Arbitragem e contratos de franquia: eficácia da convenção de arbitragem
O artigo aborda a questão da arbitragem em contratos de franquia, discutindo a possibilidade de revisão da convenção de arbitragem em contratos por adesão. O caso paradigma é o REsp 1.602.076/SP, que permitiu ao Judiciário analisar a validade da cláusula de arbitragem em um contrato de franquia.
quarta-feira, 20 de dezembro de 2023
Atualizado às 14:50
Um dos temas mais sensíveis relacionados à arbitragem nos contratos de franquia é a possibilidade de mitigação do princípio Kompetenz-Kompetenz quando constatada a não satisfação dos fatores legais de eficácia referentes à convenção de arbitragem inserida em contratos formados por adesão1. Nesse sentido, o presente artigo se propõe a oferecer uma breve contribuição a tão candente debate.
O julgamento do REsp 1.602.076/SP2, em 15 de setembro de 2016, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, é o paradigma jurisprudencial que inaugurou a linha de entendimento no sentido de autorizar o Poder Judiciário a se manifestar, em primazia, e analisar a validade e a eficácia da convenção de arbitragem inserida em contratos de franquia. No caso, o franqueado ajuizou ação objetivando a anulação do contrato de franquia contendo cláusula compromissória ou, subsidiariamente, sua rescisão, com a condenação da outra parte à devolução de valores pagos e ao pagamento de multa.
A existência da convenção de arbitragem foi suscitada em preliminar de contestação, mas não foi acolhida em primeira instância diante do não preenchimento dos requisitos do artigo 4º, §2º, da lei de Arbitragem3. Esse dispositivo, aplicável aos contratos de adesão, prevê que "a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula". Indubitavelmente, trata-se de fator legal de eficácia previsto pela legislação.
Ao se debruçar sobre o tema, o TJ/SP concluiu, por maioria de votos, que não incidem as regras do CDC em contrato de franquia, e reconheceu a validade da cláusula compromissória, declarando a incompetência do Poder Judiciário para analisar o caso. Interposto Recurso Especial, o STJ reconheceu que "o franqueado não é consumidor de produtos ou serviços da franqueadora, mas aquele que os comercializa junto a terceiros, este sim, os destinatários finais", concordando com a posição do TJ/SP nesse aspecto.
A partir daí, o STJ passou a analisar a satisfação dos requisitos previstos no art. 4, §2º da lei de Arbitragem. Ao constatar que esses não se encontravam preenchidos, a Ministra Nancy Andrighi passou a analisar as consequências legais decorrentes. Nesse aspecto, ao analisar o Kompetenz-Kompetenz, manifestou-se no sentido de que a jurisprudência do STJ vinha mostrando "algum abrandamento com o mencionado princípio". E, à luz do caso concreto, concluiu que o Kompetenz-Kompetenz, como toda regra geral, "comporta exceções para melhor se adequar a situações cujos contornos escapam às situações típicas abarcadas pelo núcleo duro da generalidade e que, pode-se dizer, estão em áreas cinzentas da aplicação do direito".
Com base nessas premissas, entendeu a Terceira Turma do STJ que haveria margem para o reconhecimento prima facie do vício que atinge a convenção de arbitragem pelo Poder Judiciário em casos nos quais a convenção de arbitragem apresenta patologia clara e manifesta. A posição adotada pelo STJ está em plena sintonia com o previsto no art. II (3) da Convenção de Nova York, que reconhece a mitigação do efeito negativo da convenção de arbitragem nos casos em que seja possível constatar que o acordo das partes de se submeter a arbitragem é "nulo e sem efeitos, inoperante ou inexequível".
Nesse julgado, o STJ adotou posição em três tópicos essenciais sobre o debate acerca da arbitragem em contrato de franquia: (i) apesar de não ser caracterizada relação de consumo, o modelo da franquia envolve a contratação por adesão, o que implica a necessidade de observância de fatores de eficácia adicionais para que a arbitragem tenha início; (ii) indicou-se haver, tipicamente, nesses contratos, disparidade entre as partes, o que justifica teleologicamente a proteção do contratante mais vulnerável e (iii) nos casos em que seja patente o não preenchimento dos requisitos formais indicados na lei de Arbitragem, o Poder Judiciário está autorizado a realizar o controle prima facie da convenção de arbitragem, mitigando o Kompetenz-Kompetenz.
No entanto, desde o julgamento desse caso paradigmático, duas alterações legislativas significativas justificam a reabertura do debate sobre a utilização da arbitragem como método de solução de conflitos nas relações de franquia. Primeiramente, a lei 13.966, de 26 de dezembro de 2019, passou a disciplinar o sistema de franquia empresarial. O art. 7º, §1º deste diploma prevê que as partes "poderão eleger juízo arbitral para solução de controvérsias relacionadas ao contrato de franquia". Em segundo, a lei de Liberdade Econômica, também aprovada em 2019, passou a prever que os contratos empresariais "presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção".
Essas mudanças legislativas provocam a necessária reflexão sobre qual é o regime mais adequado para tratar a arbitragem nos contratos de franquia. Afinal, se a justificativa teleológica subjacente à aplicação do art. 4, §2º da lei de Arbitragem aos contratos de franquia pressupunha a vulnerabilidade do franqueado em face do franqueador, passou a haver no ordenamento brasileiro presunção legal no sentido inverso. Ou seja, a presunção passou a ser a de simetria até que se constate que, à luz de elementos do caso concreto, seja possível verificar a vulnerabilidade do franqueado.
