Extimidade, vigilância e mercado de influências: repercussões no âmbito do direito à privacidade
O Instagram e outras plataformas semelhantes representam a interseção complexa entre espetáculo e vigilância, na qual a visibilidade se torna um ativo valioso e uma moeda de troca na economia digital.
sábado, 28 de outubro de 2023
Atualizado em 27 de outubro de 2023 13:47
As transformações tecnológicas, sociais e políticas que vivenciamos atualmente têm causado um profundo impacto no direito à privacidade. Inicialmente concebido como um direito intimista, que assegurava a prerrogativa de desfrutar da solidão e evitar perturbações, esse conceito evoluiu para abarcar uma ampla gama de prerrogativas relacionadas não apenas à esfera pessoal, mas também à esfera patrimonial, em ambientes físicos e virtuais. Essa evolução é atribuída, em grande medida, aos avanços tecnológicos, que deram origem a novas formas de interação e compartilhamento de informações.
No contexto da internet, uma das mudanças mais significativas foi o surgimento e a ampla disseminação das redes sociais, que proporcionaram um cenário ideal para o massivo trânsito de informações pessoais. Com frequência, essas informações são deliberadamente divulgadas pelos próprios usuários, utilizando direitos ligados à sua personalidade, como privacidade, imagem, voz e identidade.
Esse ato voluntário de tornar acessível a própria intimidade nesses locais de interação online é denominado "Extimidade". A extimidade reflete, portanto, a interseção entre o desejo humano de compartilhar aspectos pessoais e íntimos de suas vidas com outras pessoas, e a exposição dessas informações em um espaço online, muitas vezes acessível a um público amplo.
No cenário jurídico, tais questões têm clarificado discussões sobre os conceitos de autodeterminação informativa, consentimento, dicotomia público-privado, proteção de dados e outros aspectos relacionados à privacidade.
Vale dizer que, nos dias de hoje, o direito à privacidade visa proteger uma esfera pessoal, não uma conexão com um local físico, como costumava ser entendido anteriormente. Protege indivíduos, não lugares específicos, reconhecendo que a privacidade pode ser violada em diversos contextos, inclusive no ambiente digital.
Essas evoluções na compreensão jurídica da privacidade refletem as transformações sociais e tecnológicas em curso, na qual as informações pessoais são compartilhadas em uma escala sem precedentes, muitas vezes de forma voluntária, como parte da extimidade. No entanto, essas mudanças também trazem desafios significativos, como a necessidade de estabelecer uma regulamentação que proteja os direitos individuais ao passo que se equilibra com a liberdade de expressão e a inovação tecnológica.
Stefano Rodotà1 identificou quatro movimentos importantes dessa evolução. Esses deslocamentos refletem as transformações sociais, tecnológicas e legais que alteraram a compreensão desse direito fundamental.
O primeiro movimento destacado por Rodotà, como antecipado, diz respeito à ampliação do conceito de privacidade, que agora abrange não apenas o direito de estar sozinho, mas também o direito de manter controle sobre as informações pessoais. Isso significa que a privacidade não se limita mais à solidão física, mas se estende ao domínio das informações pessoais.
O segundo movimento refere-se à redefinição substancial da própria privacidade, que passa a ser compreendida de maneira mais rica e complexa. Isso envolve uma revisão da dicotomia público-privado, pois a privacidade não é mais vista como uma separação rígida entre o que é público e privado, mas como algo mais fluido, em que espaços sociais e informações pessoais se entrelaçam. Essa compreensão reconhece a interconexão das esferas públicas e privadas, especialmente em um mundo cada vez mais digital e interconectado.
O terceiro movimento diz respeito à mudança do núcleo central da privacidade. Agora, as informações não são analisadas de imediato como públicas ou privadas, mas como pessoais ou não pessoais. Esse deslocamento é significativo porque coloca o foco na natureza das informações em questão e no seu impacto sobre a esfera pessoal do indivíduo. Isso está diretamente relacionado ao conceito de autodeterminação informativa, que se concentra no controle que as pessoas têm sobre suas próprias informações.
O quarto movimento apontado por Rodotà refere-se à mudança do sigilo para o controle. Em vez de se concentrar exclusivamente no sigilo das informações, o direito à privacidade agora enfatiza o controle que as pessoas têm sobre suas informações pessoais. Isso implica que a privacidade não se limita apenas a impedir que informações sejam reveladas, mas também a capacidade de determinar como essas informações são utilizadas.
O impacto notável é o gradual deslocamento de uma "sociedade disciplinar" para uma "sociedade de controle". Essa mudança tem consequências profundas, uma vez que se abrem inúmeros espaços de socialidade, muitos dos quais são característicos da sociedade de consumo e do espetáculo.2
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 92-98.
2 DELLEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Perbart. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 209-211.
Joelane Rodrigues Carvalho
Advogada do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados.