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Ponderações sobre a proibição do trabalho digital infantil, liberdade de expressão e publicidade abusiva

O caso Larissa Manoela evidenciou a exploração do trabalho infantil, destacando a privação financeira pela família. A proibição do trabalho infantil antes dos 16 anos visa o bem-estar da criança, sendo permitido apenas com autorização judicial, especialmente para atividades artísticas, conforme decisão do STF na ADIn 5326/MC.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Atualizado às 13:50

O caso Larissa Manoela trouxe destaque para a temática que envolve a exploração do trabalho infantil. Especificamente em relação a ela a exploração teria se dado pela própria família ao privá-la dos recursos financeiros auferidos por seu trabalho enquanto criança e adolescente.

Contudo, a exploração do trabalho infantil pode ter outras nuances. Sua vedação tem como objetivos o bem-estar físico e psíquico da criança e visa evitar sua instrumentalização para fins comerciais.

Em razão disso, o trabalho infantil antes dos 16 anos é proibido, nos termos do art. 7º, XXXIII da Constituição Federal.

Todavia, o trabalho infantil é admitido desde que autorizado judicialmente (art. 149, II do ECA e art. 8º da Convenção 138 da OIT), quando se tratar de trabalho artístico. De acordo com acórdão do STF na ADIn 5326/MC, compete ao Juízo da Infância e Juventude, inserido no âmbito da Justiça Comum, apreciar, no campo da jurisdição voluntária, pedido de autorização a participação de crianças e adolescentes em eventos de caráter artístico.

É considerado trabalho infantil artístico toda prestação de serviço apropriada economicamente por outrem, remunerada ou não, realizada antes da idade mínima, envolvendo atividades como representação, canto, dança, dublagem, atuação em fotos e vídeos publicitários, desfiles de moda e apresentação em programas.

Em 2019 a empresa Harris Poll realizou um estudo, a pedido da fábrica de brinquedos Lego, que entrevistou 3 mil crianças norte-americanas e britânicas a respeito da profissão que desejavam seguir. Naquela ocasião, três de cada dez crianças responderam youtubers ou vlogueiras, seguidas pelas profissões de professor, atleta e músico, ficando por último a de astronauta.1

A resposta de grande parte das crianças coloca em análise questões delicadas e gera controvérsia ante o confronto de direitos fundamentais em jogo.

De um lado, se visa prestigiar a proteção integral da criança e do adolescente, não permitindo seu trabalho antes da idade mínima. De outro, ao se proibir rigorosamente o trabalho infantil estar-se-ia desprestigiando sua liberdade de expressão e autonomia progressiva (art. 12.1 da Convenção sobre os Direitos da Criança2). Há uma linha tênue entre o que seria expressão espontânea da criança e o que seria motivado por finalidade lucrativa de terceiros, com exploração de seu trabalho, em prejuízo ao seu bem-estar.

A lei que trata do Marco Legal da Primeira Infância (lei 13.257/206) dispõe que "constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a primeira infância a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica.

Dispõe o art. 15 da mesma lei que "as políticas públicas criarão condições e meios para que, desde a primeira infância, a criança tenha acesso à produção cultural e seja reconhecida como produtora de cultura".

Assim, a legislação em comento prestigia tanto a proteção da criança contra a exposição precoce à comunicação mercadológica, como também prevê que deve ela ter acesso à produção cultural e ser produtora de cultura, o que por vezes demanda a necessidade de sua manifestação em redes sociais.

Da análise de ambos os dispositivos, constata-se a necessidade de ponderação no caso concreto, o que exigiria maior aproximação do poder público, intervindo nos casos em que o trabalho da criança não atenda ao seu melhor interesse e afete seu bem-estar físico, social e mental.

Todavia, o que se verifica comumente é que em provedores de aplicações as crianças possuem facilidade de inserir conteúdos, a exemplo do Youtube. Isso ocasiona dificuldade de fiscalização do exercício de trabalho artístico, uma vez que as atividades das crianças se realizam em domicílios e não dentro de empresas. Deste modo, diante da informalidade, o trabalho acaba não passando pelo crivo do Poder Judiciário.

