MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Por um debate concreto em matéria de litigância predatória

Por um debate concreto em matéria de litigância predatória

A litigância predatória não deve ocupar os espaços vazios do discurso da litigância de massa. Para tanto, é preciso que o juiz, desde cedo, possa discernir padrões de condutas abusivos daqueles que não são abusivos.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Atualizado em 1 de novembro de 2023 14:43

Em breve, o STJ decidirá o Tema 1.198. A controvérsia foi internalizada no REsp 2.021.665, interposto pela Ordem dos Advogados do Brasil - OAB em face do julgamento no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR nº 16 do TJ/MS.

Será definido se o juiz, à vista de indicativos de litigância predatória, pode ordenar que a parte autora exiba documentos considerados indispensáveis ao exame do exercício abusivo do direito de ação, como procuração e declaração de hipossuficiência atualizadas, comprovante de residência atual e extrato bancário, sob pena de indeferimento da petição inicial. No IRDR, o TJMS decidiu que o juiz poderia fazê-lo.

A chamada litigância predatória é um tema relativamente novo. Ainda há pouca produção bibliográfica com essa taxinomia1, excetuada a sua aplicação dentro do Direito Concorrencial. Logo, é de suma importância contextualizar a decisão sul-mato-grossense e elucidar a amplitude do cenário fático que a provocou.

Havia uma percepção de que o TJ/MS recebia um número grande de ações em face de instituições financeiras. Muitas dessas ações tinham características atípicas. À primeira vista, elas não pareciam meras ações repetitivas, induzidas por prováveis lesões seriadas de direitos, mas sugeriam algo além. Isso levou o Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Mato Grosso do Sul - CIJEMS2 a elaborar estudo para diagnosticar a situação, compreender suas causas, mensurar impactos e propor soluções de prevenção e tratamento, em linha com a atuação dos demais Centros de Inteligência3. O estudo foi documentado na Nota Técnica - NT 1/22.

A NT 1 do CIJEMS procurou reunir o maior número possível de evidências. Ela analisou um conjunto de dados que se originam de diversas fontes de informações, dentre elas: (1) questionário respondido pelos magistrados do TJMS; (2) estatística de distribuição de ações; (3) estudo analítico de uma amostra de 300 processos; (4) entrevistas com grupos de juízes de três regiões do Estado; e (5) dados de ações semelhantes que tramitaram em outros tribunais estaduais, tudo para identificar se haveria algum padrão diferenciado de uso do sistema de justiça no recorte de pesquisa.   

Quase 80% dos juízes responderam observar litigância predatória em sua unidade judiciária, praticada, em maior parcela, nas demandas que questionavam a contratação de empréstimos consignados. Os processos se concentravam em poucos profissionais da advocacia, que patrocinavam ações em larga escala.

O ajuizamento de lotes imensos de ações veio a ser confirmado pelos dados estatísticos. A concentração de profissionais também. De janeiro de 2015 a agosto de 2021, o TJ/MS recebeu 137.733 ações bancárias. Seis advogados patrocinaram 49.773 demandas, 36% do total. Um único advogado atuou em 39.704 ações. Ao considerar apenas ações com o assunto "empréstimo consignado", o TJ/MS recebeu, no mesmo período, 64.037 demandas, 34.471 conduzidas pelos mesmos seis advogados e 27.924 por um único advogado, que concentrava 43,6% do total. Para comparar, de 2017 a 2021, a Defensoria Pública patrocinou 1.050 ações contra bancos.

Já a análise de uma amostra de 300 processos identificou que: (1) as petições iniciais não continham uma narrativa assertiva, mas descreviam de forma hipotética que a parte autora não teria contratado empréstimo; (2) as petições não esclareciam se a quantia teria sido recebida, tampouco vinham instruídas com extrato bancário; (3) as petições requeriam a dispensa de audiência de conciliação; (4) nos casos em que se tentou resolver extrajudicialmente o suposto conflito, havia indicativos de uso atípico da plataforma consumidor.gov, em razão do preenchimento dos campos de endereço e do telefone da parte autora com o endereço e o telefone do escritório de advocacia; (5) as procurações eram redigidas sem indicar a pretensão a ser deduzida e a instituição a ser demandada; (6) as mesmas procurações foram usadas em dezenas de processos idênticos, cada um questionando um empréstimo consignado; (7) em alguns casos, a data da procuração era anterior à data da contratação do empréstimo questionado; (8) em 88% dos casos, a procuração foi outorgada a um advogado; (9) 87% dos autores recebiam benefício do INSS de até um salário mínimo, 70% possuíam mais de vinte empréstimos averbados em seu histórico, 97% eram idosos, 25% analfabetos, 17% assentados e 11% indígenas; (10) apenas 2% da amostra foi instruída em audiência, quando todos os autores admitiram ter realizado o empréstimo; e (11) quase 80% da amostra foi julgada improcedente, com condenação da parte autora em litigância de má-fé.   

A atuação em rede típica dos Centros de Inteligência permitiu verificar que outros tribunais estavam recebendo ações com as mesmas características do recorte de pesquisa, inclusive do mesmo grupo de advogados. Diligências determinadas em processos locais e em processos de outras justiças revelaram que os autores não conheciam o advogado, mas tinham sido abordados por terceiros e assinaram a procuração - ou ali apuseram sua digital - sem o conhecimento adequado do que seria feito com o documento.

Muitas dessas partes começam a demandar agora o advogado, seja porque não receberam o valor levantado pelo patrono, seja porque foram condenadas a pagar multa por litigância de má-fé em ações que sequer sabiam existir. Em outras palavras, o quadro marcante de litigiosidade artificial agora gera um quadro de litigiosidade real.

Para ter uma noção mais precisa do tamanho do fenômeno, é importante mencionar que a consulta processual ao Jusbrasil, em 16 de outubro de 2023, revela que o advogado que patrocina o maior número de ações no TJMS possui cerca 160.000 processos relacionados com o seu nome, em diversos tribunais do país, a reforçar o caráter migratório da litigância predatória.

Assim, a partir de um conjunto de evidências, o estudo do CIJEMS diagnosticou um padrão de atuação abusivo, praticado por poucos advogados, que não cumpriram os deveres de (1) prevenção de litígios; (2) de desaconselhamento de lides temerárias mediante juízo prévio de viabilidade jurídica da pretensão; e (3) de esclarecimento ao cliente dos riscos que envolvem a demanda. O abuso é representado pelo ajuizamento de ações temerárias, em afronta à lei processual (CPC, arts. 5º, 6º e 80, V). Ele decorre do descumprimento de deveres contratuais e disciplinares inerentes ao mandato (CC, art. 422; Res. 2/2015 - Código de Ética e Disciplina da OAB, art. 2º, VI e VII, e art. 9º).

Múltiplos fatores contribuem para a litigância predatória. O comércio ilegal de bancos de dados e o mau uso das novas tecnologias disponibilizadas pelo processo eletrônico são estruturas recentes que propiciam comportamentos abusivos. A dificuldade de punição ao profissional que abusa é outro fator de incentivo. Tudo isso precisa ser bem calibrado pelo Poder Judiciário. E as soluções talvez não possam mais ser as antigas, quando esses problemas contemporâneos não existiam.

Enfim, a NT 1 concluiu que uma quantidade enorme de demandas propostas sem filtros adequados tem impactado de diversas formas o sistema de justiça. A NT 1 descreveu a visão panorâmica do tema, compilando outros trabalhos realizados por Centros de Inteligência e Núcleos de Monitoramento de Perfil de Demandas - Numopedes, todos convergentes.

Os impactos são financeiros, porque as ações tramitam sob a gratuidade. Em uma conta conservadora, estimou-se dano de cerca de R$ 148 milhões para a parcela de ações analisadas, quase 12% do orçamento do TJMS para 2022. Se aplicado um método de custo médio do processo desenvolvido pelo IPEA4, com a respectiva atualização monetária5, os valores dobrariam.

