Fishing expedition e(m) apreensões de aparelhos eletrônicos: nulidade por ausência de delimitação do objeto
A questão da validade de provas obtidas por "pescaria exploratória" é cada vez menos controversa nos Tribunais Superiores. Esse termo refere-se à violação dos direitos individuais, como intimidade e privacidade, em buscas amplas e sem limitação objetiva.
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
Atualizado às 09:21
Questão cada vez menos tormentosa, já que bastante discutida nos Tribunais Superiores, é a invalidade das provas obtidas mediante a chamada "pescaria exploratória", ou "fishing expedition", tida esta como a violação do direito da intimidade, da privacidade e dos demais direitos individuais, em caso de buscas alargadas, sem limitação objetiva, e que buscam fazer uma devassa na vida do sujeito passivo da diligência.
Sobre o assunto, inclusive, Alexandre Morais da Rosa1 já afirmou:
Denomina-se pescaria (ou expedição) probatória a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade, mas se tem "convicção" (o agente não tem provas, mas tem convicção). Com o uso de tecnologia (Processo Penal 4.0), cada vez mais se obtém a prova por meios escusos (especialmente em unidades de inteligência e/ou investigações paralelas, todas fora do controle e das regras democráticas), requentando-se os "elementos obtidos às escuras" por meio de investigações de origem duvidosa, "encontro fortuito" dissimulado ou, ainda, por "denúncias anônimas fakes".
No mesmo diapasão, reconhecendo a sobredita ilicitude da diligência que não possui uma limitação objetiva clara, já se manifestou a jurisprudência:
6. É ilícita a prova colhida em caso de desvio de finalidade após o ingresso em domicílio, seja no cumprimento de mandado de prisão ou de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, seja na hipótese de ingresso sem prévia autorização judicial, como ocorre em situação de flagrante delito. O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo - vinculado à justa causa - para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas.
7. Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvoconduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade. 2
A lógica da medida, frisa-se, não é diversa da perseguida pelo claro pensamento do legislador, que previu, no art. 243 do Código de Processo Penal3, que qualquer mandado deveria indicar precisamente o objeto de busca, obviamente, sob pena de nulidade processual (art. 564, inciso IV, do Código de Processo Penal).
Contudo, o que, na prática, parece ter ficado olvidado pelos agentes de persecução penal é o fato de que tais limitações devem ser respeitadas, inclusive, com relação às provas obtidas por meios digitais.
Ou seja, a devassa a aparelhos eletrônicos (quebra de dados), nuvens ou aplicativos de informações não podem ser realizadas de forma exploratória e sem limitação objetiva, sob pena de se subverter a lógica da garantia e, assim, macular o ato com nulidade.
Sobre o assunto, vale destacar o que já mencionou o já citado doutrinador, Alexandre Morais da Rosa:
A criatividade dos agentes públicos oportunistas no "aproveitamento" de diligências, com ou sem autorização, para colocar em prática à expedição probatória pode se configurar, entre outras hipóteses:
- Busca e apreensão sem alvo definido, tangível e descrito no mandado (mandados genéricos);
- Vasculhamento de todo o conteúdo do celular apreendido2.
E a conclusão, de que o vasculhamento dos dados digitais não pode ser absoluto e sem limitações objetivas, não é outra coisa senão a aplicação do silogismo lógico e ululante de qualquer um que estudou minimamente o poder dos dados e dos algoritmos.
Afinal, os dados digitais, contidos nas "nuvens" e nos aparelhos eletrônicos, podem dizer absolutamente tudo sobre um indivíduo, adentrando na mais profunda esfera da intimidade, incluindo suas preferências, em geral, inclusive sexuais (de sabença notória ou ocultas), inclinação política, propensão de pautas defendidas, etnia, religião seguida, e todos os dados sensíveis3 sobre uma pessoa.
