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A derrotabilidade das regras na era do principiologismo

A indeterminação das normas jurídicas apresenta duas formas - a linguística não intencional e a normativa intencional - evidenciando lacunas interpretativas na legislação que demandam decisões do magistrado baseadas em conhecimentos adquiridos, criando uma linha tênue entre o uso adequado do conhecimento jurídico e a concepção pessoal, podendo resultar em judicialização e morosidade processual.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Atualizado às 14:52

Quando se inicia a descortinação do assunto indeterminação de normas jurídicas, infere-se que coexistem duas formas: a linguística não intencional e a normativa intencional, cada qual com suas prerrogativas e sujeições humanísticas e sociais. Nessa toada, focando especificamente na produção normativa abstrata, pode-se constatar que o legislativo, intencionalmente, não consegue abarcar todos os tipos de demandas da sociedade, por meio das leis e deixa lacunas interpretativas para que o magistrado se utilize de seus conhecimentos adquiridos e experiencias pontuais para julgamentos efetivos. Todavia, a grande questão paradoxal existente nesse tipo de interpretação permeia-se na utilização de conhecimentos jurídicos adquiridos ou na própria concepção pessoal intrínseca. Ou seja, existe uma linha tênue, considerada por muitos juristas, de discricionariedade inadequada que pode gerar judicialização e morosidade processual. Por conseguinte, faz-se mister tratar dos conceitos referentes às regras e aos princípios, suas características pontuais e a relevância positivada em cada caso concreto.

A priori, de acordo com a teoria do positivismo fechado, as regras primam pela certeza de julgamentos, eliminando controvérsias pontuais e reduzindo certo grau de arbitrariedade, em casos de lacunas normativas. Explicando melhor, as regras existem, na maioria dos casos, para serem obedecidas e, quando há choque entre duas regras distintas, utiliza-se da subsunção ou eliminação de uma em detrimento da outra - que pode ser a mais antiga ou a mais específica, por exemplo. Todavia, os princípios podem ser considerados mandados de otimização, com elevado grau de abstratividade, sendo uma bússola para a hermenêutica jurídica. Portanto, quando há colisão entre princípios, faz-se mister utilizar da ponderação, uma vez que se pode utilizar ambos os princípios, com razoabilidade e sem exclusão. Destarte, sabe-se que na Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) coexistem uma grande quantidade de princípios e regras, em uma situação de coexistência anacrônica, uma vez que a utilização errônea pode causar prejuízos para com o coletivo.

Nessa perspectiva, pode-se citar três doutrinadores que revolucionaram a tratativa da interpretação dos princípios e regras: os filósofos Herbert Hart1, Ronald Dworkin2 e Robert Alexy3, cujos trabalhos complementam-se reciprocamente. Isto é, resumidamente, para Hart, sua doutrina era condizente com o positivismo estrutural e a existência de regras e lacunas extrínsecas ao direito, perfazendo com que o intérprete tivesse uma atuação discricionária para sentenciar processualmente. Em outra linha, Dworking acreditava na utilização dos princípios com preenchedor, para que houvesse arrefecimento da liberdade de discernimento pelo magistrado, acreditando na efetividade da segurança jurídica. Finalmente, Alexy conseguiu aperfeiçoar ambas as doutrinas pretéritas e preestabelecer a ideia dos princípios como mandados de otimização, em casos de indeterminações legislativas e lacunas hermenêuticas. Assim, como o direito está sempre em mutação de acordo com as necessidades da sociedade no qual pertence, observa-se que a interpretação conforme princípios e regras está sempre em evolução doutrinária e jurisprudencial.