Contudo, há impactos talvez mais preocupantes. Há um dano social relacionado ao custo-tempo do Poder Judiciário. A litigiosidade artificial em larga escala, potencializada pelo mundo tecnológico, afeta o propósito do sistema de justiça, que exige resoluções de conflitos dadas em tempo oportuno, com qualidade, uniformidade e efetividade. O congestionamento que ela causa é extremamente danoso à sociedade. Em analogia ao corpo humano, a litigância predatória desidrata o sistema de justiça, que vai perdendo sua energia e corre o risco de ficar letárgico ou entrar em colapso.

É bem verdade que também há problemas no uso indevido do sistema de justiça por litigantes habituais, o que deve orientar futuros estudos dos Centros de Inteligência. Não descurando disso, os itens 7, 8 e 9 da NT 1 formulam algumas provocações com o objetivo de prevenir ou reduzir a litigiosidade real ligada a empréstimos consignados.

Todavia, a litigância predatória não deve ocupar os espaços vazios do discurso da litigância de massa. Para tanto, é preciso que o juiz, desde cedo, possa discernir padrões de condutas abusivos daqueles que não são abusivos. A possibilidade de dialogar com a parte autora e ordenar esclarecimentos e exibição de documentos para aferir o exercício abusivo do direito de ação (CC, art. 187) não impede o acesso à justiça, mas, sim, é uma medida admitida pelos artigos 5º e 6º do CPC. Bem concretizadas, as cláusulas gerais de boa-fé e cooperação não afetam interesses sadios, isto é, não prejudicam o profissional e, por consequência, a parte que buscou cumprir os filtros prévios adequados antes de ajuizar a ação, como decidiu o TJMS no IRDR.

-----------------------------------

1 Estudos recentes podem ser encontrados na obra Litigiosidade responsável: contextos, conceitos e desafios. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Fabricio-Lunardi-2/publication/373649677_Litigiosidade_Responsavel_Contextos_Conceitos_e_Desafios_do_Sistema_de_Justica/links/64f5e9f848c07f3da3d86501/Litigiosidade-Responsavel-Contextos-Conceitos-e-Desafios-do-Sistema-de-Justica.pdf.

2 A Res. 349/2020 do CNJ instituiu o Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ) e a Rede dos Centros de Inteligência do Poder Judiciário (art. 1º), determinando a criação e manutenção de centros de inteligência locais (art. 4º). O Centro de Inteligência (CIJEMS) foi criado pelo Provimento nº 542/2021. Três são os pilares que estruturam as atividades dos Centros de Inteligência: (1) o monitoramento de demandas repetitivas; (2) a prevenção e o tratamento de conflitos repetitivos; e (3) o aperfeiçoamento da gestão do sistema de precedentes.

3 Os estudos estão documentados em notas técnicas que podem acessadas em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZWFkYzRmNWEtZWJjNS00ZDE0LTlmMTgtZGRkOTM2MGQ0NzIyIiwidCI6ImFkOTE5MGU2LWM0NWQtNDYwMC1iYzVjLWVjYTU1NGNjZjQ5NyIsImMiOjJ9. A NT 1 do CIJEMS está disponível em: https://www.tjms.jus.br/storage/cms-arquivos/ebf0c4b5d6072dc093c38ba2f39db588.pdf.

4 Cf. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/e42aabc7cb876c670096042fe52af676.pdf.

5 Cf. https://www.tjmg.jus.br/data/files/49/80/E5/70/DF212810B8EE0B185ECB08A8/NT_01_2022%20_1_%20_1_.pdf.

Janine Rodrigues de Oliveira Trindade

Janine Rodrigues de Oliveira Trindade

Integra o grupo operacional do Centro de Inteligência da Justiça Estadual de Mato Grosso do Sul (CIJEMS) e o grupo operacional do Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). É coautora do estudo documentado na Nota Técnica 1 do CIJEMS.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca