MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Auto cultivo de maconha: direito mínimo individual e arma contra o narcotráfico

Auto cultivo de maconha: direito mínimo individual e arma contra o narcotráfico

O cultivo pessoal de maconha para consumo pode levar a penas socioeducativas ou até 15 anos de prisão, dependendo da interpretação e contexto do caso, impactando mais frequentemente pessoas pobres e negras. Além de garantir qualidade e ser uma estratégia contra o narcotráfico, os tribunais estão mais sensíveis à falha na política de drogas.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Atualizado às 14:56

Qual crime cometeu o cidadão que jogou meia dúzia de sementes no solo e cultivou alguns pés de maconha para seu consumo próprio? Em teoria, infringiu a lei 11.343/06, a lei de Drogas. Se comprovado uso pessoal, o artigo 28 prevê penas socioeducativas. Caso contrário, responderá pelo art. 33 e poderá cumprir até 15 anos por tráfico1. Como o texto não estipula um critério claro de quantidade, mas local, "circunstâncias sociais" e "antecedentes" do autor, é basicamente pobres e pretos que vão presos2. Mas na prática, quem é a vítima? Qual o dano à sociedade?

Além de garantir controle de qualidade sobre a erva produzida - sobretudo se é para algum tratamento de saúde - e não o produto contaminado oferecido pelo narcotráfico - o auto cultivo também é uma arma poderosa. contra o próprio narcotráfico. É inclusive uma estratégia muito mais eficaz do que se mostraram as nove décadas de proibicionismo. Há até uma frase entre os cultivadores que diz que "plantar é fazer justiça com as próprias mãos". E os tribunais estão cada vez mais atentos à catástrofe da política de drogas no Brasil e avançando nesse tema, ao contrário do Legislativo e Executivo.

Cabe ressaltar que o Brasil foi classificado como a pior política de drogas do planeta pelo Global Drug Policy Index, um projeto do The Harm Reduction Consortium, formado por 190 entidades de pesquisa em drogas e redução de danos em todo o mundo3.

Até um par de anos atrás, simplesmente ter consigo a parafernalha para cultivar em casa, como lâmpada, estufa e exaustor, mesmo que para plantar tomate, poderia levar o cultivador à prisão. Hoje, milhares de pacientes já possuem autorização judicial para plantar, já existe uma pacificação sobre esses salvo-condutos e até um entendimento sobre a importação de sementes. E o STF está a um voto de descriminalizar a posse da erva.

Em 2016, a advogada carioca Margarete Brito se tornou a primeira pessoa autorizada pela Justiça a plantar maconha em casa para produzir o óleo do tratamento de sua filha, portadora de uma doença cerebral grave, após decisão do Juizado Especial Criminal do bairro onde a família mora4. O óleo de cannabis foi o único remédio que controlou as convulsões da menina. A vitória judicial veio através de um habeas corpus. Ou seja, na esfera penal, e não na cível, onde deveria tramitar um processo de direito à saúde. Esse foi o caminho que a defesa encontrou, após várias tentativas e erros, e abriu um precedente importante.

Indiferente da seara escolhida, a vitória da Margarete desencadeou uma avalanche de HCs em todo país autorizando centenas e depois milhares de pacientes a plantar, tanto por decisões na esfera estadual, como federal.

No entanto, o valor dos honorários de um habeas corpus para plantio não é acessível para a maior parte da população. Isso acentuou ainda mais a desigualdade que a lei de Drogas provoca. Felizmente, o país possui a Defensoria Pública, que pode atender os pacientes mais necessitados e que precisam do auto cultivo.

Em julho de 2020, o STJ decidiu que a ferramenta do habeas corpus para cultivo é competência das justiças estaduais6. Isso porque as autoridades rés nesses processos sempre são as polícias Civil e Militar. Em outubro daquele ano, o mesmo tribunal também entendeu que importar pequena quantidade de sementes de maconha não é suficiente para enquadrar alguém nos crimes previstos na lei de Drogas7. A corte interpretou que o ato de importar pequena quantidade de semente configura "mero ato preparatório" para o crime, e a conduta não pode ser punida. E que o THC, substância psicoativa da cannabis, inexiste na semente.

No ano seguinte, o mesmo STJ firmou o entendimento de que a posse de objetos para cultivar maconha não pode ser enquadrada como tráfico pela lei de Drogas se o plantio for destinado exclusivamente para o consumo próprio8. E em 2022, o STJ reconheceu que, diante da completa ausência de regulamentação sobre a atividade pelo Legislativo, Anvisa e Ministério da Saúde, caberia à Justiça avançar no tema para garantir o acesso à saúde da população.

Em setembro de 2023, o STJ consolidou sua posição de que plantar maconha para extrair óleo medicinal não configura crime de tráfico de drogas, desde que seja comprovada a necessidade de tratamento para o paciente receber o habeas corpus sem risco de ser criminalizado9.

Mas o verdadeiro divisor de águas pode acontecer nos próximos meses. O STF está julgando o Recurso Extraordinário 635.659, que descriminaliza a posse de maconha para uso pessoal. Após 8 anos engavetado e muita pressão política para que assim se mantivesse, o tema voltou à votação em agosto deste ano. Já são cinco votos favoráveis com apenas uma manifestação contrária. Ou seja, basta um voto a favor entre os cinco ministros restantes e já terá sido formada a maioria10.

Conforme os votos proferidos até o momento, deverá ser fixada uma quantidade entre 25 e 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas. É uma cota bastante razoável para um usuário. A questão será definida quando o julgamento for finalizado. O STF julga a constitucionalidade do Artigo 28 da lei das Drogas, que prevê penas socioeducativas, mas ainda mantém a criminalização, causando graves problemas sociais ao cultivador. O caso concreto que motivou o julgamento envolve um homem detido com insignificantes 3g de maconha. Como já mencionei, os tribunais estão cada vez mais atentos à tragédia da guerra às drogas. O próprio ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, destacou que "o branco precisa de 80% mais maconha que o preto para ser considerado traficante" e que a aplicação da lei gerou aumento do poder das facções no Brasil.

"Acabou transformando os usuários em pequenos traficantes. O pequeno traficante, com a nova lei, tinha uma pena alta e foi para o sistema penitenciário. Jovem, primário, sem oferecer periculosidade à sociedade, foi capturado pelas organizações criminosas", sustentou o magistrado.

A lei 11.343/06 e sua "guerra às drogas" não demonstraram, nas últimas nove décadas, nenhum indicador positivo no combate ao narcotráfico e controle de drogas ilícitas. Diferentemente do auto cultivo que, como sustentou Moraes, pode frear o recrutamento de soldados do tráfico. Sendo assim, o mínimo que se espera é que o Estado brasileiro não seja mais um obstáculo contra uma atividade que é realmente capaz de enfrentar esse problema. Como bem dizem os cultivadores, "plantar é fazer justiça com as próprias mãos".

----------------------------------------

1 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm

2 População negra encarcerada atinge maior patamar da série histórica Em 2022, havia 442.033 negros presos, ou 68,2% do total, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2005, antes da Lei de Drogas, eram 58%.

3 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/11/brasil-tem-a-pior-politica-de-drogas-do-mundo-aponta-ranking-inedito.shtml

4 Publicado no portal G1: Família é autorizada a cultivar maconha em casa para tratamento da filha. https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/familia-e-autorizada-a-cultivar-maconha-em-casa-para-tratamento-da-filha.ghtml

5 Segundo denúncias divulgadas por ativistas pró-legalização nas redes sociais. Carece de fontes.

6 Justiça estadual deve decidir sobre salvo-conduto para plantio e porte de maconha para uso medicinal https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/29072020-Justica-estadual-deve-decidir-sobre-salvo-conduto-para-plantio-e-porte-de-maconha-para-uso-medicinal.aspx

7 Terceira Seção decide que importar sementes de maconha em pequena quantidade não é crime https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/15102020-Terceira-Secao-decide-que-importar-sementes-de-maconha-em-pequena-quantidade-nao-e-crime.aspx#:~:text=%E2%80%8B%E2%80%8B%E2%80%8B%E2%80%8B%E2%80%8B,previstos%20na%20Lei%20de%20Drogas.

8 Posse de utensílios para cultivo de maconha destinada a consumo próprio não justifica ação penal https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/22092021-Posse-de-utensilios-para-cultivo-de-maconha-destinada-a-consumo-proprio-nao-justifica-acao-penal-.aspx

9 Terceira Seção garante salvo-conduto penal para cultivo de cannabis com finalidade medicinal https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/14092023-Terceira-Secao-garante-salvo-conduto-penal-para-cultivo-de-cannabis-com-finalidade-medicinal.aspx

10 STF tem cinco votos para afastar criminalização do porte de maconha para consumo próprio https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512815&ori=1

Vladimir Saboia

Vladimir Saboia

Advogado especialista na área.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca