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O princípio da dialeticidade em matéria criminal

A mera reiteração de argumentos pretéritos, sem o acréscimo de argumentos novos que visam infirmar a decisão mais nova do processo é um vício de procedimento que inviabiliza o conhecimento da petição recursal.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:58

A dialeticidade em matéria criminal pode ser interpretada como a obrigatoriedade que o recorrente tem de fundamentar a sua peça recursal com argumentos que demonstrem ao julgador que a impugnação foi produzida contra a última decisão judicial, e especificamente contra um argumento judicial contemporâneo.

Ou seja, a mera reiteração de argumentos pretéritos, sem o acréscimo de argumentos novos que visam infirmar a decisão mais nova do processo é um vício de procedimento que inviabiliza o conhecimento da petição recursal. 

No julgamento do AgRg no AREsp n. 1.941.517/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/2/22, DJe de 3/3/22, onde foi interposto agravo regimental contra decisão da Presidência do STJ que não conheceu do recurso especial, por não haver o agravante impugnado especificamente todos os fundamentos do decisum proferido pelo Tribunal a quo, foi constatado vício de procedimento na petição recursal, uma vez que o recorrente utilizou os mesmos argumentos contidos no agravo em recurso especial para contestar a decisão monocrática da Presidência do STJ, ou seja, reiterou os argumentos que infirmavam a decisão do Tribunal a quo para contestar a decisão mais recente do processo, o que inviabilizou o conhecimento do pedido em razão da violação ao princípio da dialeticidade:

É inviável o agravo regimental que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão impugnada, por ser essa condição necessária à admissibilidade de qualquer recurso, conforme entendimento firmado pela Corte Especial.

O princípio da dialeticidade impõe à parte a demonstração específica do desacerto das razões lançadas no decisum atacado, sob pena de não conhecimento do recurso. Não são suficientes, para tanto, alegações genéricas ou a repetição dos termos do recurso interposto.

Portanto, de acordo com esse exemplo, para que o agravo regimental fosse conhecido pelo Relator do caso no STJ, e tivesse o mérito analisado pela Turma, o recorrente deveria ter impugnado os argumentos contidos na decisão da Presidência do STJ, uma vez que os fundamentos da petição interposta contra a decisão que não conheceu do recurso especial estavam preclusos por ocasião da primeira decisão produzida pela Presidência do STJ.

Em linhas gerais, a obrigatoriedade que o magistrado tem de fundamentar a sua decisão judicial deve ser estendida ao recorrente, uma vez que, por coerência, o duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional que viabiliza a revisão de uma decisão judicial anterior, e não seria coerente que o tribunal ad quem fundamentasse a nova decisão com base nos mesmos fundamentos apresentados no tribunal a quo.

Portanto, de acordo com o princípio da dialeticidade, é dever do recorrente atacar especificamente a decisão mais recente do processo. Caso contrário, haverá vício procedimental que inviabilizará o conhecimento do recurso.

Por exemplo, se o Tribunal a quo negou a admissibilidade do recurso especial com base na aplicação da súmula 83 do STJ, pois entendeu que a jurisprudência do STJ admite que a Polícia tem poder de solicitar diretamente ao COAF relatórios de inteligência financeira do investigado, é obrigação do recorrente demonstrar que a jurisprudência utilizada na decisão recorrida está desatualizada ou não se aplica no caso em análise, de modo a comprovar que a atual jurisprudência da Corte passou a exigir autorização judicial para que os RIF sejam introduzidos na investigação.

É importante destacar que o artigo 654, §2º, do CPP autoriza que os tribunais concedam de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo for constatado coação ilegal detectável sem esforço argumentativo do magistrado. Isso não quer dizer que a relativa informalidade da ação constitucional de habeas corpus dispense a obrigatoriedade que o impetrante tem de impugnar especificamente a última decisão judicial do processo, com elementos capazes de comprovar o desacerto ou a arbitrariedade da decisão recorrida.

No julgamento do AgRg no HC n. 766.325/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 13/2/23, DJe de 15/2/23, foi desprovido o agravo regimental interposto contra decisão monocrática em habeas corpus que deixou de refutar especificamente as razões lançadas na decisão recorrida:

A informalidade do remédio constitucional não serve para banalizar o importante instrumento de garantia da liberdade. A parte não pode pedir a reforma de julgados sem explicitar o seu erro (princípio da dialeticidade) e saber pedir é tão importante quanto ser atendido, pois o julgador está atrelado ao pleito formulado.

