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A regulamentação da cannabis no Brasil - Os avanços e desafios do cenário atual

Vladimir Saboia, Lucia Lambert Passos Ramos e Gisele de Motta

Apesar de avanços inegáveis na regulamentação da Cannabis no Brasil, ainda temos um longo caminho a percorrer.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Atualizado às 13:06

O movimento de regulamentação da Cannabis para fins medicinais e de pesquisa científica é uma realidade que pode ser observada em diversos países do mundo, acompanhando a evolução das pesquisas e evidências científicas sobre o potencial terapêutico dessa planta milenar, que por muito tempo foi criminalizada em todas suas formas e usos.

Sabe-se que em nível global, no século XX, construiu-se um arcabouço, aparatos e políticas de controle de drogas, que encontra amparo principalmente no que se convencionou chamar de Sistema Internacional de Controle de Drogas, que tem como base os Tratados Internacionais da ONU de 1961, 1971 e 1988. Contudo, apesar da Cannabis também compor o rol de substâncias psicoativas proibidas, todos esses Tratados já reconhecem o seu potencial terapêutico e a necessidade de que os países signatários criem mecanismos de acesso à Cannabis como terapia, em paralelo à proibição do seu uso recreativo.

No Brasil, a lei 11.343, promulgada no ano de 2006, alinhando-se a essa diretriz internacional, prevê expressamente no parágrafo único do art. 2 a possibilidade de cultivo de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, como a Cannabis, para fins medicinais e de pesquisa. Esta norma, considerada penal em branco pela doutrina jurídica, depende de regulamentação do Poder Publico para se tornar efetiva. Fato é que passados quase 20 anos de vigência da lei, essa regulamentação ainda não veio, havendo um empurra-empurra institucional de quem seria a competência para tanto no nosso país.

A Anvisa, agência que faz parte da estrutura do Ministério da Saúde, dentro da esfera do Poder Executivo, afirma que não é de sua competência a regulamentação do cultivo de Cannabis em solo nacional. Nesse contexto, no âmbito de uma ADIN, a procuradora geral da Republica à época, Raquel Dodge afirma que se configura uma omissão inconstitucional do Poder Público, que tem como efeito a vulnerabilização de milhares de pacientes que ficam com o acesso prejudicado às terapias com Cannabis, hoje já recomendadas para o tratamento das mais diversas patologias, com resultados muitas vezes surpreendentes.

Por outro lado, a regulamentação da importação, produção e circulação dos produtos à base de Cannabis, categoria estabelecida pela Anvisa que não se confunde com medicamentos, para os quais são previstas normas distintas, ainda que incipiente, vem sendo desenhada pela agência, sendo influenciada por fatores como a mobilização política da sociedade civil e o crescente aumento de demandas judiciais para garantia de fornecimento.

Nesse contexto, a RDC 327 de 2019 regulamenta a produção em território nacional por empresas devidamente licenciadas dos produtos à base de Cannabis para fins medicinais, não incluindo, como já ocorre em muitos países, gêneros alimentícios e cosméticos por exemplo. Esse é considerado um mercado com gigantesco potencial e, assim, a regulamentação restritiva da RDC 327 representa um entrave para o desenvolvimento desse mercado.

Além disso, a proposta inicial desta RDC incluía a possibilidade do cultivo nacional que foi, no entanto, vetada na versão final que foi publicada e está em vigor desde então. Portanto, as empresas interessadas em se estabelecer no mercado brasileiro, hoje ainda em número reduzido devido à burocracia, custos elevados e dificuldades de se adequar aos requisitos e padrões por ora estabelecidos pela Anvisa, devem importar os insumos para produzirem os seus produtos aqui no país, o que evidentemente encarece os custos da produção, tornando esses produtos caros, logo inacessíveis pela maior parte da população, tanto quanto a importação destes. Ou seja, além de não poderem cultivar, também não podem importar a planta in natura, mas tão somente os seus derivados. Perde a indústria nacional. Perdem os pacientes e a sociedade brasileira como um todo.

Outra contradição que vale ser explicitada é que a agência desde 2015, através da RDC 17, estabeleceu o modelo de importação individual. Desde então, a cada ano aumentam consideravelmente as demandas de pacientes pela autorização excepcional da Anvisa para tais fins. Depois de algumas alterações que simplificaram os procedimentos para obter a autorização, hoje é a RDC 660 que está em vigor, atualizando o modelo inicialmente estabelecido em 2015. A contradição é que a Anvisa afirma que não garante a eficácia e qualidade desses produtos, enquanto internamente articula o argumento de que por não terem eficácia e segurança garantida, o cultivo e produção caseira, que muitas vezes é a única alternativa que garante acesso a pacientes, não são legítimos.

Portanto, apesar de avanços inegáveis na regulamentação da Cannabis no Brasil, ainda temos um longo caminho a percorrer. Mas uma coisa parece indiscutível: esse é um caminho sem volta. Logo, a questão não é se vai ter regulamentação, e sim como ela vai ser construída. Essa construção, por sua vez, ainda está em disputa. Que regulamentação é essa queremos, afinal? Para responder a essa pergunta temos que considerar as especificidades do nosso país.

Vladimir Saboia

Vladimir Saboia

Advogado especialista na área.

Lucia Lambert Passos Ramos

Lucia Lambert Passos Ramos

Advogada.

Gisele de Motta

Gisele de Motta

Advogada.

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