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Inconstitucionalidades na privatização da Sabesp: o que esperar da judicialização?

O PL 1.501/23 sobre a desestatização da Sabesp gerou intensos debates na Alesp, recebendo destaque na mídia pela sua importância, onde contribuímos com análises em veículos de comunicação relevantes.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Atualizado às 14:39

Nas últimas semanas, grande parte do noticiário foi tomado pelas discussões que antecederam a votação do PL 1.501/23 pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Discussões essas que se mantiveram no radar e ganharam fôlego renovado quando a Assembleia aprovou o projeto, oficializando o primeiro passo rumo à desestatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Recentemente, pudemos contribuir com os debates em uma série de notícias e reportagens em alguns dos maiores veículos de comunicação do Brasil, dada a extrema relevância do tema1.

O presente artigo visa contribuir com o debate, renovando e atualizando a opinião que publicamos anteriormente2. Frisamos, mais uma vez, que nossa opinião é essencialmente técnico-jurídica, fundamentada em uma análise sistêmica de elementos de Direito Público relacionados ao caso concreto.

Como havíamos aduzido, a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 115, inciso XXI, dispõe que a privatização de sociedades de economia mista depende de aprovação prévia da Alesp. Sendo a Sabesp uma sociedade de economia mista, nossa primeira conclusão foi no sentido de que a privatização da estatal somente seria possível com a prévia aprovação da Assembleia Legislativa - o que permanece sendo um ponto posto e incontroverso.

O embate específico, como visto, diz respeito ao rito legislativo mais adequado e ocorre em razão da interpretação de dispositivo específico da Constituição Estadual, que trata do setor de saneamento básico no território paulista:

Art. 216. §2º O Estado assegurará condições para a correta operação, necessária ampliação e eficiente administração dos serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário.

Depreende-se da leitura do artigo acima que a desestatização da Sabesp fará com que o Estado passe a ser minoritário entre os acionistas, perdendo o controle acionário. Isso é suficiente para contrariar a disposição da Constituição Paulista, o que nos levou a uma segunda conclusão. já adotada oficialmente como cerne argumentativo formal pela oposição ao Governo de SP: a venda da Sabesp somente pode ser efetivada com a alteração do texto constitucional.

Com efeito, a oposição defende que o caminho juridicamente adequado para eventual desestatização tem de ser, obrigatoriamente, via Proposta de Emenda à Constituição Estadual - PEC. Isso porque, consoante o disposto no artigo retromencionado, os serviços de saneamento serão prestados por concessionária sob controle acionário do Estado, impondo, portanto, que tais serviços devam ser prestados por empresas estatais (aí inseridas as sociedades de economia mista).

Ademais, imperioso relembrar uma terceira conclusão que diz respeito à inexistência de uma norma geral de desestatização no Estado, ao contrário do que ocorre em âmbito federal com o Programa Nacional de Desestatização, criado por meio da lei 9.491/97. Em nível estadual, temos notícias tão somente de normas setoriais específicas, a exemplo da lei 9.361/96 (que criou o Programa Estadual de Desestatização no setor energético) e da lei 17.056/19 (que dispõe sobre a extinção e incorporação das empresas explicitamente citadas pela norma, o que não é o caso da Sabesp).

Dito isto, a Sabesp é uma empresa essencial ao setor de saneamento no estado mais populoso do país e uma desestatização às pressas pode ser contraproducente à medida que o rito do PL é muito mais simplificado em detrimento do rito de aprovação de uma PEC. Enquanto uma emenda constitucional requer quórum de 3/5 da Casa Legislativa em dois turnos (art. 22, § 2º, da Constituição Estadual), a aprovação de um projeto de lei demanda maioria absoluta (art. 23) ? e é justamente essa simplificação de rito que o Governo pretendeu utilizar como estratégia a fim de iniciar o processo de desestatização nos próximos meses.

De toda maneira, para além da discussão formal em torno do rito mais adequado ao processo legislativo, é imprescindível relembrar que o tema deveria ter sido devidamente estudado e inserido em uma rede ampla de debates, inclusive mediante a integração de representantes da sociedade civil, como mecanismo de democracia participativa. Desprezar a centralidade que a sociedade civil deve ocupar nas discussões significa subtrair parte da legitimidade de uma proposta tão impactante na vida dos usuários do serviço essencial de saneamento básico.

Sob o ponto de vista pragmático-consequencialista, a privatização, como está sendo feita, pode produzir consequências pouco eficientes ao passo que o tempo economizado em uma aprovação mais simplificada certamente será compensado a partir da judicialização do assunto, o que já vem ocorrendo. O que nos permitiu alcançar mais uma conclusão, consubstanciada no entendimento para o qual a aprovação via PL tende a carecer de efetividade e segurança jurídica.

Destarte, como prevemos em nosso artigo anterior, a judicialização já teve início por intermédio do diretório estadual paulista do Partido dos Trabalhadores (PT), que protocolou, na última quinta-feira, perante o TJ/SP, a primeira ação direta de inconstitucionalidade contra o projeto de privatização.

Em síntese, a peça expõe os seguintes problemas decorrentes da aprovação do PL: (i) violação ao devido processo legislativo, denunciando a supressão dos debates em comissões paradigmáticas que, na visão do partido, deveriam ter tido participação indispensável (Meio Ambiente e Administração Pública), além da unificação das discussões em várias comissões, que deveriam ter analisado o tema de forma isolada e independente (Constituição e Justiça, Infraestrutura e Orçamento); e (ii) violação à Constituição Paulista, justamente pela opção legislativa pelo projeto de lei em detrimento da alternativa tecnicamente adequada, qual seja, uma proposta de emenda constitucional, escolha esta que contraria frontalmente, conforme já defendemos, o art. 216, § 2º, da Constituição Estadual.

Mas não é apenas a ADIn movida no dia 14/12/23 perante o TJ/SP que passa a ocupar os holofotes. As atenções também se voltam, agora, a um parecer jurídico exarado pela Procuradoria-Geral da República no dia anterior, em 13 de dezembro, no bojo de ação direta de inconstitucionalidade movida em agosto deste ano em face do decreto Estadual 67.880/23, o qual funcionou como um ensaio do Governo do Estado para o intento privatista.

Na ação, os partidos proponentes questionaram uma série de atribuições das Unidades Regionais de Abastecimento de Água e Esgotamento - Uraes, espécie de conselhos deliberativos dispostos no decreto supra; tais atribuições permitem que a renegociação e prorrogação dos contratos dos municípios com a Sabesp sejam feitas em bloco e não individualmente, o que facilita a desestatização na prática. De pronto, a PGR entende que a norma atacada é inconstitucional à medida que afronta a autonomia municipal fixada pela Constituição Federal - inclusive por uma desproporção de representação nas tomadas de decisões, que concentra poder e privilegia representantes do Estado e da capital em detrimento dos demais municípios.

É possível apontar, portanto, uma série de condutas e posicionamentos disfuncionais e periclitantes que, relacionados entre si, vêm conduzindo a estratégia de privatização da Sabesp: a desproporção de poder e representação nas Uraes; a aprovação via projeto de lei em detrimento da necessária emenda constitucional; a desconsideração à imprescindível popularização do debate, dentre outros.

Estaremos observando os desdobramentos desta discussão, agora já judicializada, esperando que o avanço dos debates contribua para o alcance de soluções mais adequadas, democráticas e efetivas, à luz da diretriz orientativa de sinergia público-privada prevista na lei 14.026/20.

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1 Para maiores informações, cf. reportagens veiculadas no Valor Econômico e no G1: https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/11/16/advogados-se-dividem-quanto-ao-formato-certo-para-a-desestatizacao.ghtml; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/06/saiba-como-o-projeto-de-lei-de-privatizacao-da-sabesp-e-discutido-e-deve-ser-votado-na-alesp-nesta-quarta.ghtml; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/06/o-que-acontece-com-a-sabesp-agora-que-o-projeto-de-privatizacao-foi-aprovado-na-alesp.ghtml; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/06/privatizacao-da-sabesp-e-aprovada-na-alesp.ghtml; https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/06/votacao-na-alesp-pela-privatizacao-da-sabesp-tem-confronto-entre-pm-e-manifestantes-grupo-tentou-invadir-plenario-e-sessao-foi-suspensa.ghtml; e https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/12/08/adesao-dos-municipios-a-privatizacao-da-sabesp-e-voluntaria-estamos-tentando-mostrar-vantagens-diz-tarcisio.ghtml.

2 OLIVEIRA, Gustavo Justino de; MOREIRA, Matheus Teixeira. Privatização da Sabesp: inconstitucionalidades do atual processo de desestatização. In: LexLatin. 8 dez. 2023. Disponível em: https://br.lexlatin.com/opiniao/privatizacao-da-sabesp-inconstitucionalidades-do-atual-processo-de-desestatizacao. Acesso em 15 dez. 2023.

Gustavo Justino de Oliveira

Gustavo Justino de Oliveira

Professor Doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília), árbitro, mediador, consultor, advogado especializado em Direito Público. Membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

Matheus Teixeira Moreira

Matheus Teixeira Moreira

Advogado pós-graduado em Direito Público. Pós-graduando em Direito e ESG pela Fundação Getulio Vargas-SP (FGV Law). Atua com Direito Administrativo e é coordenador do Núcleo de Consultoria e Assessoria em Direito Público no escritório Justino de Oliveira Advogados.

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