Em outro caso julgado pelo STJ, o princípio da dialeticidade foi relativizado, pois o Relator do caso, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, detectou, sem esforço argumentativo, flagrante ilegalidade na decisão recorrida, uma vez que os critérios utilizados na fixação da reprimenda-base do jurisdicionado não correspondiam com o entendimento mais recente do STJ. Isto é, o recurso não foi conhecido em razão da inobservância ao princípio da dialeticidade, mas foi concedida ordem de habeas corpus de ofício para retificar os critérios utilizados na decisão recorrida que se valeu de interpretação jurisprudencial desatualizada na fixação da pena-base:

No entanto, compulsando o acórdão vergastado, verifica-se a existência de flagrante ilegalidade, detectável primo ictu oculi. A Terceira Seção desta Corte, por ocasião do julgamento do REsp 1.887.511/SP (relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Seção, julgado em 9/6/21, DJe de 1/7/21), definiu que a quantidade de substância entorpecente e a sua natureza hão de ser consideradas na fixação da pena-base, nos termos do art. 42 da lei 11.343/06, não sendo, portanto, pressuposto para a incidência da causa especial de diminuição de pena descrita no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06. Posteriormente, o referido colegiado aperfeiçoou o entendimento anteriormente exarado por ocasião do julgamento do REsp 1.887.511/SP, passando a adotar o posicionamento segundo o qual a quantidade e a natureza da droga apreendida podem servir de fundamento para a majoração da pena-base ou para a modulação da fração da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06, desde que, neste último caso, não tenham sido utilizadas na primeira fase da dosimetria.

Na hipótese vertente, trata-se de réu primário, possuidor de bons antecedentes, que não se dedica a atividades delitivas e não pertence a organização criminosa, segundo se depreende do acórdão recorrido, sem olvidar que a quantidade de droga apreendida foi utilizada para majorar a pena-base.

Agravo regimental desprovido. Ordem concedida de ofício. (AgRg no AREsp 2.412.596/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 17/10/23, DJe de 23/10/23.)

Aliás, de acordo com a lógica do processo judicial, onde o Tribunal ad quem revisa a última decisão prolatada pelo Tribunal a quo, se a instância ordinária não se manifestou a respeito de tese levado ao conhecimento do Tribunal Superior, é vedado que o recorrente promova inovação recursal, ou seja, é proibido que eventuais matérias não apreciadas pelo Tribunal de origem sejam analisadas pelo Tribunal ad quem, sob pena de supressão de instância e de violação dos princípios do duplo grau de jurisdição e do devido processo legal.

No âmbito do agravo regimental, não se admite que a Parte amplie objetivamente as causas de pedir e os pedidos formulados na petição inicial ou no recurso. A tese de aplicação de medidas cautelares diversas da prisão trata-se de indevida inovação recursal.

Agravo regimental não conhecido. (RCD no HC n. 816.978/SC, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 11/9/23, DJe de 14/9/23.)

Portanto, ainda que o magistrado possa conceder de ofício ordem de habeas corpus, trata-se de estratégia técnica arriscada, pois a inobservância ao princípio da dialeticidade pode levar ao não conhecimento do recurso, inviabilizando a análise do mérito recursal.

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Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015.

Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941.

AgRg no AREsp n. 1.941.517/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/2/22, DJe de 3/3/22.

AgRg no AREsp n. 2.253.769/PR, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/8/23, DJe de 18/8/23.

AgRg no HC n. 766.325/SP, relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 13/2/23, DJe de 15/2/23.

AgRg no AREsp n. 2.412.596/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 17/10/23, DJe de 23/10/23.

AgRg no HC n. 809.390/MG, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 8/5/23, DJe de 16/5/23.

AgRg no AREsp n. 2.309.916/SP, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 27/6/23, DJe de 3/7/23.

AgRg nos EDcl no HC n. 756.896/PR, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 17/4/23, DJe de 19/4/23.

AgRg no HC n. 787.282/RJ, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 7/2/23, DJe de 22/2/23.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

VIP Ricardo Henrique Araujo Pinheiro

Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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