Nesse sentido, vale trazer a colação estudo realizado sobre a temática:
Mostramos que uma ampla variedade de atributos pessoais das pessoas, variando da orientação sexual à inteligência, podem ser inferidos de forma automática e precisa usando suas curtidas no Facebook. Semelhança entre curtidas no Facebook e outros tipos difundidos de registros digitais, como históricos de navegação, consultas de pesquisa ou compras históricos sugere que o potencial para revelar os atributos dos usuários é dificilmente se limitará a curtidas. Além disso, a grande variedade de atributos previstos neste estudo indicam que, dado apropriado dados de treinamento, pode ser possível revelar outros atributos também. Prever os atributos e preferências individuais dos usuários pode ser usado para melhorar vários produtos e serviços. Por exemplo, sistemas e dispositivos digitais (como lojas online ou carros) poderiam ser projetados para ajustar seu comportamento para melhor se adequar ao perfil inferido de cada usuário. Além disso, a relevância das recomendações de marketing e de produtos poderia ser melhorada adicionando-se avaliações psicológicas, dimensões para modelos de usuários atuais. Por exemplo, seguro online os anúncios podem enfatizar a segurança ao enfrentar situações emocionais usuários instáveis (neuróticos), mas enfatizam ameaças potenciais ao lidar com aqueles emocionalmente estáveis. Além disso, os registos digitais de comportamento podem fornecer uma forma conveniente e fiável de medir traços psicológicos. A avaliação automatizada baseada em grandes amostras de comportamento pode não apenas ser mais precisa e menos propensa a trapaça e deturpação, mas também pode permitir a avaliação ao longo do tempo para detectar tendências. Além disso, a inferência baseada em observações de comportamento registrado digitalmente podem abrir novas portas para pesquisa em psicologia humana. Por outro lado, a previsibilidade dos atributos individuais de registros digitais de comportamento pode ter efeitos negativos consideráveis implicações, porque pode ser facilmente aplicado a um grande número de pessoas sem obter o seu consentimento individual e sem eles percebendo. Empresas comerciais, instituições governamentais, ou até mesmo amigos do Facebook poderiam usar software para inferir atributos como inteligência, orientação sexual ou opiniões políticas que um indivíduo pode não ter a intenção de compartilhar. Pode-se imaginar situações em que tais previsões, mesmo que incorretas, poderiam representar uma ameaça ao bemestar, à liberdade ou mesmo à vida de um indivíduo. É importante que, dada a quantidade cada vez maior de vestígios digitais que as pessoas deixar para trás, torna-se difícil para os indivíduos controlar quais seus atributos estão sendo revelados. Por exemplo, apenas evitando conteúdo explicitamente homossexual pode ser insuficiente para impedir que outros de descobrir a orientação sexual de alguém. (grifei).
Ou seja, atualmente, aparelhos eletrônicos falam mais sobre o indivíduo que sua casa - falam mais sobre o indivíduo que ele mesmo -, de modo que, se o objeto de uma busca e apreensão em um imóvel deve ser: delimitado (sob pena de nulidade, em razão do reconhecimento de fishing expedition), a mesma lógica, com muito mais razão, deve ser aplicada aos seus aparelhos e dados eletrônicos.
Permitir o acesso indiscriminado aos dados de um sujeito é, sem sombra de dúvidas, deixá-lo nu diante do Estado, na sua mais profunda intimidade; é, quiçá, o ato de violência maior e mais covarde possível de ser fazer com alguém, pois é negar-lhe o direito a uma reserva da intimidade absoluta.
Reconhecendo a importância da proteção de dados como direito fundamental muito além da privacidade, já é reconhecido pelo Direito da União Europeia:
No ponto, ressaltando a presença da proteção de dados enquanto direito fundamental, como um direito decorrente do cenário atual, é preciso o subtítulo de trabalho redigido por SILVEIRA e FROUFE, que visualizam "a proteção de Dados pessoais como a questão jusfundamental identitária dos nossos tempos".
O ponto nevrálgico da feliz expressão, pensamos, é a de que, apesar de recente, a figura do respeito aos direitos digitais, e sobretudo da proteção de Dados pessoais, não se mostra estranha, haja vista a presença maciça das tecnologias digitais no dia-a-dia4.
