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Da natureza anulatória da ação prevista no artigo 966 do CPC, equivocadamente disciplinada como rescisória

No presente texto pretendemos demonstrar que a ação prevista no artigo 966 do CPC tem natureza anulatória, e não rescisória, como equivocadamente prevista em lei, pois todos os vícios enumerados na referida norma legal geram a nulidade da decisão e a formação da coisa julgada não tem o poder de alterar a natureza do vício nem da decisão que o pronuncia.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:33

Gostaríamos de fazer uma análise crítica da norma escrita no caput do artigo 966 do CPC, que usa o vocábulo rescindida e não anulada, para a ação ajuizada após a formação da coisa julgada e que se fundamenta nos vícios enumerados nos oito incisos do referido texto legal. Acreditamos que há um erro legal, pois na ação judicial fundada nos vícios listados no artigo 966 do CPC busca-se a anulação do ato judicial e não a sua rescisão.

Nossa afirmação baseia-se em três argumentos: a) os atos jurídicos processuais, que têm natureza pública, não são rescindíveis; b) todos os vícios listados no artigo 966 do CPC dizem respeito à nulidade do ato processual, que deve ser pronunciada por decisão de natureza anulatória, não rescisória; e c) a formação da coisa julgada não tem o poder de alterar a natureza do vício nem da decisão que o pronuncia. Vejamos.

Primeiro. Os atos jurídicos processuais, que têm natureza pública, não são rescindíveis. Apenas os negócios jurídicos bilaterais são rescindíveis: um contrato de casamento, um contrato de locação, ou ainda um contrato de trabalho, são rescindíveis, mas não o ato jurídico processual, que é apenas anulável.

Segundo. Todos os vícios enumerados no artigo 966 do CPC dizem respeito à validade do ato jurídico processual, que deve ser objeto de decisão anulatória, não rescisória. Lembrando que os atos processuais são de direito público, valemo-nos das lições do administrativista Ricardo Marcondes Martins, que em seu livro denominado Efeitos dos Vícios do Ato Administrativo, ao discorrer sobre o ato jurídico, reconhece que este pode ser analisado sob três perspectivas diferentes: a) existência, b) validade e c) eficácia (ob. cit., cap. V).

Todos os vícios processuais enumerados no artigo 966 do CPC dizem respeito à validade dos atos processuais. Nenhum dos vícos listados na referida norma legal refere-se à existência ou eficácia do ato jurídico, mas apenas à sua validade. Ora, a validade dos atos processuais deve ser objeto de decisão anulatória, e não de ação rescisória.

Nas hipóteses do inciso I, do artigo 966 do CPC, o objeto da decisão é a invalidade/nulidade do ato jurisdicional praticado por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz. Se o vício for verificado, a decisão judicial atacada será anulada, não rescindida.

O mesmo ocorre na hipótese de incompetência absoluta do juízo ou o impedimento do juiz, prevista no inciso II, do artigo 966 do CPC. O objeto desta decisão não será a rescisão da decisão transitada em julgado, mas a declaração da incompetência do juízo ou o impedimento do juiz e a consequente anulação dos atos decisórios por estes praticados.

Quando a decisão resultar de dolo, coação, simulação ou colusão, a fim de fraudar a lei (art. 966, incisos III do CPC), o mérito da ação na qual se busca a declaração dos vícios é a anulação da decisão judicial viciada, porque o ato judicial foi praticado em desconformidade com a lei.

O mesmo sucede com as decisões que ofendem a coisa julgada, violam manifestamente a norma jurídica, forem fundadas em prova falsa, prova nova ou erro de fato (art. 966, incisos IV, V, VI, VII e VIII do CPC). Em todas essas situações, a decisão judicial que reconhece o vício tem natureza anulatória, pois se busca o reconhecimento da nulidade, em decorrência dos vícios supracitados.

O Código de Processo Civil, ao disciplinar as nulidades, no Título III, do Livro IV, da Parte Geral, em momento nenhum fala de rescisão do ato processual viciado, mas sempre se refere à sua invalidade/nulidade, que deve ser objeto de decisão anulatória. O artigo 281 confirma a natureza anulatória da decisão que pronuncia a nulidade ao usar a expressão "anulado o ato".  O artigo 282, da mesma forma, diz que o juiz pronuncia a nulidade do ato. O artigo 283 discorre sobre "anulação dos atos". Percebe-se, pois, a natureza anulatória da decisão que reconhece o vício processual. Em momento nenhum a lei fala em rescisão do ato processual viciado.

Está claro, pois, que antes do trânsito em julgado, o ato jurídico processual viciado padece de nulidade, que deve ser pronunciada por decisão anulatória, jamais rescisória.

Terceiro. A formação da coisa julgada não tem o poder de alterar a natureza do vício processual nem da decisão que o pronuncia. Os vícios elencados no art. 966 do CPC, quando fundamentam recurso de apelação, produzem a anulação da sentença. Por exemplo. "A" ajuíza uma ação contra "B", a qual é julgada improcedente. O autor, então, apela pedindo a nulidade da sentença, por corrupção do juiz. Se o recurso for acolhido, a sentença será anulada e não rescindida. Por que, então, quando os mesmos vícios são usados para fundamentar a ação proposta após o trânsito em julgado da decisão judicial atacada, eles sofrem uma metamorfose e tornam a decisão rescindível? Não há uma explicação lógica!

A doutrina nacional, baseada no equívoco legal do caput do art. 966 - ao dizer que a decisão de mérito transitada em julgado será rescindida e não anulada - estabeleceu que a formação da coisa julgada tenha o poder de transformar a natureza da decisão que reconhece a nulidade, de anulatória para rescisória. A ilustre processualista Teresa Arruda Alvim, em sua magistral obra denominada Nulidades do Processo e da Sentença, RT: São Paulo, 2022, 13ª ed. págs 224/225 assevera: "mas, no caso de processos nulos ou sentenças nulas, forma-se a coisa julgada e a sentença passa a ser rescindível. (O itálico não consta no original) Às págs 428/429 da referida obra, explica a prestigiada autora que as decisões rescindíveis são aquelas que já estão acobertadas pela autoridade da coisa julgada: "São rescindíveis as decisões de mérito (...) sobre as quais pese autoridade de coisa julgada, desde que se configure uma das hipóteses do art. 966 e que a citação ou o despacho que a ordena tenham lugar dentro do prazo da rescisória." (o itálico não conta no original).

A afirmação da  aludida estudiosa está plenamente de acordo com a doutrina dominante, que se baseia no equívoco constante no caput do art. 966 do CPC, ao asseverar que a decisão de mérito transitada em julgado, maculada de vícios de nulidade, será rescindida. Pensamos que a lei e a doutrina precisam ser revistas, pois a natureza do vício e da decisão que reconhece os vícios enumerados no art. 966 do CPC é anulatória, na medida em que a formação da coisa julgada não tem o poder de alterar a natureza do vício do processo - de nulo para rescindível -, nem da decisão que o reconhece, transformando-a de anulatória para rescisória.

A coisa julgada é uma nova situação jurídica processual, decorrente do trânsito em julgado da decisão, que a torna imutável e indiscutível (art. 502 do CPC). Sua formação, por si só, não tem o poder de mudar a natureza do vício processual, nem da decisão que o reconhece. A nulidade e a decisão que a pronuncia têm a mesma natureza, antes e depois da formação da coisa julgada.

É evidente o equivoco do legislador, no caput do art. 966 do CPC, ao dizer que a decisão de mérito transitada em julgado será rescindida. Na verdade, a decisão de mérito transitada em julgado será anulada, tendo em vista que todos os vícios elencados nos referidos incisos dizem respeito à validade do ato processual, antes e depois da coisa julgada.

Precisamos fazer uma observação final, a fim de profligar parte da doutrina que afirma que o objeto da chamada ação rescisória é a rescisão da coisa julgada. Essa posição é equivocada por dois motivos. Primeiro, porque a própria lei, no caput do art. 966 do CPC, diz que a rescisão é da decisão de mérito, e não da coisa julgada. Segundo, porque a coisa julgada não é um negócio jurídico, para ser rescindido. A coisa julgada é, na verdade, uma situação jurídica decorrente do trânsito em julgado da decisão judicial. Assim, a ação do art. 966 irá anular a decisão viciada e, como consequência, o trânsito em julgado e a coisa julgada deixarão de existir, simplesmene porque não há mais uma decisão para transitar em julgado ou para ser acobertada com a autoridade da coisa julgada.

Concluímos, pois, que a verdadeira natureza da ação prevista no artigo 966 do CPC é anulatória, pois tem como fundamento vícios que maculam de nulidade os atos judiciais, os quais devem ser pronunciados por decisões anulatórias, e a formação da coisa julgada não interfere na natureza do vício nem da decisão que o pronuncia.

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ALVIM, Teresa Arruda, Nulidades do processo e da sentença. São Paulo: RT, 2022, 11ª ed.

MARTINS, Ricardo Marcondes, Efeitos dos Vícios do Ato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008,

MOREIRA, José Carlos Barbosa, Comentários ao Código de Processo Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. vol. V

PASSOS, J. J. Calmon, Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002

YARSHELL, Flávio Luiz. Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório. São Paulo: Malheiros, 2005.

Luiz Eduardo Ribeiro Mourão

Luiz Eduardo Ribeiro Mourão

Especialista em Direito Processual pela USP, mestre e doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP e pós-doutor em Direito Processual Civil pela UFES. Advogado.

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