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O que é populismo? Qual é sua relação com eleições, equilíbrio fiscal e o direito?

Fabíola Marquetti Sanches Rahim e Caio Gama Mascarenhas

O crescimento do populismo gera atenção global. Como afeta o direito financeiro e eleitoral? Um texto recente analisa o populismo fiscal e eleitoral em relação a auxílios e custeio, destacando a obra 'Populismo e o Estado de Direito'.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Atualizado às 14:26

É um consenso que se vive hoje um extraordinário momento populista pan-europeu e transatlântico1. Na América Latina, no entanto, o movimento não é particularmente novo2. Percebe-se que o vocábulo "populismo" tem chamado atenção de inúmeros estudiosos e técnicos do processo eleitoral e das finanças públicas no mundo. Qual é a relação entre populismo, direito financeiro e direito eleitoral?

Essa provocação reflete uma análise crítica feita em um texto de nossa autoria chamado "Auxílios, custeio e populismo fiscal em ano eleitoral: do custeio (ECs 113/21 e 114/21) aos auxílios (EC 123/22)" recentemente publicado na obra coletiva de título "Populismo e o Estado de Direito", organizado por Onofre Alves Batista Júnios, Misabel Derzi, Heleno Torres e Fernando Facury Scaff em 20233.

Alerta-se inicialmente que não há sequer consenso sobre o populismo ser um fenômeno político necessariamente ruim. Enquanto grande parte dos autores focam no perigo que o populismo traz para a democracia e para o liberalismo, outros enfatizam que o populismo é um fenômeno intrinsecamente democrático4.

O presente texto, no entanto, foca nos aspectos negativos do populismo na aprovação de políticas públicas fiscais, sua interferência em pleitos eleitorais e o papel do direito. Tendo isso em mente: o que é populismo?

1. Populismo e política

O populismo é um termo ambíguo que impossibilita definições contundentes e incontestáveis, porquanto não é propriamente uma ideologia nem um regime político, não podendo ser atribuído a um conteúdo programático específico (direita, esquerda, neoliberalismo, keynesianismo, nacionalismo, socialismo, fascismo etc.). Cuida-se de uma forma de ação coletiva que visa tomar o poder (ou nele se manter). O populismo é um modo de fazer política que pode assumir várias formas, dependendo dos períodos e dos lugares, se esforçando para atrair pessoas comuns que sentem que suas preocupações são desconsideradas por grupos de elite estabelecidos5.

A melhor definição de populismo parte de Nadia Urbinati, segundo a qual o populismo consiste em "uma transmutação dos princípios democráticos da maioria e do povo de forma a celebrar um subconjunto do povo em oposição a outro, por meio de um líder que o incorpore e um público que o legitima"6.

Jan Müller sustenta que populismo não é a parte autêntica da política democrática moderna nem uma espécie de patologia causada por cidadãos irracionais. É apenas a sombra permanente da política representativa. Haveria sempre a possibilidade de um ator falar em nome do "povo" como forma de contestar as elites atualmente poderosas. Em regra, os populistas não são contra o princípio da representação política: eles apenas insistem que somente eles próprios são representantes legítimos7.

Na concepção do autor, quando em oposição, os populistas necessariamente insistirão que as elites são imorais, enquanto o povo é uma entidade moral e homogênea cuja vontade não pode errar. Muitas vezes, poderia parecer que os populistas pretendem representar o bem comum como desejado pelo povo. Olhando mais de perto, verificar-se-ia que o que importa para os populistas não é propriamente o produto de um processo genuíno de formação de vontade nem um bem comum que qualquer pessoa com bom senso pode colher. Importaria para os populistas primeiramente uma representação simbólica das "pessoas reais" das quais a política correta. Isso torna a posição política de um populista imune à refutação empírica. Os populistas podem sempre jogar com as "pessoas reais" ou a "maioria silenciosa" contra os representantes eleitos e contra o resultado oficial de uma votação8.

Os líderes populistas tendem a assumir o governo sob a bandeira de representar exclusivamente o povo. Em seus mandatos, é comum ocuparem o Estado, praticarem o clientelismo e a corrupção em larga escala, enquanto reprimem qualquer voz crítica na sociedade civil. Essas ações são justificadas moralmente na visão populista da política e podem ser defendidas abertamente. Além disso, os líderes populistas podem redigir constituições que servem aos interesses de seus partidos, visando a manutenção de seu poder em nome de uma suposta vontade popular original. Essa postura muitas vezes leva a conflitos constitucionais sérios em diferentes momentos9.

Considerando que populistas podem governar, cabe inquirir: como governam? Que tipo de políticas públicas aprovam? Nesse contexto, entra o chamado "populismo fiscal" ou "populismo macroeconômico".

1.2 Populismo fiscal: economia e políticas públicas

Na prática, o populismo no poder tem conotado um conjunto de reformas políticas de acordo com o compromisso básico do governante com a ideia de que somente ele representa o povo em determinada agenda. Essas políticas podem assumir formas variadas. Na América do Sul, políticas populistas são tradicionalmente feitas sob medida para promover o desenvolvimento sem que haja conflitos de classes de grande magnitude.

Os programas normalmente respondem aos problemas do subdesenvolvimento, expandindo o ativismo estatal para incorporar os trabalhadores em um processo de industrialização acelerada por meio de medidas redistributivas de melhoria10.

Segundo Bresser-Pereira e Dall'Acqua, existem várias experiências bem definidas na América Latina em que o déficit orçamentário aumentou significativamente para atender às metas de crescimento e de distribuição, resultando em efeitos desastrosos sobre o desempenho econômico. Esse populismo econômico costuma ser legitimado por um certo tipo de keynesianismo e defende o uso indiscriminado da política fiscal e dos déficits orçamentários como meio de estabilização cíclica11.

Nesse sentido, "populismo fiscal" ou "populismo econômico" é uma abordagem da economia que enfatiza o crescimento e a redistribuição de renda e não enfatiza os riscos de inflação e déficit financeiro, restrições externas e a reação dos agentes econômicos a políticas agressivas de não-mercado. Na visão da macroeconomia, o propósito de estabelecer esse paradigma não é uma afirmação correta da economia conservadora, mas sim um aviso de que as políticas populistas acabam por falhar; e quando falham, é sempre a um custo assustador para os próprios grupos que deveriam ser favorecidos12.

As características mais importantes do paradigma populista podem ser resumidas pelo tripé: "condições iniciais- ausência de restrições- prescrições de políticas".

1. Condições iniciais - os formuladores de políticas populistas - e a população em geral - estão profundamente insatisfeitos com o desempenho da economia e há um forte sentimento de que as coisas podem ser melhores (baixo crescimento, inflação, estagnação ou depressão econômica, pobreza, desigualdade social extrema).

2. Ausência de restrições - os tomadores de decisão rejeitam explicitamente o paradigma econômico conservador e ignoram a existência de qualquer tipo de constrangimento à política macroeconômica. Os riscos do déficit financeiro enfatizados no pensamento tradicional são retratados como exagerados ou totalmente infundados.

3. Prescrições de políticas - diante das condições iniciais descritas acima, os programas populistas enfatizam três elementos: reativação, redistribuição de renda e reestruturação da economia. O fio comum aqui é "reativação com redistribuição". A política recomendada é usar ativamente a política macroeconômica para redistribuir a renda, normalmente por grandes aumentos de salários reais que não devem ser repassados a preços mais altos. No entanto, mesmo que as pressões inflacionárias se desenvolvam, o formulador de política populista rejeita a desvalorização devido à convicção de que ela reduz os padrões de vida e porque terá mais impacto inflacionário sem afetar positivamente o setor externo13.

Defende-se que o tripé "condições iniciais- ausência de restrições- prescrições de políticas" pode ser utilizado para analisar o populismo fiscal no contexto da aprovação das Emendas Constitucionais 113/21, 114/21 e 123/22. Na prática, o pagamento de precatórios foi inserido no limite de gastos (Emendas Constitucionais 113 e 114) para possibilitar o aumento do Auxílio Brasil durante um ano eleitoral, por meio da EC 123. Recursos estavam disponíveis para o pagamento, mas o governo optou por outras prioridades, aumentando tanto os gastos correntes (Auxílio Brasil) quanto a dívida consolidada (precatórios) 14.

2. A relação entre eleições, equilíbrio fiscal e o direito

No fim das contas, qual a relação entre populismo, direito financeiro e direito eleitoral?

A resposta é a seguinte: para um populista, as eleições são um fim, as finanças públicas são um meio e o direito é um possível obstáculo. Explica-se. Os populistas enxergam como uma finalidade a chegada ao poder e a manutenção nele por meio das eleições. Para atingir esse fim, necessitam de um programa de governo para comunicar com o que denominam como "povo". O instrumento (meio) de execução desse programa de governo são as finanças públicas. O direito, por meio de suas normas eleitorais e financeiras, fornece obstáculos ao voluntarismo populista.

Adverte-se que, embora o populismo fiscal tenha uma afinidade com um aumento de despesa, nem todo aumento de despesa é necessariamente fruto de uma política populista. A "despesa populista" pode ser nada mais que uma acusação de meios de imprensa e opositores políticos. Mesmo quando o populismo fiscal ocorre efetivamente, tal aumento de despesa, quando muito, é uma construção doutrinária, sem que haja elementos objetivos para identificação. O que há, em um ordenamento jurídico, são restrições legais para coibir aumentos abusivos de despesas, que podem ou não ser frutos de populismo.15

No Brasil, há restrições de aumento de gastos, em ano eleitoral, tanto na lei de Responsabilidade Fiscal (LRF - LC 101/00), quanto na lei Geral de Eleições (lei 9.504/97).

