Antecipação de recebíveis futuros, um caso controvertido
O texto explora casos controvertidos na justiça, como a antecipação de recebíveis atuais e futuros, evidenciando divergências de interpretação em decisões judiciais, como constatado em pesquisa da Teixeira Fortes Advogados sobre acórdãos do TJ/SP e um julgamento do STJ.
quarta-feira, 6 de dezembro de 2023
Atualizado às 14:55
"As organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa." (Willian Lazier)
Herbert L. A. Hart e Ronald Dworkin, nos seus livros de Teoria Geral do Direito, polemizam sobre a solução dos casos difíceis, isto é, aqueles em que o direito não tem nenhuma resposta (Dworkin) e os que estão numa zona de penumbra de incerteza (Hart).
Casos difíceis podem transformar-se em casos controvertidos, isto é, aqueles em que o juiz se depara com interpretações díspares de juristas de nomeada e decisões conflitantes, proferidas por egrégios tribunais de Justiça.
A antecipação de recebíveis atuais foi um caso controvertido; a de recebíveis futuros continua a sê-lo na doutrina e na jurisprudência, conforme é de domínio público e constatou criteriosa pesquisa, realizada por Teixeira Fortes Advogados: de 30 acórdãos do TJ/SP, lavrados entre 2.014 e 2.022, 16, a excluíram da recuperação judicial; 14, adotaram orientação contrária, não tendo o julgamento do AgInt. no REsp 1.932.780-SP, da Terceira Turma do STJ, posto fim ao dissídio jurisprudencial.
O conflito de opiniões e julgados sobre o tema - que se arrasta desde 2.005 - suscita duas indagações:
- se as causas da antecipação e da securitização de recebíveis são idênticas para a fiduciante e a securitizada (capitalizarem-se) e idênticas, as finalidades (obter lucros com minimização dos riscos), por que ambas não estão excluídas dos efeitos da recuperação judicial?
- diante do fato incontestável de os clássicos métodos de interpretação da lei - filológico, lógico, sistemático e teleológico - não terem extinguido o dissenso, o que cumpre ao juiz fazer?
A resposta à primeira é simples: a antecipação de recebíveis é uma cessão condicional, limitada, resolúvel; a securitização, uma cessão pura e simples, definitiva, irrevogável, irretratável, irreversível.
A segunda, exige breve digressão.
Para cumprir a missão de fazer Justiça às partes, o juiz deve:
- atentar para a advertência de Georges Ripert: "(.) quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito" (apud Guilherme Mendes Resende, in "Direito e Economia nos julgamentos do Supremo", Valor Econômico, 21.11.2.023, p. E2);
- "mergulhar" no cotidiano das empresas;
- considerar as vantagens econômicas e competitivas inerentes a esse expedito mecanismo de capitalização;
- adotar uma abordagem pragmática, instrumental e empírica do caso (Richard A. Posner) e valer-se, em seu raciocínio, da análise econômica do direito;
- agir com judiciosa discricionariedade,
- ponderar, sopesar, os efeitos práticos de sua decisão e
- ter em mente os seguintes postulados:
Primeiro: enquanto permanecerem contabilizados no "contas a receber", os recebíveis só servem para a aferição do rating score de crédito das empresas.
Isso, contudo, não basta; para quem quer, antes e acima de tudo, manter-se em atividade e, depois e sempre, expandir-se, é imprescindível monetizá-los.
Segundo: a conversão antecipada de recebíveis atuais e futuros em recursos financeiros disponíveis é o meio mais simples, rápido, barato e eficaz de prover o caixa com dinheiro novo (as mais das vezes, a transferência é instantânea - um toque de uma única tecla do computador).
Terceiro: a operação (a) é realizada com celeridade (sem a tirania do aparelho burocrático), por vezes sem garantias (dependo do rating do devedor) e a custos reduzidos (menores taxas de juros); (b) fortalece o capital de giro, estrutura o fluxo de caixa e melhora os indicadores de liquidez; (c) torna as empresas mais eficientes, prósperas e resilientes.
Quarto: com dinheiro em conta corrente e aplicações financeiras disponíveis, as empresas têm reais possibilidades de (a) negociar condições diferenciadas com fornecedores de bens e serviços e bancos e instituições não financeiras; (b) rivalizar com as concorrentes; (c) enfrentar a ameaça de produtos substitutos.
Quinto: se, como ensina o Professor de Negócios na Stanford University's Law Scholl, Willian Lazier, "as organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa", é imperioso estimular a transformação de recebíveis em dinheiro para ser usado a todo e qualquer momento para o que "der e vier".
Sexto: julgamentos contrários ao fiduciário, (a) vão acirrar a discussão sobre "subsídios cruzados" nas operações com recebíveis de cartão de crédito; (b) elevar os juros do rotativo; (c) inibir o crescimento do florescente mercado de special situations, "classe de ativos que representou cerca de 25% do capital privado disponível para investimento em 2.022" (Valor, ed. 5.859); (d) impor a utilização em grande escala da chamada "proteção contratual", isto é, de cláusulas que restringem a liberdade de gestão (convenants) e formalizam a constituição de garantias reais e pessoais para prevenir perdas por inadimplência do devedor.
Sétimo: a antecipação de recebíveis, contratadas vezes sem conta em todos os cantos do país, beneficia, direta e indiretamente, empresas, sócios/acionistas, empregados, prestadores de serviços, credores, consumidores, a coletividade, municípios, estados e a União Federal.
Oitavo: o STF escudou-se no pragmatismo jurídico para resolver casos controvertidos, i.e., descriminalização do aborto; união homoafetiva; registro civil para transgêneros; equiparação entre injúria racial e racismo; porte de maconha; lei da ficha limpa.
Nono: O STF tem aplicado, em seus julgamentos, ano após ano, a análise econômica do direito, conforme restou patente da "obra de 2.021, do juiz federal Guilherme Caon", segundo esclarece Guilherme Mendes Resende, assessor especial da presidência do STF e economista-chefe do CADE entre 2.016 e 2.023, verbis: "(.) É digno de nota os avanços do diálogo entre Direito e Economia nas decisões da referida Corte (.) entre 1.991 a 2.014, foram identificados 20 julgamentos em que houve a utilização de fundamentos econômicos, não havendo, em regra, uma adesão explícita à análise econômica do Direito. Já entre 2.015 a 2.019, um período de apenas cinco anos, foram encontrados 19 julgados em que o STF utilizou argumentos econômicos" (artigo do Valor Econômico citado).
Ciente da importância da antecipação de recebíveis futuros para o mercado de bens e serviços e o mercado financeiro e de capitais, consciente dos efeitos econômicos e sociais que a sua sentença produzirá e no exercício responsável do poder discricionário que a lei lhe confere, o juiz deve decidir que a antecipação de recebíveis futuros, ou não performados, ou a performar, não se submete aos efeitos da recuperação judicial da fiduciante.