distinção, conforme se infere do trecho da ementa do REsp 708.173/MA, de relatoria do Ministro Jorge Scartezzini:
"Sendo a dívida pessoal de um dos cônjuges e não revertendo em benefício da sociedade conjugal, somente o patrimônio deste garante a execução. Assim, cuidando-se de devedor casado e havendo bens em comum a garantia fica reduzida ao limite da sua meação." (STJ, REsp 708.143/MA, Rel. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, j. 6/2/07) (g.n.)
Dessa forma, para que a dívida pessoal contraída por um dos cônjuges seja garantida pelo patrimônio do outro, necessário que o débito tenha revertido em benefício da sociedade conjugal, não havendo limite sobre o montante a ser utilizado para satisfação do débito.
Por outro lado, a penhora de patrimônio em nome do cônjuge do devedor decorrente meramente da comunicabilidade de bens não exige que a dívida tenha sido contraída em benefício da entidade familiar e necessariamente deve respeitar o limite da meação pertencente ao devedor.
Espera-se que o entendimento irretocável do STJ afete, pela repetição de julgamentos de diversos recursos especiais tratando da matéria, os posicionamentos equivocados dos Tribunais de Justiça com posição divergente.
Eduardo Almeida Fabbio
Advogado no GHBP Advogados. LL.M. em Direito Corporativo pelo IBMEC (cursando), pós-graduado em Direito Empresarial pela Escola Brasileira de Direito e pós-graduado em direito internacional pela Escola Paulista de Direito.