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Cannabis medicinal no Brasil: desafios da regulamentação federal e garantia de acesso igualitário

A discussão crescente sobre a cannabis medicinal destaca a falta de regulamentação clara no Brasil, limitada atualmente à importação sob prescrição médica; desafios incluem a resistência religiosa e a necessidade de normas mais abrangentes para produção e regulamentação nacional.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Atualizado às 14:28

A discussão sobre a cannabis medicinal tem ganhado relevância nos últimos anos. Este artigo tem como objetivo analisar a legislação atual sobre o tema, destacando os desafios enfrentados na regulamentação federal para assegurar um acesso igualitário à população, considerando não apenas questões legais, mas também enfrentando resistências provenientes do conservadorismo religioso e dos interesses das grandes indústrias farmacêuticas.

A legislação brasileira sobre a cannabis medicinal é bastante reduzida carece de normativa clara, ampla e precisa. Atualmente temos apenas as Resoluções de Diretoria Colegiada - RDC, da ANVISA que basicamente permite a importação de produtos à base de cannabis para uso medicinal, mediante prescrição médica. No entanto, a produção nacional e a regulamentação mais ampla ainda são desafios a serem superados.

A Resolução da Diretoria Colegiada - RDC, da ANVISA 327/19 foi um marco na regulamentação da cannabis medicinal no Brasil. Ela estabeleceu procedimentos para a concessão de Autorização de Funcionamento, Autorização Especial e Certificado de Boas Práticas de Fabricação para empresas que produzem medicamentos à base de cannabis. Além disso, a RDC permitiu a prescrição e a importação desses medicamentos por profissionais de saúde.

No entanto, é crucial que a legislação evolua para contemplar a produção nacional, possibilitando que mais pacientes tenham acesso a tratamentos adequados de forma sustentável.

A ONU e a Organização Mundial da Saúde - OMS, têm desempenhado papéis importantes no cenário global da regulamentação da cannabis medicinal.

Em dezembro de 2020, a ONU retirou a cannabis da lista de drogas mais perigosas, reconhecendo seu potencial terapêutico. Esse movimento reflete uma mudança de paradigma em nível internacional, encorajando os países a considerar abordagens mais progressistas na regulamentação da cannabis.

A OMS, por sua vez, tem destacado em diversos relatórios os benefícios terapêuticos da cannabis, ressaltando sua eficácia no tratamento de condições como epilepsia, dores crônicas e sintomas associados ao câncer. Esse respaldo científico fortalece a posição dos defensores da regulamentação e desafia preconceitos que ainda permeiam a discussão.

Ao observar as experiências de outros países na regulamentação da cannabis medicinal, percebe-se uma tendência de reconhecimento e aceitação gradual. Muitas nações têm adotado abordagens baseadas em evidências científicas, priorizando a saúde pública e a qualidade de vida dos cidadãos.

Essa contextualização internacional pode servir como referência para o Brasil, oferecendo insights sobre as melhores práticas e alertando para possíveis desafios. A colaboração em fóruns internacionais também pode ser benéfica para compartilhar conhecimentos e buscar apoio global na construção de políticas mais inclusivas e eficazes.

O escopo da regulamentação da cannabis e toda sua potencialidade estão muito além da competência da ANVISA. O papel regulatório está nas mãos do Congresso Nacional, onde tramitam diversos projetos de lei tratando da matéria, o mais avançado deles é o PL 399/15, que altera o art. 2º da lei 11.343/06 que visa viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham cannabis em sua formulação, entretanto, este encontra-se parado aguardando deliberação de Recurso na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados desde 17/11/21.

Um dos principais desafios é estabelecer normas claras para a produção interna de medicamentos à base de cannabis. A indefinição gera insegurança jurídica e dificulta a ampliação do acesso. A atuação de órgãos governamentais, aliada à participação de profissionais da saúde e especialistas em legislação, torna-se crucial para desenvolver uma regulamentação robusta e abrangente. É preciso regulamentar, mas não é qualquer texto de lei. Ele precisa ser abrangente, responsável, cuidadoso para não estabelecer critério que inviabilizem a exploração dessa planta no Brasil e seja mais uma letra morta nas prateleiras das bibliotecas.

Garantir o acesso igualitário é uma questão central. É preciso evitar que a cannabis medicinal se torne um privilégio apenas para uma parcela da sociedade, como de fato acontece hoje. A criação de políticas públicas inclusivas, considerando diferentes realidades socioeconômicas, é fundamental para assegurar que todos que necessitam tenham acesso a tratamentos eficazes. Para tanto, é necessário assegurar que o SUS tenha em sua rede, profissionais com conhecimento sobre as aplicabilidades e potencialidades das terapias com cannabis. Que os remédios e insumos estejam disponíveis a todos que dele necessitem a um custo mínimo. As farmácias vivas se multipliquem e possam incorporar o cultivo da cannabis como planta medicinal, que de fato é.

Outro ponto é conservadorismo religioso que muitas vezes se manifesta como um entrave à regulamentação da cannabis medicinal. Abordar a questão sob uma perspectiva científica e médica, desvinculando-a de preconceitos morais, é essencial. O diálogo aberto com representantes religiosos, visando esclarecer os benefícios terapêuticos, pode contribuir para superar essas resistências. Quando defendemos um estado laico, significa que as decisões que afetam diretamente a população não sejam tomadas a partir de viés religioso, seja qual for a religião. A ciência não deve e não pode nunca sucumbir aos dogmas religiosos.

Não menos importante e significativo é a influência das grandes indústrias farmacêuticas, que muitas vezes veem na cannabis medicinal uma concorrência potencial. É necessário um equilíbrio entre a regulação para garantir a qualidade dos produtos e a promoção de um mercado que permita a participação de diferentes produtores, incluindo cooperativas e pequenos empreendedores. Há espaço para todos, não podemos ficar reféns de uma indústria que controla o que, quando e como tratar baseado apenas na lucratividade. Temos potencial de produção interna gigantesco, do plantio ao produto final. O Brasil precisa sair do estigma de colônia explorada e assumir seu papel no mundo globalizado, onde as riquezas de nossa terra e seu potencial produtivo ainda se destacam.

Em um contexto de avanços sociais e científicos, a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil enfrenta desafios multifacetados. Superar as resistências do conservadorismo religioso e lidar com os interesses das grandes indústrias farmacêuticas exigirá esforços conjuntos do poder público, profissionais da saúde, e a sociedade civil. Ao final, a busca por uma regulamentação eficiente e inclusiva é crucial para garantir o acesso igualitário a tratamentos que podem significar melhorias significativas na qualidade de vida da população.

A regulamentação da cannabis medicinal no Brasil deve ser guiada não apenas pelas demandas internas, mas também pelos avanços e consensos alcançados em âmbito global. O respaldo da ONU e da OMS fortalece a fundamentação científica por trás dessa discussão, enquanto a experiência de outros países oferece lições valiosas. Ao incorporar essas perspectivas, o Brasil pode caminhar rumo a uma regulamentação mais abrangente, assegurando que os benefícios terapêuticos da cannabis sejam acessíveis a todos que deles necessitam.

Vladimir Saboia

Vladimir Saboia

Advogado especialista na área.

Vilma Leal de Mello Seljan

Vilma Leal de Mello Seljan

Advogada. Especialista em Direito Público pela Universidade Gama Filho RJ. Pós graduada em Direito, Processo do Trabalho e Previdenciário pela Universidade Cândido Mendes RJ. Membro da Comissão do setor do Direito da Cannabis Medicinal da OAB-RJ. e Presidente da Comissão de Direito da Cannabis Medicinal da OAB Petrópolis.

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