É possível vermos na prática uma combinação da lei 8.666/93 com a lei 14.133/21?
A Nova Lei Geral de Licitações veda a combinação com a lei 8.666/93, estabelecendo uma transição clara. No entanto, dados indicam que a maioria dos contratos, embora regidos pela NLGLC, foram planejados inicialmente sob a lei antiga, gerando possíveis lacunas na aplicação de requisitos como o estudo técnico preliminar.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023
Atualizado às 14:07
O art. 191 da Nova Lei Geral de Licitações e Contratos - NLGLC é muito claro ao expressamente vedar a aplicação combinada dos seus dispositivos com os da lei 8.666/1993 em licitações e contratos.
O artigo anterior da lei 14.133/21, o 190, inclusive traçou uma linha temporal igualmente clara para marcar a incidência do antigo regime ou do novo marco legal das licitações e contratos uma vez que prevê que "o contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada".
Mas, sejamos honestos, considerando que, conforme apurado pelo TCU (vide acórdão 2154/23 proferido pelo plenário nos autos do Processo TC 027.907/2022-8), de 196.136 processos de licitação feitos através da plataforma de Compras do Governo Federal (Compras.gov.br) entre agosto de 2021 e julho de 2023, apenas 3,1% (6.127 licitações) foram baseados na lei 14.133/21 o mais provável é que, na prática, pelo menos inicialmente, tenhamos contratos regidos pela NLGLC mas que foram completamente planejados sob o regime da lei 8.666/93, sendo desprovidos, por exemplo de estudo técnico preliminar - ETP.
E, no caso do ETP, que a NLGLC insere não só na fase preparatória das licitações, como também nas contratações diretas, vamos a um caso prático: imaginando que estamos no início da aplicação da lei 14.133/21, o que fazer quando é preciso licitar ou empreender uma contratação direta mas o procedimento interno até então realizado foi todo tocado com base na lei 8.666/93 que não previa a necessidade de realização de estudo técnico preliminar?
Aplicando-se literalmente o disposto no art. 191 da lei 14.133/21 não haveria o que fazer: tudo aquilo que foi preparado com base na lei 8.666/93, a partir do final do período de opção previsto no art. 193 da NLGLC, não pode ser aproveitado, sob pena de combinação indevida de procedimentos regidos por regimes jurídicos distintos.
Mas, questiona-se: e quando a não realização da licitação e da contratação direta sem ETP redundar em prejuízo ao interesse público tal raciocínio seria razoável?
Nos parece que não.
De início, registre-se que o capítulo I do título II da lei 14.133/21 faz menção ao processo licitatório e, sendo um processo, mesmo que administrativo, aplicam-se a ele os dispositivos do CPC.
E o que preleciona o CPC?
Em seu art. 15, a lei 13.105/15 estabelece que, "na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente".
Já em seus arts. 188 e 277, o Código Adjetivo Civil consigna expressamente que "os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial" e que "quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade".
Como os arts. 188 e 277 do CPC instrumentalizam normativamente o princípio do aproveitamento dos atos processuais e como o art. 15 daquela mesma norma autoriza que tais dispositivos sejam aplicados aos processos licitatórios, teríamos, no nosso hipotético exemplo de uma licitação/contratação direta gestada interna corporis pela Administração Pública sob os auspícios da lei 8.666/93 e, portanto, sem ETP, a possibilidade de o contrato daí resultante, mesmo que regido pela lei 14.133/21 ser considerado válido.
Mas veja, sequer se faz necessário conformar-se apenas com o CPC para buscar uma solução para o problema alhures proposto, pois a própria NLGLC traz instrumentos hábeis para equacionar a questão.
Nesse particular, não podemos esquecer que o art. 5º da lei 14.133/21 estabelece que as disposições da LINDB incidem sobre as licitações e contratos. De modo que, de tal forma, os arts. 21 caput e parágrafo único e 26, com suas diretrizes sobre consequencialismo e consensualismo, certamente podem ter os mesmos efeitos dos arts. 188 e 277 do CPC.
Mas, nada se compara em termos de assertividade ao disposto no art. 147 da NLGLC que dispõe que "constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público".
Assim, motivos não faltam para excepcionalmente se permitir, notadamente no início efetivo e em larga escala da aplicação da lei 14.133/21, a combinação de procedimentos regidos por regimes jurídicos distintos (no caso a lei 8.666/93 e a NLGLC) sempre que tal medida for indispensável para atender o interesse público.