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Eu sou a mosca que pousou em sua sopa - No cumprimento provisório das astreintes o art. 537, §3º do CPC obsta a utilização do inciso IV do artigo 520 do CPC

O procedimento para o cumprimento provisório de pagar quantia está detalhado nos artigos 520 a 522 do CPC e que esses artigos servem subsidiariamente a outras modalidades de obrigações. Além disso, menciona que o procedimento padrão não esgota as formas de efetivação de provimentos interinais, e o parágrafo único do artigo 297 do CPC permite a aplicação do artigo 520 "no que couber", indicando que nem tudo nele será necessariamente utilizado.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Atualizado às 09:46

1. Raul era a mosca e a ditadura era a sopa. A mosca atrapalha, impede, aborrece, estraga, embarga, obsta, inutiliza a sopa.

2. Aqui, a mosca é o artigo 537§3º do CPC e a sopa é o artigo 520, IV do mesmo diploma e o pano de fundo gira em torno do cumprimento provisório das astreintes (pagar quantia).

3. Todos sabemos que o habitat natural do cumprimento provisório de pagar quantia está no artigo 520 à 522 do CPC. Ali está o procedimento e os princípios atinentes ao cumprimento provisório, tanto que serve subsidiariamente às outras modalidades de obrigações como alerta o §5º do art. 520 do CPC.

4. Se é verdade que ali no art. 520 está o procedimento padrão dos cumprimentos provisórios de pagar quantia, também é verdade que a efetivação de provimentos interinais não se esgotam naquele procedimento, tanto que o parágrafo único do artigo 297 do CPC (efetivação das tutelas provisórias) manda aplicar o artigo 520 "no que couber", admitindo, portanto, que nem tudo que nele está será utilizável.

5.Outro exemplo é a hipótese do artigo 537, §3º do CPC, objeto deste ensaio, que trata do cumprimento provisório de quantia oriunda de astreintes. Há no §3º do artigo 537 uma regra específica que torna este procedimento diferente do que dispõe o artigo 520 do CPC. Neste o cumprimento provisório pode ser completo se cumprida a exigência do seu inciso IV. Naquele o cumprimento provisório das astreintes não pode ser completo, porque não se aplica subsidiariamente o inciso IV do art. 520.

6. Não é novidade que o CPC estabelece diferentes procedimentos de pagar quantia a depender da origem do dinheiro devido ao credor. Assim, por exemplo, se o dinheiro devido é de natureza alimentar, segue uma disciplina própria, inclusive com a possibilidade de utilização de um procedimento com prisão civil, se preenchido alguns requisitos.

7. O mesmo se diga quando se está diante de um procedimento de pagar quantia onde o autor ou o réu são a fazenda pública. No primeiro caso, segue-se um rito próprio previsto em lei extravagante e no segundo caso a um regime jurídico muito particular onde não há execução forçada (regime de precatórios).

8. Tratando-se de crédito pecuniário oriundo de astreintes há uma regra específica do artigo 537§3º do CPC que torna este procedimento especial em relação ao cumprimento provisório do artigo 520 do CPC.

9. A razão desta diferenciação não é outra senão o fato de que o crédito pecuniário das astreintes não nasce no direito material, mas no direito processual. A multa coercitiva fixada pelo juiz para cumprimento da obrigação é medida de execução indireta destinada a coagir o devedor a cumprir o preceito determinado no provimento judicial.  Por medo da multa o devedor opta por cumprir o preceito.

10. As astreintes são medidas de apoio, executivas, fixadas de oficio pelo juiz com intuito de fazer pressão no devedor para que ele cumpra a "obrigação principal", esta sim, nascida no direito material.

11. Justamente porque o lastro da multa coercitiva é processual, sendo, pois, uma medida executiva de apoio direcionada à coerção do devedor para que ele cumpra a obrigação principal, a princípio, soa ilógico admitir que o cumprimento provisório da multa possa se dar antes do momento do cumprimento provisório da própria obrigação principal.

12. Imaginemos a hipótese, por exemplo, de uma liminar que determine uma obrigação de fazer com fixação de astreintes. A ordem não é cumprida, impugnada pelo devedor com inúmeros argumentos de que não é devida aquela obrigação, e então por isso comece a incidir a multa diária fixada. Ao final de 100 dias o autor, decide somar o valor até então devido e inicia o cumprimento provisório das astreintes nos termos do artigo 537, §3º do CPC, portanto, antes do julgamento do agravo de instrumento interposto (contra a liminar e contra as astreintes fixadas), e, portanto, antes mesmo de ter a seu favor a sentença reconhecendo o seu direito à prestação de fazer que foi deferido liminarmente.

13. Na redação original do CPC de 2015 o §3º expressamente previa que o cumprimento provisório das astreintes só poderia acontecer se e somente se houvesse a sentença favorável à parte em favor de quem foi fixada as astreintes. Por meio desta regra a lei processual estipulava que a sentença favorável à parte na ação principal era uma condição de exigibilidade da multa. Antes desta sentença favorável a multa seria inexigível e nem sequer poderia iniciar o seu cumprimento provisório, mesmo sendo ela impugnável por recurso desprovido de efeito suspensivo. Mas, depois da sentença favorável reconhecendo a obrigação principal, então seguir-se-ia in totum o cumprimento provisório do artigo 520 do CPC.

14. Mas, se este entendimento favorecia a cautela e a prudência, evitando cumprimentos provisórios temerários que poderiam levar a execuções injustas, por outro lado tirava, e, muito, a força coercitiva de uma astreintes.

15. Isso porque o que coage o devedor a cumprir o preceito não é a concessão da multa, mas o medo de que ela seja executada. Se a coerção ficasse sempre condicionada a uma execução futura e dependente do reconhecimento do direito, então seria uma coerção no papel, no mundo jurídico, mas não no físico.

16. Exatamente por isso é que nasceu a regra prevista no artigo 537§3º que condiciona o levantamento da quantia (astreintes) penhorada ao transito em julgado favorável à parte, afastando a exigência da sentença favorável à parte. A intenção da regra foi encontrar um ponto de equilíbrio entre:

  1. Permitir o cumprimento provisório das astreintes antes mesmo da sentença favorável à parte para amplificar seu papel coercitivo e ao mesmo tempo
  2. Evitar que o cumprimento provisório de um crédito pecuniário processual nascido como medida de apoio seja satisfativo antes mesmo do reconhecimento do direito principal

17. O crédito pecuniário das astreintes pode sim ser objeto de cumprimento provisório, porém, esta execução jamais poderá ser completa (satisfativa) enquanto não tiver ocorrido o transito em julgado da causa principal favorável à parte.

18. Isso significa dizer que a inocorrência do "transito em julgado favorável à parte" é condição obstativa do ato final de expropriação de quantia, ou seja, não pode ser deferido o levantamento de quantia antes do transito em julgado favorável à parte beneficiada com as astreintes.

19. O cumprimento provisório do crédito derivado das astreintes pode ser iniciado, mas nenhum ato expropriatório final pode ser autorizado pelo juiz. Pode-se adiantar a execução, inclusive com o processamento da impugnação do executado, pode-se promover a penhora do dinheiro (ou de bens que em dinheiro podem se converter), mas não se pode autorizar, de forma alguma, a expropriação do patrimônio do executado antes do transito em julgado da causa principal favorável ao titular do crédito das astreintes. Nem a expropriação satisfativa, nem a liquidativa. O limite é a penhora.Esta trincheira só pode ser cruzada se e quando surgir uma condição: o trânsito em julgado da causa principal favorável à parte credora das astreintes.

20. Por se tratar de regra especial aplicável ao cumprimento provisório do crédito pecuniário oriundo de astreintes, não se aplica nesta hipótese o permissivo do inciso IV do art. 520 do CPC. Portanto, nem o exequente deve, menos ainda o juiz pode admitir a utilização do inciso IV do artigo 520 do CPC.A regra especial do §3º do artigo 527 não admite nenhuma exceção.

21. Não é possível ao exequente, por exemplo, nem sequer cogitar apresentar caução idônea para com isso levantar a quantia depositada/penhorada no cumprimento provisório do crédito pecuniário oriundo de astreintes.

22. A proteção do devedor é opção da lei e deve ser respeitada, até porque se sabe que só se impõe a medida coercitiva pecuniária (astreintes) contra quem possui patrimônio, do contrário ela nem mesmo seria fixada pelo juiz. E, frise-se, que não raramente os créditos pecuniários são fixados contra réus com grande poder econômico.

23. Também se sabe que o acúmulo de astreintes totalizando uma vultuosa quantia tem levado os credores a querer, paradoxalmente, que a obrigação específica fixada no provimento judicial - aquilo que ele foi buscar no Judiciário - não seja cumprido pelo devedor. O credor torce pelo incumprimento da prestação principal para ter ao final a multa, que, não raramente, vale muito mais do que a obrigação específica.

24. Para aqueles que acompanharam o desenvolvimento legislativo do CPC viram o quanto sensível era este tema das astreintes.

25. Ora, sendo uma medida de apoio executiva e devida pelo descumprimento de uma ordem judicial não parece haver muito sentido que o valor acumulado das astreintes devesse ir para o bolso do credor, mas sim para os cofres do Estado.

26. Por não ter caráter indenizatório, nem restituitório, a que título o autor-credor deve receber este bônus financeiro? Este problema do destinatário do crédito das astreintes está longe de ser atual, antes o inverso. Enquanto isso se discute há décadas no âmbito doutrinário, segue valendo a regra do art. 537 de que é o credor que fica com o crédito das astreintes, e, portanto, não será raro que credores fiquem na esperança de que a obrigação específica fixada no comando judicial não seja cumprida, para assim amealhar vultuoso crédito de astreintes.

27. Já caminhando para o final era de se esperar que a mosca (impedir o levantamento da quantia antes do transito em julgado) fizesse com que a sopa (cumprimento provisório das astreintes) fosse interrompido, paralisado, obstado.

28. Infelizmente não é o que tem acontecido, pois muitos credores e muitos juízes tem, ilicitamente, permitido que estes cumprimentos provisórios de astreintes levem a uma execução completa, com satisfação do direito do exequente por meio de aceitação de cauções de duvidosa idoneidade, levando a cumprimentos provisórios injustos e ainda por cima irreversíveis.

29. Raul, a mosca, não impediu que a sopa da ditadura prosseguisse, mas, como um louco beleza, fez o seu papel de alertar e alarmar a situação então vigente. Espera-se que este texto também tenha esta mesma função, e que não acabe como as pedras que morrem sozinhas no mesmo lugar.

Marcelo Abelha Rodrigues

Marcelo Abelha Rodrigues

Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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