Sobre o assunto, vale destacar o mote da proteção dos dados, explicitados no "Considerando 75" do Regulamento Geral de Proteção de Dados (fonte inspiradora da LGPD vigente no País), onde consta:
(75) O risco para os direitos e liberdades das pessoas singulares, cuja probabilidade e gravidade podem ser variáveis, poderá resultar de operações de tratamento de dados pessoais suscetíveis de causar danos físicos, materiais ou imateriais, em especial quando o tratamento possa dar origem à discriminação, à usurpação ou roubo da identidade, a perdas financeiras, prejuízos para a reputação, perdas de confidencialidade de dados pessoais protegidos por sigilo profissional, à inversão não autorizada da pseudonimização, ou a quaisquer outros prejuízos importantes de natureza económica ou social; quando os titulares dos dados possam ficar privados dos seus direitos e liberdades ou impedidos do exercício do controlo sobre os respetivos dados pessoais; quando forem tratados dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas e a filiação sindical, bem como dados genéticos ou dados relativos à saúde ou à vida sexual ou a condenações penais e infrações ou medidas de segurança conexas; quando forem avaliados aspetos de natureza pessoal, em particular análises ou previsões de aspetos que digam respeito ao desempenho no trabalho, à situação económica, à saúde, às preferências ou interesses pessoais, à fiabilidade ou comportamento e à localização ou às deslocações das pessoas, a fim de definir ou fazer uso de perfis; quando forem tratados dados relativos a pessoas singulares vulneráveis, em particular crianças; ou quando o tratamento incidir sobre uma grande quantidade de dados pessoais e afetar um grande número de titulares de dados5.
Portanto, é imperiosa a discussão sobre o reconhecimento da nulidade de provas obtidas mediante acesso indiscriminado nas nuvens e aparelhos eletrônicos dos investigados, por se tratarem de devassa não autorizada em lei e violadoras dos princípios constitucionais da intimidade, privacidade e dignidade, pois obtidas mediante pescaria exploratória (fishing expedition), de modo que a autorização para acesso a dados salvos em "nuvens" ou aparelhos eletrônicos devem ter limitações objetivas claras, sob pena de se tornar nula toda a diligência.
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1 MORAIS DA ROSA, Alexandre. A prática de fishing expedition no processo penal. In Consultor Jurídico, Limite Penal. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-praticafishing-expedition-processo-penal. Acesso em 03.11.2023.
2 2 STJ. Habeas Corpus n. 663.055/MT. Relator Ministro Rogério Schietti, j. 22.03.2022: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS, PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO E FALSA IDENTIDADE. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. DESVIO DE FINALIDADE E FISHING EXPEDITION. AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO VÁLIDO DO MORADOR. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA
(...).
5. Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência, conforme se extrai da exegese do art. 248 do CPP, segundo o qual, "Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência".
3 Art. 243. O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;
II - mencionar o motivo e os fins da diligência;
III - ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.
4 MORAIS DA ROSA, Alexandre. A prática de fishing expedition no processo penal. In Consultor Jurídico, Limite Penal. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-praticafishing-expedition-processo-penal. Acesso em 03.11.2023.
5 Art. 5.º, inciso II, da Lei 13.709/2018: "dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural".
6 6 Tradução livre de: KOSINSKI, Michal; STILLWELLA, David; e GRAEPELB, Thor. Private traits and attributes are predictable from digital records of human behavior. In PNAS, vol. 110, n. 15, de 09 de abril de 2013, p. 5805. Disponível em
7 FONTENELLE NETO, José Edilson da Cunha. A proteção de dados pessoais: uma leitura para além do direito à privacidade. Santa Catarina: EMAIS, 2020, p. 101
8 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho.
Luxemburgo. Jornal Oficial das Comunidades Europeias. 04 de maior de 2016. Disponível em
José E. da C. Fontenelle Neto
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, mestre em Direito da União Europeia pela Universidade do Minho - UMINHO/PT, especialista pósgraduado em direito penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal ICPC/UNINTER. Graduado em Direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção de Joinville. Presidente da Comissão de Assistência, Defesa e Prerrogativas da Subseção Judiciária de Joinville - Santa Catarina. Advogado.