A inserção dessa presunção legal tem potencial reflexo na análise do Kompetenz-Kompetenz. Nos termos da Convenção de Nova York e da jurisprudência consolidada do STJ, o que justifica a mitigação desse princípio basilar da arbitragem é a existência de vício manifesto e cognoscível prima facie. Diante do fim da presunção de vulnerabilidade do franqueado, tornou-se necessário repensar a possibilidade de mitigação indiscriminada do Kompetenz-Kompetenz nos casos em que a convenção de arbitragem inserida em contrato de franquia é formada ao arrepio dos requisitos formais do art. 4º, §2º da lei de Arbitragem.
Esse debate foi suscitado no STJ quando do julgamento do REsp 1.803.752/SP[4], em 04 de fevereiro de 2020. O caso consiste em recurso especial interposto por "Brumaria Comércio de Bolos e Confeitos EIRELI" e outros (recorrentes) em face da sociedade "Vó, Quero Bolo! Franchising Ltda". (recorrida). Os recorrentes ajuizaram ação de rescisão contratual e de indenização por perdas e danos em face da recorrida, em razão do inadimplemento de obrigações pela última. Sobreveio sentença que extinguiu o processo ante à existência de cláusula arbitral no contrato, confirmada em segunda instância. Diante disso, foi interposto recurso especial, no qual se alegou, em síntese, a invalidade da cláusula arbitral por não ter cumprido o requisito previsto no art. 4º, §2º, da lei de Arbitragem.
A Ministra Nancy Andrighi, resgatando o entendimento proferido no REsp 1.602.076/SP, afirmou que a competência do Tribunal Arbitral para avaliar a existência, validade ou eficácia da convenção de arbitragem não é absoluta, e que cabe ao Poder Judiciário intervir nos casos em que identificável, prima facie, patologia ou ilegalidade na convenção de arbitragem. Assim, pelo não preenchimento dos requisitos legais do art. 4, §2º da lei de Arbitragem, votou no sentido de reconhecer a competência do Poder Judiciário para analisar a questão.
Abrindo divergência, o Ministro Marco Aurélio Bellizze entendeu que a finalidade do requisito formal do art. 4º, § 2º é salvaguardar o contratante por adesão no contexto de uma relação assimétrica. Na sequência, pontuou que o contrato de franquia não é intrinsecamente assimétrico. Por essa razão, entendeu o Ministro que o afastamento do juízo arbitral prima facie em decorrência de inobservância dos requisitos fixados na Lei de Arbitragem para contratos por adesão supõe prévia análise da concreta vulnerabilidade do franqueado, ou seja, que esse esteja em posição efetivamente assimétrica.
Essa análise, como argumenta o Ministro, demanda a verificação concreta (i) da formação do contrato e (ii) da posição dos contratantes na relação. Contudo, esse escrutínio é incompatível com uma análise prima facie. Por conseguinte, defendeu que caberia ao Tribunal Arbitral analisar primeiramente a questão, já que essa não se enquadraria nas causas em que haveria vício manifesto apto a autorizar a mitigação do Kompetenz-Kompetenz.
Em seu voto, o Ministro Bellizze reconheceu, implicitamente, que nem sempre os contratos empresariais encerram relação jurídica absolutamente simétrica. Assim, admite-se no Direito Brasileiro a categoria dos contratos com "dependência empresarial", hipótese na qual um dos empresários, por iniciativa própria, avaliando todos os riscos, vantagens e desvantagens do negócio jurídico, confere ao outro empresário, por meio de ajuste contratual, o poder de organizar a sua empresa, seguindo as diretrizes deste, e.g. o contrato de franquia.
Portanto, concluiu o Ministro, optando por abordagem inovadora, que "em se tratando de contratos empresariais, a exigência formal contida no § 2º, do art. 4º da lei 9.307/96 somente tem aplicação se a relação jurídica estabelecida entre os empresários contratantes for assimétrica e ficar caracterizado, no caso concreto, o comprometimento da autodeterminação e da autonomia da parte aderente para negociar ou mesmo para discordar dos termos contratuais propostos. E, como se trata de questão precedente e condicionante à instauração da arbitragem, o enfrentamento da matéria, por expressa disposição legal, é afeta à competência do Juízo arbitral".
Ao final do julgamento, o STJ, por maioria, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Nancy Andrighi. Vencido o Ministro Marco Aurélio Bellizze, votaram com a Ministra Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro. Embora o resultado tenha se aproximado daquele alcançado no REsp 1.602.076/SP - com o reconhecimento de que o Poder Judiciário poderia, com primazia, apreciar o desatendimento do requisito formal previsto no art. 4º, §2º, da lei de Arbitragem em contratos de franquia -, o Ministro Bellizze sugere interpretação inovadora do dispositivo.
Em síntese, o debate travado e as recentes mudanças legislativas havidas podem servir de ponto de partida para ajudar a repensar a abordagem acerca da aplicação do art. 4º, §2º, da lei de Arbitragem aos contratos de franquia. Urge, portanto, verificar a compatibilidade das categorias dogmáticas subjacentes a esse tema para definir os contornos adequados e proporcionais da arbitragem no contexto dos contratos de franquia
2 FICHTNER, José Antonio; TOLENTINO, Augusto; POLASTRI, Leonardo; SALTON, Rodrigo. Convenção de Arbitragem: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2023, Cap. 16, §60, (3).
3 FICHTNER, José Antonio; TOLENTINO, Augusto; POLASTRI, Leonardo; SALTON, Rodrigo. Convenção de Arbitragem: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2023, Cap. 12, §44, (2).
4 FICHTNER, José Antonio; TOLENTINO, Augusto; POLASTRI, Leonardo; SALTON, Rodrigo. Convenção de Arbitragem: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2023, Cap. 16, §60, (7).
José Antonio Fichtner
Mestre em Direito pela Universidade de Chicago. MBA em Agronegócio pela USP-ESALQ. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Sócio-fundador do escritório Fichtner Advogados.