A prevaricação e a advocacia administrativa
O fim especial de agir é o alicerce que justificará a propositura de ação penal.
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
Atualizado às 09:05
O crime de prevaricação está previsto no artigo 319 do Código Penal e, em suma, é imputado ao funcionário público que, por motivos pessoais, pratica ou deixa de praticar ato que deveria fazer em razão do exercício do cargo público. É o caso do secretário de segurança pública que recebe um ofício comunicando a possível existência de crime de ação pública incondicionada, contra agente público do estado, e, por motivos pessoais, retarda, indevidamente, o envio da apuração aos órgãos de persecução criminal.
Difere-se da advocacia administrativa, prevista no artigo 321 do Código Penal, pois, neste caso, a conduta típica imputada ao funcionário público consiste na utilização indevida dos segredos e das prerrogativas inerentes ao cargo que ocupa perante a Administração Pública. É o caso do assessor de juiz que utiliza das informações inerentes ao cargo para, em conluio com interposta pessoa, vender serviços e facilidades perante o tribunal que o remunera.
Em resumo, na prevaricação, o funcionário público é movido por ato personalíssimo. Ele prejudica ou beneficia alguém em razão de vontade pessoal. É o traidor da Administração Pública. Na advocacia administrativa, o funcionário público se utiliza das informações privilegiadas inerentes ao cargo público que ocupa em benefício próprio ou de terceiros.
Embora os crimes de prevaricação e advocacia administrativa tenham como sujeito ativo funcionário público, nos termos do artigo 29 do Código Penal, não há impedimentos técnicos para que o partícipe ou coautor da infração penal sejam responsabilizados:
Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)
No julgamento da APn n. 691/DF, relator Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 7/8/2013, DJe de 21/8/13, a demora do julgador para proferir uma decisão não foi suficiente para caracterizar o crime de prevaricação:
A demora do julgador por quase 5 meses para dar-se por suspeito, mesmo que emita juízo de valor sobre os fatos do processo, não é suficiente para configurar o crime de prevaricação, máxime quando o art. 135, inciso I, do Código de Processo Civil não estabelece prazo algum.
Ademais, para que a prevaricação esteja devidamente caracterizada, é indispensável que a acusação demonstre, objetivamente, o especial fim de agir, ou seja, que o ato contrário praticado por funcionário público teve como fato gerador interesses pessoais pretéritos:
Ainda, o tipo penal incriminador exige a demonstração do especial fim de agir, ou seja, do dolo específico, caracterizado pelo animus de satisfazer interesse ou sentimento pessoais. (RHC n. 88.548/MA, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 10/10/17, DJe de 18/10/17.)
Na advocacia administrativa, a justa causa para a deflagração de ação penal dependerá da comprovação de que o funcionário público defendeu um interesse privado, ainda que por interposta pessoa, aproveitando-se das facilidades inerentes ao cargo ocupado.
No julgamento da APn 567/GO, relator Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, julgado em 2/9/09, DJe de 22/10/09, foi rejeitada a denúncia, por atipicidade da conduta, pois foi constatado que o funcionário público acusado não defendeu interesse pessoal, mas do próprio órgão que o remunera:
Para que haja o crime de advocacia administrativa, previsto no artigo 321 do Código Penal, é necessário que o interesse patrocinado seja particular e alheio. Extraindo-se da peça acusatória que o interesse patrocinado é do próprio TRT, impõe-se o reconhecimento da atipicidade da conduta.
Portanto, em ambos os crimes, o fim especial de agir é o marco que justificará a propositura de ação penal. Isto é, na prevaricação, o Ministério Público deverá demonstrar que o funcionário público praticou o ato omissivo ou comissivo pautado em sentimento pessoal pretérito. Na advocacia administrativa, a acusação deverá comprovar que o funcionário público defendeu interesse privado perante o órgão que o remunera.
