Por que o Papa tem se interessado tanto por governança corporativa?
O interesse do Papa na governança corporativa trouxe frutos positivos.
sexta-feira, 15 de dezembro de 2023
Atualizado às 16:21
Todos nós sabemos que a Igreja Católica é uma entidade religiosa sem fins lucrativos, mas que também acumulou posses ao longo de sua secular existência. Portanto, assim como qualquer outra entidade privada, buscou organizar suas finanças, bens e atividades, através da criação de diversas entidades, cada qual com sua estrutura e finalidade específica.
Como exemplo, encontramos o Banco do Vaticano (Instituto per le Opere di Religione), que gere aproximadamente EUR 5,2 bilhões e possui EUR 578 milhões de patrimônio líquido1. Administrar estes recursos requer cuidados e não é diferente de uma administração privada, devendo ser organizada e estruturada, buscando-se a sua preservação ao longo do tempo.
Apesar de vinculado a uma entidade sem fins lucrativos, o Banco do Vaticano deve investir seus recursos visando não só a perenidade dos recursos da Igreja Católica, mas também assegurar que seus investimentos estejam alinhados com os valores por ela defendidos.
O desafio do Papa, principal responsável por estabelecer as diretrizes do banco, é assegurar que toda a organização compartilhe esses valores e os aplique no seu dia a dia.
Foi com esse intuito que em 19 julho de 2022, a Santa Sé estabeleceu sua Política de Investimento2, determinando que todos os investimentos deveriam seguir sua política, de forma a contribuir de forma sustentável para o financiamento de suas atividades, respeitando os seus valores defendidos pela Igreja.
Alguns anos antes, a falta de política e controles, permitiram um investimento de EUR350 milhões na aquisição financiada de um imóvel em Londres, que resultou em prejuízos para a Igreja.
As políticas possuem um papel fundamental neste alinhamento de interesses. Elas funcionam como um norte para todos que participam da organização, especialmente em momentos mais difíceis.
Outro caso que levou o Papa a repensar na governança corporativa foi em 22 de novembro de 2022, quando assinou um decreto destituindo toda a liderança da Caritas Internationalis3, uma confederação de mais de 160 organizações católicas de auxílio e serviços sociais, com presença em mais de 200 países. O motivo? A má governança na entidade.
O gabinete do Desenvolvimento, responsável por supervisionar a Caritas Internationalis, em uma revisão do ambiente de trabalho feita por psicólogos externos e especialistas em gestão, identificou a existência de más práticas de gestão e de uma atmosfera tóxica no ambiente de trabalho.
Segundo informações do próprio gabinete do Desenvolvimento, foram encontradas deficiências na gestão e nos procedimentos adotados, que prejudicavam seriamente o espírito de equipe e sua a moral, com casos de favoritismo, abusos verbais, e falhas de gestão.
Como vemos, assim como na Igreja Católica, existem inúmeros desafios, que são enfrentados pelas mais diversas organizações, para bem implementar, monitorar e corrigir práticas de governança corporativa. Este enfrentamento é crucial para que as decisões de gestão e as ações praticadas no dia-a-dia estejam mais alinhadas e aderentes aos propósitos e cultura organizacional.
A geração de "valor" organizacional, no longo prazo, jamais poderá prescindir da definição de propósitos, de cultura, de práticas sustentáveis, do uso de ferramentas internas de monitoramento e controle, que vão muito além da simples geração de riquezas. Isto ocorre porque já compreendemos, à luz das experiências acumuladas, que o resultado financeiro não é o único medidor de sucesso da organização.
Fatalmente, organizações com inclinações "mercenárias", as quais visam ao retorno financeiro puro e simples, em detrimento da ética e da coesão com valores intangíveis de longo prazo, tendem a experimentar graves crises reputacionais, além dos óbvios prejuízos materiais.
A ética comportamental é essencial para a governança do atual milênio.
Nesta linha e diante das evidências, o Papa destituiu seus gestores e solicitou que a nova liderança fosse responsável por criar um ambiente saudável dentro da organização, alinhados com os valores e princípios da Igreja.
Novamente, o alinhamento dos interesses organizacionais e a existência de políticas e procedimentos claros são fundamentais para a construção de uma cultura que privilegie a geração de valor no longo prazo, portanto, mais sustentável.
No entanto, criar códigos e políticas não é suficiente para a construção de uma identidade corporativa mais sustentável. As políticas devem se manter "vivas", serem revisadas periodicamente e adaptadas com o passar do tempo, alcançando toda a organização.
Somados aos códigos e políticas, os treinamentos, internos e externos, reforçam, entre os funcionários, a ideia das condutas esperadas, revigoram os compromissos com os princípios e mantém viva a cultura organizacional.
Por fim, as auditorias de aderência são fundamentais para verificar se as políticas estão sendo seguidas, se os funcionários possuem conhecimento dos valores da organização e se estão alinhados com eles.
Assim, com esse conjunto de medidas, é possível estimular a criação e desenvolver continuamente um ambiente propício à formação de uma cultura corporativa forte, regada pelas boas práticas de governança corporativa.
No caso do Vaticano, o interesse do Papa na governança corporativa trouxe frutos positivos. Ele estabeleceu políticas de investimentos para o Banco do Vaticano e ajustou a liderança no caso da Caritas Internationalis. Este último caso é prova de que a tentação das más práticas ronda qualquer organização, mas a boa governança é ainda a melhor salvação para a perpetuidade de seu negócio.
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1 - Annual Report 2022, Instituto per le Opere di Religione, disponível em https://www.ior.va/content/ior/en/media/annual-report/annual-report-2022.html, acesso em 13 de outubro de 2023.
2 - Comunicado da Secretaria Econômica do Vaticano em 19 de julho de 2022, disponível em https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2022/07/19/0542/01099.html, acesso em 13 de outubro de 2023.
3 - Decreto relativo a Caritas Internacionalis, disponível em https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2022/11/22/0870/01815.html, acesso em 13 de outubro de 2023.