No âmbito eleitoral, o direito busca regular o exercício do direito fundamental de sufrágio, visando legitimar o exercício do poder estatal por meio do voto popular. Segundo José Jairo Gomes, entre os bens jurídico-políticos resguardados pelo direito eleitoral, "destacam-se a democracia, a legitimidade do acesso e do exercício do poder estatal, a representatividade do eleito, a sinceridade das eleições, a normalidade do pleito e a igualdade de oportunidades entre os concorrentes"16.

Visando garantir a lisura das eleições contra abuso de poder político e a igualdade de oportunidades entre os concorrentes, a lei Geral de Eleições (lei 9.504/97) restringe o aumento de gastos no final de mandato. Em seu artigo 73 (incisos V e IV), foram previstas inúmeras condutas governamentais proibidas que podem aumentar os gastos públicos nos três meses que antecedem o pleito eleitoral e até a posse dos eleitos em alguns casos.

No âmbito das finanças públicas, busca-se tutelar princípios da gestão fiscal responsável. Segundo José Maurício Conti, o Direito Financeiro tem como objeto de estudo "os princípios e as regras que regem a atividade financeira do Estado, compreendendo a arrecadação de receitas, orçamento, despesas, controle, partilha federativa e responsabilidade fiscal"17.

Por exemplo, a LRF, almejando o equilíbrio das contas públicas, estabelece regras que visam impedir a prática de atos que importem no aumento de despesa com pessoal e que coloquem em risco os limites de despesas com pessoal determinados na Lei em especial nos 180 dias anteriores ao final do mandato (artigo 21), realização de Operações de Crédito por Antecipação de Receita Orçamentária no último ano do mandato (artigo 38, IV, "b") e a assunção de despesa nos dois últimos quadrimestres do mandato que ultrapassem o exercício financeiro sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para tanto.

O gasto no período eleitoral, por exemplo, poderia ser um instrumento para líderes populistas manterem-se no poder, demonstrando aos seus eleitores que somente o governo atual é representante legítimo dos "interesses do povo"18. As normas de direito tutelam valores democráticos no âmbito eleitoral, assim como o necessário equilíbrio fiscal das contas públicas no âmbito financeiro.

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1 BRUBAKER, Rogers. Why populism?. Theory and society, v. 46, n. 5, p. 357-385, 2017.

2 BORGONOVI, Frederico Poles. Democracia, populismo e constitucionalismo. 2019. 129 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019, p. 84-87. BRESSER-PEREIRA, Luiz; DALL'ACQUA, Fernando. Economic populism versus Keynes: reinterpreting budget deficit in Latin America. Journal of Post Keynesian Economics, v. 14, n. 1, p. 29-38, 1991.

3 RAHIM, Fabíola Marquetti Sanches; MASCARENHAS, Caio Gama. Auxílios, custeio e populismo fiscal em ano eleitoral: do custeio (ECs 113/2021 e 114/2021) aos auxílios (EC 123/2022). In: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; DERZI, Misabel de Abreu Machado; TORRES, Heleno Taveira; SCAFF, Fernando. Facury. (Org.). Populismo e o Estado de Direito. 1. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito - Letramento, 2023, p. 208-231.

Ibid.

5 URBINATI, Nadia. Political theory of populism. Annual review of political science, v. 22, p. 111-127, 2019.

6 Ibid, p. 111.

7 RAHIM, Fabíola Marquetti Sanches; MASCARENHAS, Caio Gama. Auxílios, custeio e populismo fiscal em ano eleitoral: do custeio (ECs 113/2021 e 114/2021) aos auxílios (EC 123/2022), op. cit.

8 Ibid, p. 102.

9 Ibid.

10 DORNBUSCH, Rudiger; EDWARDS, Sebastian. The macroeconomics of populism. In: The macroeconomics of populism in Latin America. University of Chicago Press, 1991. p. 7-13.

11 BRESSER-PEREIRA, Luiz; DALL'ACQUA, Fernando. Economic populism versus Keynes: reinterpreting budget deficit in Latin America. Journal of Post Keynesian Economics, v. 14, n. 1, p. 29-38, 1991.

12 DORNBUSCH, Rudiger; EDWARDS, Sebastian, Op. Cit, p. 7-13.

13 Ibid.

14 RAHIM, Fabíola Marquetti Sanches; MASCARENHAS, Caio Gama. Auxílios, custeio e populismo fiscal em ano eleitoral: do custeio (ECs 113/2021 e 114/2021) aos auxílios (EC 123/2022), op. cit.

15 Ibid.

16 GOMES, José Jairo - Direito eleitoral - 12. ed. - São Paulo: Atlas, 2016, p. 48

17 CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil - 1. ed. - São Paulo : Blucher Open Access, 2020, p. 36.

18 Ibid.

Fabíola Marquetti Sanches Rahim

Fabíola Marquetti Sanches Rahim

Pós-graduada em Regime Próprio de Previdência e em Direito Eleitoral. Ex-Promotora de Justiça do Mato Grosso (2004). Procuradora do Estado de Mato Grosso do Sul (2005-presente). Procuradora-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul (2019-2022). Corregedora-Geral da PGE-MS (2023-presente)

Caio Gama Mascarenhas

Caio Gama Mascarenhas

Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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