Seja como for, por se tratar de crimes de ação penal pública incondicionada, ou seja, que independem da vontade das partes para a persecutio criminis, se a deflagração de persecução criminal for iniciada por através de acusação apócrifa, ou seja, promovida por ato doloso do responsável pela comunicação dos supostos fatos ilícitos, essa pessoa poderá ser responsabilizada pelo crime de denunciação caluniosa previsto no artigo 339 do Código Penal. Isto é, o feitiço pode virar contra o feiticeiro.
Art. 339. Dar causa a` instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente:
No julgamento do RHC 107.533/CE, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 2/3/21, DJe de 10/3/21, onde o paciente do recurso imputou o suposto crime de prevaricação contra suposta conduta dolosa de promotora de justiça e, por isso, foi processado pelo delito de denunciação caluniosa, foi denegada ordem de habeas corpus que vindicava a declaração de atipicidade penal:
Na hipótese, a denúncia narrou que o recorrente imputara a promotora de justiça a prática de atos de ofício a fim de satisfazer interesses de cunho pessoal no intuito de persegui-lo ou intimidá-lo. Assim, tendo sido imputado, em tese, o delito de prevaricação, bem como instaurado procedimento administrativo para verificação da conduta da promotora, e não sendo possível na presente via a verificação da ciência inequívoca do recorrente quanto à inocência da promotora, porquanto fato a ser esclarecido durante a instrução criminal, não se vislumbra a existência da alegada atipicidade da conduta a ensejar o prematuro trancamento da ação penal na origem.
Por derradeiro, é importante dizer que se o proveito econômico angariado com a prática dos crimes de prevaricação e advocacia administrativa ingressarem no patrimônio pessoal dos funcionários públicos, ainda que de forma indireta através de "laranjas", com o objetivo de ocultar a origem, localização e propriedade dos valores, os infratores poderão responder pelo crime de lavagem de dinheiro, conforme disposto no artigo 1º da lei 9.613, de 3 de março de 1998:
"Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (Redação dada pela lei 12.683, de 2012)"
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Decreto Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Lei 9.613, de 3 de março de 1998.
REsp 1.453.904/DF, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 28/4/15, DJe de 7/5/15.)
Denun na APn n. 549/SP, relator Ministro Felix Fischer, Corte Especial, julgado em 21/10/09, DJe de 18/11/09.
APn n. 626/DF, relator Ministro Castro Meira, Corte Especial, julgado em 19/12/11, DJe de 6/3/12.
APn n. 471/MG, relator Ministro Gilson Dipp, Corte Especial, julgado em 7/11/07, DJe de 10/3/08.
ExVerd n. 50/SP, relator Ministro Luiz Fux, Corte Especial, julgado em 21/3/07, DJ de 21/5/07, p. 528.
APn n. 329/PB, relator Ministro Hamilton Carvalhido, Corte Especial, julgado em 20/9/06, DJ de 23/4/07, p. 226.
REsp n. 293.621/MA, relator Ministro Fernando Gonçalves, Sexta Turma, julgado em 26/2/02, DJ de 18/3/02, p. 308.
RHC n. 4.202/MT, relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Sexta Turma, julgado em 8/5/95, DJ de 26/2/96, p. 4085.
RHC n. 3.361/RS, relator Ministro Adhemar Maciel, Sexta Turma, julgado em 30/8/1994, DJ de 26/9/94, p. 25669.
HC n. 119.205/MS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 29/9/09, DJe de 16/11/09.
HC n. 39.090/SP, relator Ministro Paulo Gallotti, Sexta Turma, julgado em 12/9/06, DJe de 29/9/08.
RHC n. 93.363/SP, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 24/5/18, DJe de 4/6/18.
RHC n. 78.297/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 20/6/17, DJe de 28/6/17.
Apn n. 362/MT, relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, Corte Especial, julgado em 21/9/05, DJ de 24/10/05, p. 153.
HC n. 21.637/DF, relator Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, julgado em 2/8/05, DJ de 5/9/05, p. 490.
Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.