Nessa toada, caberia uma interpretação ampla do art. 149, II, do ECA que dispõe sobre a autorização judicial, mediante alvará, para participação de criança e adolescente em espetáculos públicos, ensaios e certames de beleza, de modo a abarcar obrigatoriamente também o trabalho delas em provedores de aplicações, com divulgação de conteúdo que gere renda, inclusive com o fito de evitar exploração indevida pelos seus genitores e empresas. 

Neste caso, o Poder Judiciário verificaria os riscos ??da atividade à formação psíquica da criança, avaliando se não influenciaria negativamente em seu desempenho escolar, interação familiar e social, bem como nos seus momentos de lazer, em consonância com todos os direitos que lhes são garantidos pelo art. 3º do ECA. 

A questão perpassa também a análise de idade mínima para que se possa ter conta em redes sociais, que são o local onde os trabalhos infantis de influenciadores são executados.

Assim, visando evitar que crianças acessem redes sociais, o projeto de lei 2628/223, apresentado pelo Senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) cria mecanismos que proíbem a criação de contas em redes sociais por menores de 12 anos. Para tanto, inclui dispositivo que prevê que "os provedores de redes sociais poderão requerer dos responsáveis pelas contas, com fundados indícios de operação por crianças, que confirmem sua identificação, inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido sendo os dados coletados utilizados exclusivamente para verificação de idade". O projeto de lei está atualmente em consulta popular e tem como base discussões envolvendo organizações como o Instituto Alana, Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio - ITS, Data Privacy Brasil e Instituto LGPD.

Não menos importante no contexto do trabalho de crianças e adolescentes como influenciadores, é a problemática que envolve os patrocinadores e financiadores dessas atividades.

Isso porque crianças influenciadoras, por consequência, direcionam ao seu público-alvo - outras crianças - publicidade infantil, a qual é considerada abusiva no Brasil, nos termos do art. 37, §2º do Código de Defesa do Consumidor4 e da Resolução 163/14 do CONANDA.

O projeto de lei 2628/22 prevê artigo que assimilou a redação da Resolução 163/14 do CONANDA, a qual dispõe que é considerado abusivo o direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos: I - linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; II - trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; III - representação de criança; IV - pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; V - personagens ou apresentadores infantis; VI - desenho animado ou de animação; VII - bonecos ou similares; VIII - promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e IX - promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil. diz ainda que isso se aplica à comunicação mercadológica  realizada em páginas de internet, canais televisivos e por meio de suporte ou mídia.

As empresas patrocinadoras e anunciantes, cientes da popularidade e da credibilidade do conteúdo produzido pelos pequenos influenciadores digitais, promovem suas marcas e produtos por meio do envio de "presentes" para que eles os apresentem para a sua audiência. São os chamados vídeos de unboxing, que se aproveitam da inexperiência das crianças propositalmente confundindo publicidade com entretenimento.

Diante disso, por meios transversos empresas patrocinadoras utilizam-se da popularidade da criança para veicular publicidade abusiva indireta, o que é vedado pelo ordenamento, em uma manobra que instrumentaliza a criança que produz o conteúdo digital e expõe aquelas que o absorvem.

Por fim, se constata a interdependência entre os direitos que se vida proteger, já que as crianças são hipervulneráveis. É preciso conciliar os seus direitos de se expressar e participar da cultura da sociedade em que vive. Todavia, também é necessário que se garantam seus direitos mais básicos, protegendo-a integralmente contra exposições que possam lhe causar malefícios à saúde física e mental.

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1 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Espaco/noticia/2019/07/criancas-de-hoje-preferem-ser-youtubers-do-que-astronautas.html. Acessado em 27 de outubro de 2023

2 Artigo 12.1 Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança.

3 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=154901. Acessado em 27 de outubro de 2023

4 Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança

Aline Vieira

Aline Vieira

Assistente Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especialista em Direito Processual Civil e Mediadora. Foi advogada e professora assistente na PUC-SP.

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