Outrossim, segundo o doutrinador Canotilho, as regras e os princípios são considerados normas primárias que se complementam em um sistema normativo aberto e dialógico, coexistindo na CRFB/88 para se tentar abarcar a extensa determinação de fatos jurídicos positivados. Especificamente em relação as regras, sua hermenêutica pode ser pautada "no tudo ou nada", entretanto, a casuística tem superado este modelo utilizando-se da "derrotabilidade ou defeasibility", relativizando o modelo da subsunção das regras. Esclarecendo melhor, ao se utilizar das regras, diante de notórias mudanças sociais, permite-se critérios mais elásticos, visando a dignidade da pessoa humana. Um exemplo disso foi o julgamento no STF da ADI 1.231, que relativizou o critério objetivo da obtenção do benefício de prestação continuada da 8.742/93 (LOAS) ao ampliar para pessoas em real estado de miserabilidade social, independentemente de ter ou não um salário-mínimo de renda. Para os ministros do STF, a real necessidade de tratamentos e medicamentos para idosos e portadores de deficiência poderia ser um fator a "derrotar" a regra elaborada na lei da LOAS.

Para complementar, as regras têm uma espécie de eficácia de trincheira e devem ser superadas somente em situações extraordinárias com fundamentação esclarecedora. Nesse prisma, a relativização do "tudo ou nada" tem que se pautar nos requisitos formais e materiais de preservação dos valores essenciais constitucionais, sendo uma situação sui generis. Nessa linha de pensamento, a "derrotabilidade" foi descrita também na aprovação da EC/107 de 2020, período da pandemia do COVID-19, no qual a regra do artigo 16 da CRFB/88 foi relativizada com o intuito de adiar as eleições municipais- visando a proteção da saúde do coletivo.

Desse modo, o STF está em vias de aceitar a "derrotabilidade" no direito constitucional brasileiro com julgamentos emblemáticos, em situações extraordinárias e fundamentadas. A grande pergunta a ser esclarecida, ao longo dos anos, deve levar em conta se a relativização das regras estaria, na verdade, igualando-as aos princípios, empoderando, ainda mais o sistema de precedentes e o neoconstitucionalismo tão em voga no Brasil.

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1 H. L. A. Hart, foi um filósofo do direito e magistrado britânico, conhecido por seu trabalho no estudo da moral e da filosofia política. Seu trabalho mais famoso é "O Conceito de Direito" (em inglês: The Concept of Law), de 1961, que se tornou obra de referência para a filosofia do direito de tradição analítica.

2 Ronald Myles Dworkin (Worcester, Massachusetts, 11 de dezembro de 1931 - Londres, 14 de fevereiro de 2013) foi um filósofo e jurista estadunidense. Dworkin foi influente tanto no âmbito da filosofia do direito quanto no da filosofia política.

 

3 Robert Alexy (Oldenburgo, 9 de setembro de 1945) é um jurista alemão, e um dos mais influentes filósofos contemporâneos do direito. Graduou-se em direito e filosofia pela Universidade de Göttingen, formou-se doutor em 1976, com a dissertação Uma Teoria da Argumentação Jurídica, e adquiriu habilitação em 1984, com a Teoria dos Direitos Fundamentais. Ambos os trabalhos são considerados clássicos contemporâneos da filosofia e teoria do direito.

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ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p.134.

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1982.

HART, H.L.A. O conceito de direito, pp. 142-143.

HART, H. L. A. Obbligazione morale e obbligazione giuridica. Contributi all'analisi del direito. Trad. Por Vittorio Frosini. Milão: Giuffré, 1964.

__________________. O conceito de direito.  Trad. por Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s/d.

__________________. The concept of law. Oxford: Clarendon Press, 1975.

__________________. The concept of law. 2. ed. Oxford: Clarendon Press, 1994.

__________________. American jurisprudence through English eyes: the nightmare and the noble dream.  Georgia law review, v. 11, nº 2. Athens: Georgia, set., 1977, pp. 969-989.

HART, H. L. A.; HONORÉ, Tony. Causation in the law. Oxford: Clarendon Press, 1959.

Joseane de Menezes Condé

VIP Joseane de Menezes Condé

Pós Graduação em Direito Constitucional Damásio ,Discente de Direito Anhanguera, estagiária do TRT 15, coautora do Livro Direito do Trabalho- Impactos da pandemia e das Revistas Judiciais TRT

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